segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

DO LABORATÓRIO À COZINHA

Por Galopim de Carvalho

Vinte e quatro anos depois da jubilação, eis-me a publicar mais um livro em que se fala de açordas, migas e outros comeres, como diziam os rurais alentejanos no tempo em que, como adolescente, pude conviver com eles. Nos três anteriores, “Com Poejos e Outras Ervas”, “Açordas Migas e Conversas” e “Com Coentros e Conversas à Mistura”, além de receitas culinárias, fala-se “de tudo e mais alguma coisa”, da crónica à ficção, da mineralogia e geologia à história e à filosofia, das artes à sociologia. Neste, síntese dos anteriores, a que se acrescenta o que fui editando na minha página do Facebook apenas das muitas confecções aprendidas e criadas, todas elas da gastronomia alentejana ou nela inspirada.
 
Durante quarenta e quatro anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas Universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à química e à física, foi uma constante na minha vida. Um laboratório foi, ainda, o que, respondendo a uma solicitação do saudoso professor Orlando Ribeiro, criei no Instituto de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa, onde a investigação em sedimentologia estava na base da geomorfologia.

Quando o limite de idade me arrumou, contra minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que por amor à arte, por assim dizer, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto na da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; cloretados, oxidados e sulfatados tomaram o lugar dos refogados, guisados e estufados; átomos e iões foram substituídos por bagos de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa.

Acontece que, em criança de 9,10 e 11 anos, era eu que, a mando de minha mãe, ia ao talho e ao mercado municipal, com o recado bem metido na cabeça, comprar o peixe, as hortaliças e a fruta. Ia também à mercearia, em busca do arroz e das massas, do feijão e do grão, do açúcar e da farinha, da manteiga e do azeite, nesse tempo, tudo a granel, aos quilos e meios-quilos, litros e meios-litros. Com essa experiência aprendi a relacionar os produtos que trazia para casa com as confecções que vinham à nossa mesa, numa família de pai, mãe, seis filhos e uma tia viúva, irmã da minha mãe, uns 18 anos mais velha do que ela. Acontece, ainda, que muito cedo ganhei interesse pela cozinha e que a minha mãe teve gosto e paciência para me ensinar os rudimentos que me permitiram caminhar “pelo meu pé”, descobrir o que fui descobrindo e criando o que o acaso fez surgir, sempre inspirado na cozinha tradicional alentejana.
 
Nos anos em que fui profissional a tempo inteiro, mais precisamente, entre 1961 e 2001, sempre gostei de, aos fins-de-semana, feriados e períodos de férias, me entreter na cozinha. Nos outros dias trabalhei naquilo em que me tornei profissional. E com que gosto! Com tanta a entrega e tanta a obsessão que costumava dizer estar sempre em férias, modo eufemístico de dizer que nunca me lembrava delas. Nos três anos que vivemos em Paris, no 5ème arrondissement, Rive Gauche, a Isabel e eu, alugámos um apartamento com uma pequena, mas funcional, kitchenette, íamos ao mercado na Rue Mouffetard, tal como os nossos vizinhos, e cozinhámos o tempo todo, ora um, ora outro.

Este outro livro, certamente o último que farei, encaro-o como um poema à gastronomia alentejana, como arte colectiva e ancestral de um povo que aprendeu a tirar das ervas, que a Natureza pôs à sua disposição, os aromas e os sabores que a caracterizam.

Importante atractor do já chamado turismo gastronómico, a gastronomia regional é um pilar da identidade da área territorial a que se refere e um património cultural que valoriza a relação entre a mesa e a sociedade locais. A gastronomia oferece ao viajante verdadeiras experiências muito pessoais e autênticas dos locais por onde passa, uma vez que, sentar-se à mesa para almoçar ou jantar, é uma necessidade de todos os dias. E a verdade é que quem viaja procura, cada vez mais, experiências que liguem os locais visitados ou a visitar às respectivas raízes culturais, e os “sabores” são uma parte importante dessas raízes. É por isso que, no dizer do colunista gastronómico espanhol Xavier Domingo (1929-1996), «Los libros de cocina son materia prima para historiadores, sociólogos, psicólogos, filósofos e incluso – termina com humor - para cocineros”. Sabemos que a gastronomia representa uma fatia importante do turismo cultural e também sabemos que este está intimamente ligado ao turismo rural, pela relação que tem com a agricultura e a pecuária que estão na base dessa mesma gastronomia.
 
Quem me conhece sabe que cozinhar tem sido para mim um hobby, à semelhança de outros, como a bricolage, a escultura, a pintura e, ultimamente, a escrita. Não sendo gastrónomo, gosto de ler sobre gastronomia, a «nona arte», como a distinguiu o conhecido gastrónomo, escritor e jornalista, Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), além de que aprecio, e muito, os bons sabores e gosto de «pôr as mãos na massa», no dizer de José Quitério (1942-), o jornalista fundador da secção de gastronomia do semanário Expresso.

Revejo-me nas palavras de Alfredo Saramago (1938-2008) que escreveu, em 1994, «O homem que gosta de cozinhar é um ser social por excelência». E é isso mesmo que eu sei que sou. Com efeito, é em confraternizações de amigos e familiares que mais gosto de cozinhar. “Do Laboratório à Cozinha” é um apanhado de ideias e sugestões passadas a escrito, cujo objectivo é dar a conhecer confecções caseiras, muito simples, vindas de pais e avós, amigos e conhecidos, citadinos e rurais, quase sempre com a marca mais ou menos visível da grande província que é a minha. Não indica quantidades nem tempos, nem se preocupa com os modos de preparação. Neste propósito, destina-se a toda aquela ou todo aquele que conheça os rudimentos da cozinha, deixando a cada um a liberdade de fazer delas o que melhor entender. 
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Capa de Francisco Bilou, com base em uma fotografia de Jerónimo Heitor Coelho

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