domingo, 11 de agosto de 2024

A REVOLUÇÃO DO GENOMA ANTIGO

Meu artigo no mais recente JL:

Em Outubro de 2019, visitou Portugal, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o médico sueco Svante Pääbo, que deu no anfiteatro da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra a palestra «Como a genética conta a nossa grande história humana». Pääbo lançou então o seu livro O Homem de Neandertal. Em busca dos genomas perdidos, saído na colecção «Ciência Aberta» da Gradiva. O meu exemplar tem uma simpática dedicatória, que se liga ao facto de eu ter organizado a sua visita a Portugal.  

Dificilmente podia o cientista, director de Genética no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, adivinhar, nessa altura, que, escassos três anos depois, viria a ser o único laureado com o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina pelas «suas descobertas relativas aos genomas de hominídeos extintos e à evolução humana.» O prémio foi mais do que merecido porque, como nos conta nesse livro, ele e a sua equipa tinham realizado, em 2010, a primeira sequenciação do genoma do homem de Neandertal. Uma conclusão desse estudo é que os modernos humanos (isto é, a nossa espécie, Homo sapiens) possuem uma parte, ainda que pequena, do genoma de Neandertal, em resultado dos seus cruzamentos com os neandertais.

Saiu agora, na mesma editora, um novo livro, mais abrangente e actualizado, sobre o genoma humano antigo, que tem por título Quem Somos e Como Chegámos Aqui e o subtítulo O ADN antigo e os novos avanços científicos acerca do passado humano. É seu autor o biólogo norte-americano David Reich, professor de Genética na Harvard Medical School. Reich foi um discípulo de Pääbo: ampliou os resultados deste, ao desenvolver as técnicas de sequenciação de genomas antigos. Em vez dos ossos de alguns esqueletos antigos, passaram a ser examinados milhares de ossos de muitos lados do mundo. Não só ao cruzamento entre Neandertal e o Sapiens ficou comprovado, como foram reveladas as surpreendentes migrações e a enorme mistura de populações na Europa, Ásia, na África e na América. De facto, os estudos de os genomas antigos, somando-se às investigações arqueológicas, antropológicas e linguísticas, vieram a revelar-se um meio extraordinariamente fértil de conhecer a história humana.

Reich explica o que foi a Revolução do Genoma Antigo: 

«Os primeiros genomas de humanos antigos foram publicados em 2010: alguns genomas de neandertais arcaicos, o genoma arcaico de hominídeo de Denisova e outro de um individuo com aproximadamente quatro mil anos, da Gronelândia. Nos anos seguintes assistimos à publicação de dados genómicos de mais cinco seres humanos, logo seguida por uma explosão de dados de 38 indivíduos, em 2014. Mas, em 2015, a análise dos genomas completos do ADN antigo entrou em modo acelerado. Três artigos revelaram mais conjuntos de dados de genomas completos, primeiro de outras 66 amostras, em seguida de mais 1200 e, depois, de mais 83. Em Agosto de 2017, o meu laboratório gerou dados genómicos de mais de três mil amostras antigas.»

Tornou-se assim possível analisar a ancestralidade de uma variedade de populações humanas espalhadas pelo mundo. O livro de Reich, competentemente traduzido por David Marçal, nas suas 400 páginas com muitos mapas e esquemas, expõe para leigos o essencial do que sabemos hoje sobre as nossas origens.

O que é o genoma? É a sequência genética completa de um determinado organismo. Ela contém a informação para construir proteínas, peças biológicas essenciais. As instruções estão escritas no ADN, uma molécula longa, num código que faz uso de quatro letras – A, T, G e C. O código genético é universal, ou seja, o mesmo para todos os seres vivos. Nos humanos o ADN encontra-se em 46 cromossomas, no núcleo celular, e nas mitocôndrias, organelos das células, com a particularidade de, neste caso, a transmissão se dar só pela via materna. A sequenciação do genoma consiste em determinar a código do ADN. O Projecto do Genoma Humano foi concluído em 2003 e modernas tecnologias permitem hoje realizar a sequenciação do nosso genoma de um modo incrivelmente mais rápido e económico.

Todos somos iguais e todos somos diferentes. Mas somos mais iguais do que diferentes: cerca de 99% do genoma de todos os humanos é comum. Pääbo e Reich sequenciaram os genomas de pessoas que viveram há muito tempo e compará-lo com o nosso. O homem de Neandertal surgiu há 400 mil anos e extinguiu-se há 28 mil anos. E o Homo sapiens surgiu há 300 mil, em África. As mutações, que são uma parte essencial da evolução, permitem-nos seguir a história humana e mesmo pré-humana. Sabemos hoje que os primeiros hominídeos têm cerca de seis milhões de anos, altura em que se separaram de outros primatas (o mais próximo de nós, o chimpanzé, tem um genoma que coincide em cerca de 95% com o nosso). Reich conta-nos a história não só das nossas origens como do nosso espalhamento pelo planeta.

A genética liga-se com a recorrente discussão sobre as raças. Sabemos que a ideia de raça não tem sustentação científica, mas a genética diz que há pequenas diferenças biológicas entre grupos de populações humanas. Por exemplo, os negros americanos têm maior probabilidade de cancro da próstata do que os brancos. Reich diz-nos: 

«Se, como cientistas, nos abstivermos voluntariamente de estabelecer um enquadramento racional para discutir as diferenças humanas, deixaremos um vácuo que será preenchido pela pseudociência, um resultado que é muito pior do que qualquer coisa que poderíamos alcançar falando abertamente.» 

Não admira que o livro tenha originado controvérsias logo que saiu. Mas, também por isso, vale a pena lê-lo.

O autor é judeu e foi perguntar a um rabino, irmão da sua mãe, se fazia sentido usar os ossos de humanos antigos para a ciência. A resposta – sábia –  foi que os túmulos eram sagrados, mas que podiam ser abertos «desde que haja potencial para promover o entendimento e derrubar barreiras entre pessoas.» O livro ensina-nos que todos resultámos de misturas sucessivas e que, por isso, estamos mais ligados do que imaginamos. A genética permite-nos saber cada vez melhor quem somos e como chegámos aqui.

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