quinta-feira, 10 de novembro de 2016

SOBRE OS LIVROS [1]


Texto de Maria do Carmo Vieira  que acaba de ser publicado na Revista Villa da Feira – Terras de Santa Maria (na foto pormenor da Biblioteca Joanina em Coimbra)


                                                                     Yo, que me figurava el Paraíso
                                                                             bajo la especie de una biblioteca. [2]

                                                                                 Jorge Luis Borges, Poema de los dones, 1955

            Sei  convictamente  que os livros nos consolam, aliás, como a arte em geral. No encontro com quem nos dá a conhecer a sua experiência emotiva do mundo, e no recolhimento do diálogo silencioso, que a leitura implica, pautado inúmeras vezes por choques, dúvidas e questões que se partilham, sendo o prazer estético uma constante, encontramos, na verdade, a nossa libertação interior. Eu, pelo menos, encontro-a e por isso vos escrevo este texto.
            A própria etimologia grega da palavra biblioteca (biblyon + theke = livros + cofre, caixa) explica-a como o lugar onde se guardam os livros  que se mantêm independentemente da passagem erosiva do tempo. Na verdade, só se guarda o que é importante, o que se quer preservar, o que se estima e o que se ama, o que sentimos necessidade de rever porque nos é essencial, porque nos toca, ilumina e enriquece interiormente. A biblioteca, pois, como uma espécie de templo ou lugar onde se guardam memórias valiosas e também relíquias ou, no expressivo entendimento de Jorge Luis Borges, um «Paraíso», onde tranquilamente nos entregamos ao prazer espiritual da leitura, libertando-nos na escrita de um universo de experiências e vivências em que é habitual fazermos amigos. Amigos nos autores, amigos nas personagens, amigos que lembraremos precisamente porque neles nos revimos ou a quem agradecemos a confidência ou ainda a salutar influência que sobre nós exerceram. Resgatando «tantas vozes do passado», o «acto de leitura», como precisa Alberto Manguel, «…] preserva-as por vezes pelo futuro adentro, onde, de formas audaciosas e imprevistas, poderemos vir a fazer uso delas.»[3]
Sou sensível ao gesto de boas-vindas que para mim significa retirar um dado livro da estante de uma biblioteca, no caso, da minha biblioteca, ao longo dos anos regularmente preenchida, numa fraterna e profunda envolvência com diferentes escritores, tempos e geografias. Ao pegar no livro que escolho para ler, valorizo a ideia de um encontro, primeiro ou revisitado, com o autor e a sua obra, nele procurando companhia e a garantia de um intenso bem-estar que poderá durar horas, dias ou meses consoante a dimensão da obra. E quando forçada a interromper a sua leitura, é com saudável ansiedade que desejo retomá-la até que aconteça a despedida, umas vezes já esperada, pelo desenvolvimento da própria narrativa, ou súbita porque o autor assim o desejou, deixando-nos, neste último caso, um pouco desorientados pela interrupção do contacto com a personagem cuja centralidade na acção acompanháramos, movidos por simpatia humana e interesse existencial. Foi o que me aconteceu com a leitura de A Montanha Mágica (1924) de Thomas Mann. [4] O próprio autor-narrador, no final da obra, explicita a sua decisão, coloquialmente, referindo-se a Hans Castorp: «E assim o perdemos de vista, no meio do bulício, da chuva, do lusco-fusco. Adeus, Hans Castorp, […] A tua história chegou ao fim. Terminámos a narrativa.»[5] É ainda Thomas Mann quem descreve esta sua personagem central como «o homo Dei, o próprio homem com a sua questão religiosa acerca de si mesmo, acerca da sua origem e do seu destino, da sua essência e objectivo, do seu lugar no universo, do segredo da sua existência, do compromisso da humanidade eternamente enigmático.»[6] Obra notável, «para mastigar e digerir»[7], num tempo que permanece indiferente ao humanismo e às grandes questões existenciais.
Reli A Montanha Mágica, adquirido recentemente, numa nova tradução, após um silêncio de 25 anos e, sem dúvida, que a passagem do tempo influenciou beneficamente a releitura e aprofundou a consequente reflexão, sendo esse aspecto indissociável da qualidade da tradução da obra, cuja 1.ª edição data de 2009, mantendo-se, felizmente, a ortografia correcta, ou seja, não degradada pelo aberrante e absurdo acordo ortográfico de 1990, que epidemicamente tem alastrado por decisão de gente muito falha de cultura e de respeito por um património colectivo, que parece ter-se tornado pertença de um número diminuto de aventureiros  entretidos a negociar a Língua Portuguesa.
 Não é difícil associar uma biblioteca a uma livraria, pensando que ambas na sua direcção necessitam de «um advogado à altura», ou seja, alguém que ame os livros e a leitura e compreenda o significado da literatura enquanto arte da palavra que expressa «a vida autêntica». Aliás, os versos escolhidos para epígrafe deste texto foram escritos por Borges, aquando da sua nomeação para director da Biblioteca da Argentina, em 1955, estando já cego, ele que, ainda no mesmo poema, considera, e parafraseio, de uma «mestria» divina o facto de Deus lhe ter dado ao mesmo tempo, e com «magnífica ironia», «os livros e a noite».[8]
É de lamentar, hoje em dia, a perda de significado do espaço-livraria, salvo, e como é natural, honrosas excepções. Na verdade, sente-se que assim é, não só pela quase inexistência da figura do antigo livreiro que esclarecia, aconselhava, chamava a nossa atenção sobre uma obra ou sobre uma tradução, por exemplo, no intuito de bem servir, mas também pela nova perspectiva de negócio que uma livraria assumiu, transformada que foi num estendal espectacular de livros, apresentados ao deus-dará e em que o best-seller domina e cativa as massas com as suas já gastas apreciações  superlativas, a que se junta o delírio de capas de um flagrante mau gosto.
No prazer vital que os livros nos oferecem, a livraria é um espaço imprescindível ao qual voltamos necessariamente, com assiduidade, como imprescindível é a figura do livreiro que nela deveríamos encontrar. Por isso precisamos de eleger a «nossa livraria», aquela que nós próprios escolhemos por nela encontrarmos o ambiente propício a estar tranquilamente com os livros, folheando-os, sem pressa, até nos decidirmos por um que trazemos para casa, lendo-o mais tarde, com todo o prazer, e preferencialmente à noite quando tudo é silêncio.
Tenho a grande sorte de ter descoberto a minha livraria, a Livraria Almedina, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, onde não falta a figura do antigo livreiro, alternando ora no masculino ora no feminino, e onde a amizade, gerada por esse encontro e conversa habituais, é uma gratificante realidade, e o amor pela leitura o laço que nos liga.
Creio que o belíssimo texto de Virgínia Woolf que vos deixo, ao terminar este texto, se associa ao «Paraíso» de Jorge Luis Borges:

