segunda-feira, 16 de junho de 2025

RELER DE LA BOÉTIE PARA MELHOR ENTENDER QUE O PRIMEIRO SUSTENTÁCULO DA FORMAÇÃO CIDADÃ É O CONHECIMENTO

A transformação do currículo escolar, sobretudo a partir da última década do passado século, assenta em pressupostos (aparentemente) simples. Entre eles contam-se os seguintes:

1) ele, o currículo, é demasiado "obeso", "gordo", "comprido"... em termos de conteúdos disciplinares pelo que se torna necessário centrá-lo no fundamental, no essencial (leia-se mínimo), até porque, nas palavras de um alto dirigente da OCDE na área da educação escolar, "o google sabe tudo"; aos alunos cabe "pesquisar" por lá e "aplicar" o que recolherem...; 

2) o núcleo do currículo deve ser a "área de cidadania", onde se colocam as emoções, o bem-estar, a felicidade. Logo, a selecção das disciplina e dos seus conteúdos não se prende com o "valor que têm por si mesmos", mas pela funcionalidade que se lhes vê para desenvolver "competências de cidadania";

3) e diz-se serem as STEM ou STEAM (ciência, tecnologia, engenharia - artes - e matemática), requeridas no mercado de trabalho, que mais concorrem para tal fim porque podem conduzir ao "sucesso". As humanidades (a cultura e línguas clássicas, a história, a literatura, a geografia e as artes, em geral), tidas como uma lamentável perda de tempo, são acantonadas, reduzidas, extintas...

Estes pressupostos têm feito "engordar" a "educação para a cidadania", prevendo-se que assim continue. Em Portugal, aproxima-se dos vinte domínios (ver aqui).

Neste ponto, devemos colocar uma pergunta: que ideia de educação para a cidadania está subjacente à mencionada transformação? 

Levando-nos ela para terrenos movediços e sem fim à vista, perguntemos de modo mais modesto: é possível que os alunos se pautem por valores (éticos) sem saberem história e geografia, sem conhecerem as raízes da cultura ocidental, sem lerem de modo compreensivo textos que veiculam dimensões e perspectivas diversas da vida, sem terem explorado a condição humana através da literatura, do cinema, da pintura? 

Eu diria que não, pelo menos com a substância que esses requisitos permitem, ainda que tenha de reconhecer que, mesmo cumpridos, não são garantia da acção ética. Esta resposta levanta pelo menos três objeções:

1) E, as ciências? Não se pode menosprezá-las.
Claro que não: as várias disciplinas, se encaradas na sua essência e se devidamente exploradas, podem concorrer para essa acção consciente no mundo. E, reconheçamo-lo, as ciências (não as STEAM) também não estão de boa saúde, porque têm sido aligeiradas, desvirtuadas, subjugadas a uma ideia difusa de cidadania, que as secundariza, as torna objectos ao seu serviço;

2) Os valores éticos são universais? Se sim, isso é problemático pois "cada aluno tem o direito de "construir os seus próprios valores".
O dissenso é real pois nos mesmos documentos curriculares em que são enunciados valores éticos (sim, universais), como democracia e tolerância, consta essa afirmação subjectivista. Não parece, no entanto, muito credível que as crianças e os jovens consigam "construir" alguma coisa - e muito menos tais valores - sem educação deliberada;

3) De que adianta saber, por exemplo, muito de história se não se for um "bom cidadão".
Como acima notei, bem sabemos que não há uma relação directa entre o que se sabe e o que se faz, mas isso não significa que não haja alguma relação. Por outro lado, não será por deixarmos de ensinar história ou outra disciplina consagrada que obteremos "bons cidadãos".

Face à enorme confusão que gravita à volta da designada "educação para a cidadania", e de que só aflorei alguns aspectos, é preciso assentar pelo menos uma ideia: 
 
o elogio da ignorância, ainda que mascarado de boas intenções, não é caminho para a liberdade e, por inerência, para a dignidade; até prova em contrário, o melhor caminho é o conhecimento facultado pela educação.
 
Esse conhecimento abre-nos os olhos para vermos a tirania que "subtrai toda e qualquer liberdade de agir, de falar e quase de pensar", exercida por um, acolhida por alguns e consentida por muitos. Também nos dá a perspicácia e a força para recusarmos ser servos submissos, ou, pelo menos, para o tentarmos.
 
