Por dever de ofício, revisitei recentemente, no site da Direção-Geral da Educação, os documentos de "educação financeira", um dos domínios da área curricular de "Cidadania e Desenvolvimento".
Percebi que tinha havido actualizações no sentido de reforçar o domínio (aqui, aqui e aqui, por exemplo). Em resultado escrevi um texto, que a seu tempo publicarei neste blogue, sobre o pendor marcadamente ideológico da área, tal como ela se apresenta.
Ontem vi no blogue de Paulo Guinote (aqui) o que se segue, retirado do Programa do XXV Governo Constitucional (aqui):
Será que o domínio designado por Educação para os Direitos Humanos está cativo de "amarras e agendas ideológicas? Os direitos humanos são ideologia?!
Quanto à educação ou literacia financeira, tomadas erradamente como sinónimos, extraí do dito Programa, que ainda não havia consultado (os sublinhados são meus):
"Elevar o nível de literacia financeira da população, nomeadamente nas matérias relativas à segurança social, poupança e preparação para a reforma (p. 14).
Apostar na elevação do nível de literacia financeira da população, nomeadamente nas matérias relativas à segurança social, poupança e preparação para a reforma. Sendo esta necessidade mais premente entre as gerações mais jovens de trabalhadores, propõe-se que estes três temas integrem o plano nacional de formação financeira, em articulação com o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, com a preparação de materiais formativos dirigidos a diferentes públicos em função da interação das pessoas com a Segurança Social ao longo do seu ciclo de vida (p. 210).
Apostar na elevação do nível de literacia financeira da população, nomeadamente nas matérias relativas à segurança social, poupança e preparação para a reforma. Sendo esta necessidade mais premente entre as gerações mais jovens de trabalhadores, propõe-se que estes três temas integrem o plano nacional de formação financeira, em articulação com o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, com a preparação de materiais formativos dirigidos a diferentes públicos em função da interação das pessoas com a Segurança Social ao longo do seu ciclo de vida (p. 210).
Aqui as "amarras e agendas ideológicas" parecem-me óbvias... Se o leitor ficar com dúvidas pode consultar o site que acima indiquei.
Também é dito no Programa:
Garantir a implementação dos conteúdos de literacia financeira como conteúdos obrigatórios já no próximo ano letivo 2025/2026 (p.167)
Ora, os conteúdos que conheço de literacia financeira constam no Referencial de Educação Financeira que não é uma directriz, um programa oficial, é um "documento orientador" "não prescritivo" (p. 6).
4 comentários:
Só uma notinha. "Será que os Direitos Humanos são uma ideologia" , pergunta. Para grande parte da humanidade, os direitos humanos básicos não são ideologia, são um direito, à nascença, obviamente. O direito à livre locomoção e residência no país natal já é mais questionável. O direito à propriedade também, sendo bastante 'ideológico'. O direito à instrução " promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz" é absolutamente político. E, finalmente, para a larga maioria da população sob regimes que estão no poder em Ásia, no Médio Oriente, em África , sim, os direitos humanos são uma ideologia. Erradamente, mas são. Para um islâmico por exemplo, são.
Prezado Leitor, a pergunta (Os direitos humanos são ideologia?!) era, naturalmente, retórica. Ideologia aqui não tem o sentido de campo de estudo das ideias, nem de ideal formativo que se quer alcançar, tem o sentido que se tornou trivial, de inculcação de ideias particulares a outrem. Os direitos humanos não são ideias particulares a inculcar, traduzem valores estimados pela comunidade humana e que devem ser particularmente estimados na escola. No caso concreto do Programa do Governo dá-se a entender - pelo menos foi assim que entendi - que todos os domínios, com excepção do de educação financeira estão ancorados em ideologia(s). Cordialmente, MHDamião
Como tudo, o ser bom ou mau é um problema de valoração ética, moral, ou simplesmente de sobrevivência. O ser ideológico, por si só, não colocando qualquer problema, não pode ser bom nem mau. É como uma coisa qualquer, uma pedra, um fruto, uma estrela, o Big-bang. Ideológico é da natureza da cultura, do humano. A linguagem é ideologia, ou está impregnada de ideologia. Ideologia é a matéria prima de algo que não consegue esconder aquilo de que é feito. O ser ideológico é como ser oxigénio. A ideologia, como o oxigénio, está em toda parte, invisível, mas essencial. Nós vivemos, pensamos, amamos, julgamos e agimos dentro de atmosferas ideológicas.
E assim como o oxigénio pode ser vital ou tóxico, dependendo da dose e do contexto, as ideologias também podem nutrir ou envenenar. Uma ideologia pode inspirar justiça e liberdade, ou aprisionar em preconceitos e desigualdades.
Talvez o mais importante seja ganhar consciência do ar que respiramos, ou seja, desenvolver um olhar atento sobre as ideias que naturalizamos e sobre aquelas que poderíamos reinventar.
O que faz a diferença é a nossa ideologia não se compatibilizar com as outras e não sermos capazes de conviver e de conciliar a nossa visão com a visão dos outros. Este problema costuma consistir em disputas por poder, porque ideologias não são apenas ideias. Elas moldam políticas, instituições, privilégios.
Se não temos forma de demonstrar que a nossa ideologia deve prevalecer, então devemos aceitar, no plano da ação política, uma negociação. Não no sentido de ceder princípios, mas de reconhecer que, num mundo plural, o convívio exige escuta, mediação e construção coletiva. A política vive da arte do possível.
Como dizia Norberto Bobbio, a democracia não é o regime da verdade absoluta, mas o da convivência entre incertezas.
À primeira vista, pelo que significa educar (“fazer sair” ou “conduzir para fora”, do latim educare, ligado à ideia de cultivar, desenvolver, orientar. Não é só transmitir conteúdo, mas despertar potência, revelar possibilidades que ainda não floresceram) a educação acontece numa dialética complexa entre aquilo que é e aquilo que deve ser, sem esquecer que este dever-ser está em constante reformulação. O que, ontem, devia ser, hoje pode já ser diferente, no entanto, o que foi não pode ser modificado, assim como muitas das suas consequências e efeitos.
Pensar em que deve consistir a educação é, no fundo, pensar no tipo de ser humano e de mundo que queremos cultivar.
Que horizontes poéticos e políticos seremos capazes de abrir com a trangalhadança horrível das bombas a demolir e a incinerar o resultado de todos os nossos esforços? Que poema seremos capazes de escrever quando o chão treme? Que poema podemos salvar do apocalipse? O que resiste? O que diz “estamos aqui!”?
"Elevar o nível de literacia financeira da população, nomeadamente nas matérias relativas à segurança social, poupança e preparação para a reforma" . Aí está o encaminhamento para o fim da segurança social e para o fim do estado social!
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