sábado, 8 de fevereiro de 2025

A "PRIVATIZAÇÃO OCULTA" DAS ESCOLAS PÚBLICAS. UM ESTUDO QUE NOS AJUDA A PENSAR NO SISTEMA DE ENSINO PORTUGUÊS

Há poucas semanas uma professora do primeiro ciclo do ensino básico, com mais de trinta anos de carreira, contava-me que, no presente ano lectivo, o agrupamento de escolas onde lecciona, aceitou integrar o "projecto pedagógico", intitulado DigitALL, promovido pela Fundação Vodafone. Dizia-me que o projecto havia sido imposto a todos os professores desse ciclo, que a sua opinião não foi pedida e que, além do mais, não lhe agradava ver no seu espaço de ensino, ocupando uma hora semanal ao longo do ano letivo, "parceiros" sem credenciais para educar.

Apesar de estar atenta a "projectos" engendrados por "entidades privadas que participam no nosso sistema de ensino", ainda não conhecia este. Eles surgem com frequência crescente e de onde menos se espera, não é fácil acompanhar o seu surgimento.

Tratei de me informar. Nenhuma novidade: a mesma retórica, os mesmos procedimentos, as mesmas redes (ver, o projecto, por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui; o acolhimento por municípios e agrupamentos de escolas, por exemplo aqui, aqui, aqui).

Mais um stakeholder que alega a "responsabilidade social", a que agora se junta a "sustentabilidade"; diz querer participar graciosa e desinteressadamente na salvação da escola pública. Já recebeu muitos prémios por isso. É reconhecido como "parceiro de qualidade" pela Direção-Geral da Educação, estabelece protocolos com municípios (chega a dezenas) e, claro, com agrupamentos de escolas (chega a quase centena e meia), e, como se percebe, a milhares de alunos. Promete ampliar a sua acção.

Poucos dias depois de ter recolhido informação, tive conhecimento do artigo de carácter teórico-empírico, assinado por Erika Martins e Sofia Viseu, saído muito recentemente, sobre o "projecto" a que me refiro.

Em concreto, o artigo incide na forma como as escolas públicas portuguesas interpretam, traduzem e contextualizam programas promovidos por fundações privadas, com especial destaque para o DigitAL. A análise documental e entrevistas realizadas a actores que aí laboram revela o acolhimento crescente de programas filantrópicos "prontos a usar" e, em consequência, da sua normalização. Nas palavras das investigadoras:

«... estes dados convergem para a ideia de que o sector privado utiliza o conceito de filantropia para criar, expandir e promover a sua presença nas escolas, esbatendo assim as fronteiras entre serviços públicos e privados. Este fenómeno cria uma forma de “privatização oculta” nas escolas (Ball e Youdell 2007), posicionando as intervenções filantrópicas como uma “alternativa necessária” à educação pública».

Quem tem alguma responsabilidade na escola pública, devia ("devia" porque, na verdade, é uma questão de dever, de ética) pensar nas consequências que advêm desta conclusão.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito esta gente inventa… Os miúdos continuam sem saber ler, escrever e contar. A coisa básica não acontece ou acontece mal. Mas projetos, são mais que muitos e multiníveis também…

Helena Damião disse...

Caro Leitor, mas, como deve ter percebido, a estas empresas-filantrópicas, não interessa propriamente que os miúdos aprendam a ler, escrever, contar e outras coisas que a escola ter obrigação ética de ensinar, o que lhes interessa é que os miúdos experimentem os seus produtos para que venham a tornar-se consumidores. Mas, estão na sua lógica, uma empresa procura o lucro. O que aqui nos devia fazer parar é o facto de a DGE, as autarquias, e muitos AE, com os seus directores e professores não perceberem esta lógica e alimentarem-na, muitas vezes com grande entusiasmo, quando, afinal, o seu compromisso é com a educação. Cordialmente, MHDamião

Anónimo disse...

Essas empresa metediças deviam ser impedidas de entrar nas escolas e nos jardins de infância. Só quando o povo soberano deliberasse, por intermédio dos seus representantes democraticamente eleitos, que a escola pública deveria ser extinta e substituída por empresas privadas àvidas de lucro, é que os vendilhões poderiam expulsar os professores das escolas arruinadas, quer dizer, escolas onde já não é permitido ensinar, nem aprender, como acontece atualmente.

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