Sem essa educação informada nem sequer perceberemos a subjugação a nos querem obrigar e muito menos saberemos como lhe resistir. Sobretudo quando "pelos favores, ganhos e lucros que os tiranos concedem (...) são quase tantas as pessoas a quem a tirania parece proveitosa como as que prezam a liberdade".

O que acabo de dizer foi escrito, no século XVI, por um jovem com menos de vinte anos que se chamava Étienne de La Boétie. O livro que deixou e que Montaigne, seu cunhado e amigo, publicou após a morte, que o levou precocemente (Discurso sobre a servidão voluntária), é uma incisiva e corajosa crítica aos governantes que impõem interesses e loucuras próprias, arrastando aqueles que deveriam proteger, os quais, por diversos motivos, se tornam voluntariamente servos.

Há momentos, como os que atravessamos, em que, lamentavelmente, esta reflexão ganha particular actualidade. Por isso, como educadores, temos o dever de, primeiramente, indagar se a condição de servidão voluntária nos toca e o que precisamos de fazer para honrar a liberdade que nos assiste e, acima de tudo, levar os alunos, que estão ao nosso cuidado, a serem capazes de reconhecer tal condição e libertarem-se dela.  

Atenção que liberdade, na vida pública, em comunidade significa ter a possibilidade de escolher o que é bem, o que é bom para todos. Este viver na cidade não se pode operacionalizar em soft skills treináveis e demonstráveis, antes exige conhecimento disciplinar alargado e profundo, trabalhado na escola em continuidade, com seriedade e empenho. 

E, mesmo assim, os tiranos hão-de continuar a surgir pelos tempos fora. É que eles fazem parte do mais atávico que mora em nós e que, tanto quanto sabemos, só pela educação conseguimos superar.
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Nota
: Sobre o livro citado, pode consultar, neste blogue, um texto de João Boavida (A desejada servidão, publicado em 2011 - aqui) e um meu (Assim são os tiranos, publicado em 2022 - aqui).

7 comentários:

Semisovereign People at Large disse...

complexo

Mário R. Gonçalves disse...

Não podia estar mais de acordo. Excelente artigo. Falta um país onde essa educação pelo conhecimento e pela liberdade seja viável. Que conhecimentos, que cultura de liberdade, que nobreza têm os professores de que dispomos? E os dirigentes escolares ? E os ministros? Subescrevo os seus ideiais, Drª Helena, mas a realidade desmente-os. Cada vez mais: estamos caminhando não nessa direcção, mas sem qualquer direcção, favorecendo a direcção oposta. Uma Escola como a que propõe exige que a escola actual seja totalmente desmontada, suspensa, cancelada, e dez anos de preparação intensa de professores para a Escola Nova. Dez anos de História e Geografia e Física e Ciências da Natureza e Filosofia e Cidadania para a liberdade baseada no conhecimento. Acho que nem Deus Pai conseguia, perdão, nem os Deuses do Olimpo. Dou-me por feliz se os alunos aprendem a ler ( o Record e os títulos do Correio da Manhã) , a escrever ( listas de compras e SMS em garatujês) e a contar - se os trocos na loja estão certos e se no futebol ganhar 3-0 é melhor ou não do que 4-1. Quanho saltamos para o nível de formação universitário, a história é diferente: o conhecimento passa a estar sujeito ao salve-se quem puder, lei dos mais fortes, mérito (mais uma vez, começa por sem assim ao nível docente). Quantos séculos para mudar isto? Sou pessimista? Sou; um ideal de perfeição nunca se generaliza a tudo, ou todos. Um ideal de perfeição pode construir-se em nichos. Infelizmente, tudo o que a Drª Helena defende/propõe só é realizável como excepção, em ambiente protegido, ou seja, nalgumas instituições (particulares) de elite. A Escola Pública está condenada, por ser para todos, a não sair da cêpa torta.

Carlos Ricardo Soares disse...