Sonho por vezes que, quando o dia do juízo chegar e os grandes conquistadores, advogados e estadistas vierem receber as suas recompensas - coroas, louros, nomes gravados indelevelmente em mármore imperecível -, o Todo-Poderoso se voltará para São Pedro e dirá, não sem uma certa inveja, quando nos vir chegar com os nossos livros debaixo do braço: «Olhai, estes não precisam de recompensa. Nada temos para lhes dar. Eles amaram a leitura. [9]

                                                           Maria do Carmo Vieira
                                                   Lisboa, 13 de Setembro de 2016



[1] Texto publicado na Revista Villa da Feira – Terras de Santa Maria, ano XV, número 44, Outubro de 2016, pág. 129
[2] Eu, que imaginava o Paraíso/ como uma espécie de Biblioteca. (Trad. Autora)
[3] In Uma História da Leitura. Lisboa, Editorial Presença, 1998, pág. 76.
[4] Nascido na Alemanha, em 1875, e falecido em Zurique, em 1955. Prémio Nobel da Literatura, em 1929. Autor, entre outras obras, de «Os Buddenbrook» (1901), «Morte em Veneza» (1912), «José e os seus irmãos» (1933-1943), «Doutor Fausto» (1947). Como muitos outros intelectuais e artistas, Thomas Mann foi considerado pelo regime nazi um «degenerado», tendo sido os seus livros considerados «não alemães» e por isso queimados numa iniciativa tenebrosa de Goebbels, em 1933, com a eufórica intervenção dos estudantes universitários alemães.
[5] Thomas Mann, A Montanha Mágica (tradução de Gilda Lopes Encarnação, com revisão de Clara Boléo). Lisboa, D. Quixote, 8.ª edição, 2015, pág. 815.
[6] Citado por Rob Riemen in Nobreza de Espírito – Um Ideal Esquecido. Lisboa, Editorial Bizâncio, 2011.
[7] Francis Bacon (séc. XVI), citado por Manguel, op.cit., pág. 180.
[8] Eis o original dos versos: Nadie rebaje a lágrima o reproche/Esta declaración de la maestria/De Dios que con magnífica ironia/Me dio a la vez los libros y la noche.
[9] Citado por Alberto Manguel, op.cit., pág. 311.

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