São cruciais e várias as questões levantadas, no artigo e nas referências a Étienne de La Boétie, que viveu tempos de grande conflitualidade que lançavam as bases do exacerbar do absolutismo e cujas preocupações acerca da tirania eram, sobretudo aos olhos do observador posterior, sintomáticas.
Vou focar a minha intervenção em dois ou três problemas, desde logo, o problema da servidão voluntária, algo de contraditório no plano da lógica de uma liberdade teórica e abstrata, mas em linha com a realidade da liberdade possível, ou a melhor possível. Um dos equívocos mais perniciosos ao entendimento das relações do indivíduo (cidadão ou não) com estruturas grupais, sociais, coletivas, estaduais, ou mesmo particulares, é supor a natureza contratual, voluntária (livre e esclarecida) dos vínculos.
O valor da liberdade, num mundo em que o indivíduo se confronta necessariamente, ou inevitavelmente, com outros, reside na sua capacidade de estabelecer um preço para essa liberdade. Ou, se quisermos, a liberdade tem um preço que nem todos podem pagar. Podemos gritar aos quatro ventos que a liberdade é inegociável, que é um valor indisponível, mas isso não altera o facto de que a liberdade tem um custo. Quanto a saber quem suporta esse custo, umas vezes quem o “paga” fá-lo à custa dos outros, mas o importante é que seja pago.
A servidão voluntária, nos tempos atuais, designa-se eufemisticamente por contrato social ou contrato de trabalho, ou sistema de reciprocidades (trocas) de interesses políticos e civis.
Saber a partir de que ponto ou momento de necessidade é que um indivíduo se dispõe, voluntariamente, a aceitar uma servidão é, certamente, diferente de saber a partir de que ponto ou momento de necessidade é que um indivíduo se dispõe a “comprar” essa servidão. Quem “compra” a servidão não está nem se coloca em servidão voluntária, ao contrário de quem “vende”. Mas isto é nos casos em que podemos falar de negociação, contratualização, da servidão. Quando se trata de relações, por exemplo, com o Estado, o problema assume outros contornos. E é legítimo (será?) questionar se e até que ponto o indivíduo tem o direito de prescindir do Estado e de, independentemente disso, ser respeitado. Aqui, a voluntariedade da servidão, ou da sujeição, é mesmo uma fantasia.

Anónimo disse...

A argumentação dos estúpidos contra o primado do conhecimento no complexo processo do ensino/ aprendizagem em contexto escolar é avassaladora porque atualmente a escola e os professores são vistos apenas como males necessários pela generalidade dos indivíduos e da sociedade. O conhecimento está quase todo na internet, logo não é preciso ir à escola para saber quase tudo. Tanto os encarregados de educação, como os alunos, estão essencialmente interessados no diploma que dá acesso à Universidade ou ao Politécnico. Mesmo nas universidades não se aprende muito, mas pelo menos entram num lugar que confere o título de engenheiro, ou doutor, que fica sempre bem usar, exceto quando se trata de professores e educadores de infância da carreira única. Ou seja, o prestígio social e a remuneração dos professores com formação universitária andam pelas ruas da amargura. Neste triste cenário, impor que os professores ensinem aos seus alunos, um modelo de cidadania ideal, o chamado PASEO, com mais de 20 domínios de aprendizagem, com prejuízo da aquisição de conhecimentos básicos de ciência, filosofia ou "humanidades", não lembra ao diabo!

Carlos Ricardo Soares disse...

De qualquer modo, choca-me muito mais a servidão voluntária dos que se acolitam e, afobadamente, se prestam a servir estruturas de poder ditatoriais e não democráticas, ou piores, investindo-se e envergando as prerrogativas de senhores, apesar de o fazerem com sentido de servidão, tanto mais repugnante quanto menos se questionam e mais se atropelam para conseguirem as prerrogativas que não desdenham designar, com falsa modéstia, de servidão. Estou a pensar em todos aqueles que, de bom grado e sem sentido de responsabilidade se alienam ao cumprimento de ordens, venham de quem vierem, desde que sejam ordens de quem pode e que seja preferível, na economia das servidões humanas, servir ordens do que ficar-lhes sujeito, porque há sempre nestes casos algum grau de escolha, entre servir uma lei injusta ou lutar por um direito. Mas para estes a questão do direito já resolveu tudo na origem da sua formação.
Não se sentem responsáveis, até porque, para eles não faz sentido falar de direito que não seja lei. Dirão “o direito não é uma questão nossa”, e di-lo-ão tanto mais convictamente quanto mais se sentirem privilegiados e satisfeitos na sua servidão.
Os tais para quem a liberdade é um problema dos outros, pelo menos enquanto o for apenas dos outros. E servem tanto melhor quem mais poder detiver. Aliás, quanto mais fiéis forem a esse poder, pelo qual não se sentem responsáveis, mais zelosos se consideram.
Esses são daqueles para quem o assassínio de inocentes só é crime se houver uma lei que o diga. E são os mesmos que declaram não saber o que é uma lei injusta. E que não sabem nem aceitam razões para se lutar contra uma lei.

Carlos Ricardo Soares disse...

Do meu texto anterior, passo ao problema dos valores e da universalidade de certos valores éticos. O que é que faz com que algo seja correto ou incorreto, se não for a norma?
E há aquela questão dos valores serem ou não serem construídos pelas crianças e pelas pessoas, em geral. Diria que os valores normativos não dependem, na sua formulação e na sua vigência, de ninguém em particular.
Já a valorização e a avaliação, ética, jurídica, moral, de convivência, que cada indivíduo faz, desde a infância, incluindo a avaliação das próprias normas expressas, é algo inevitável, desejável e que deve ser promovido se a nossa perspectiva for aquela que favorece uma “servidão” mais livre e mais esclarecida, em todas as situações em que não seja possível escapar-lhe, como acontece na “sujeição” ao Estado.
Nascemos e crescemos num ambiente cultural e social de relações de servidão, em que estas algumas vezes se apresentam como vantajosas. Os indivíduos, normalmente, anseiam, desde muito cedo, e competem entre si, até no mercado de trabalho, por servidões que são vistas como meios de obter alguma liberdade, como é a que resulta de um trabalho retribuído. Nestes casos, servir é preferível a, simplesmente, estar desempregado, que é uma forma de sujeição, aliás mais gravosa do que, por exemplo, a mera sujeição ao Estado.
Só por si a servidão, e mesmo a escravidão, não são negativas, quer na perspectiva do indivíduo, quer na perspectiva social e ético religiosa, dependendo do “senhor” a quem se serve e do que é servido. Ser escravo da virtude é uma forma de liberdade que alguns proclamam como a verdadeira liberdade, justamente por ser voluntária, mas é duvidoso que dispense ou libere o indivíduo de outras servidões sociais, quiçá mais comezinhas.
Quando se nasce e se cresce e se vive em democracia, mais ou menos ampla e efetiva, perde-se um pouco a perspectiva daquilo que seria nascer, crescer e viver em ditadura, em que, não apenas a sujeição do indivíduo ao poder do Estado seria mais severa, como as servidões, em geral, seriam menos voluntárias e as mais voluntárias também seriam ética e moralmente condenáveis.
Quando se nasce e se cresce e se vive em democracia, mais ou menos ampla e efetiva, a perspectiva da cidadania, por outro lado, corre risco de não ser perceptível por aqueles que não são chamados a indagar e a responder acerca da relação que o indivíduo mantém com os outros e com o Estado, porque nem sempre o indivíduo equaciona quanto o seu estatuto é devido aos outros e ao Estado, ainda que, em alguns casos, os outros e o Estado lhe devam mais do que têm a haver.

Dulce disse...


O que é triste é que para muitos professores: «ele, o currículo, é demasiado "obeso", "gordo", "comprido"», há que cortar. E também para muitos professores: «aos alunos cabe "pesquisar”» agora com a ajuda do ChatGPT, que é uma ferramenta importante e auxiliar para adquirirem as tão atuais “literacias". São as escolas as principais responsáveis pela decadência da Escola Pública e pela (de)formação dos nossos jovens. Na última década os vários ministérios da educação deram um empurrãozinho e quem está no terreno cavou uma cratera rumo ao abismo.
Sim , Doutora Helena, a melhor forma de liberdade é o conhecimento, essa palavra maldita que foi proscrita dos documentos curriculares e que a maioria dos professores, infelizmente, baniu do seu léxico.

OS "ESTUDOS" COMO CONDIÇÃO E FORÇA DE DECISÕES POLÍTICAS

"Temos de usar evidência (informação científica), temos de usar os estudos [...] Depois da avaliação e com a evidência que se vai soman...