sábado, 3 de agosto de 2024

O "ESTILO ALTAMENTE PURIFICADOR" DA LINGUAGEM (PSEUDO)EDUCATIVA

Quando George Orwell cunhou, para a posteridade, a NEWSPEAK (NOVILÍNGUA),
criada pelo Ministério da Verdade, para esconder as coisas mais horríveis,
sob o casto manto das palavras bem escolhidas,
pensava que essas picardias eram só próprias dos regimes totalitários.
As maiores ignomínias eram descritas num estilo altamente purificador,
que lhes dava um ar de inocente formulação erudita.
O horror era desinfectado pela filologia ao seu serviço.

Eugénio Lisboa, 2023 (texto cedido graciosamente).

Em final de ano lectivo, abro mails - cujo tema é educação e formação - que, não tendo "classificado" como urgentes e/ou importantes, fui acumulando ao longo dos últimos meses. São mails que me foram directamente dirigidos ou encaminhados por quem considera que tenho interesse neles. Refiro-me a informações sobre:

  • congressos, colóquios, seminários e outros eventos académicos,
  • iniciativas de editoras de livros escolares, que vão muito além da divulgação desses livros,
  • concursos para (os melhores) professores, alunos, escolas, projectos em variadas matérias... e, claro, os respectivos prémios,
  • selos de qualidade/de garantia/de certificação de alguma coisa, atribuídos ou a atribuir a escolas por uma diversidade de entidades, sobretudo privadas,
  • sites de novas e surpreendentes entidades, da mesma natureza, com promessas para as escolas, os alunos, as comunidades... o mundo,
  • actividades de autarquias/municípios, muitas delas em colaboração com esse tipo de entidades,
  • acções de formação para professores, e para os que o hão-de ser, sobre temas inimagináveis, muitas delas (estranhamente?) organizadas e acreditadas por tais entidades,
  • conferências, palestras... em escolas, politécnicos e universidades dadas por personalidades mediáticas provenientes de outros contextos como o do empreendedorismo,
  • kits pedagógicos, muitos de cidadania mas não só, produzidos por equipas, centros de investigação, empresas... pouco ou nada habilitadas em matéria educativa mas, nota-se, "oferecidos" com as melhores intenções,
  • publicação de relatórios, recomendações, orientações e afins de sacrossantas organizações transnacionais, mas também de organizações nacionais, em especial das cada vez mais presentes fundações,
  • recentes documentos normativos, powerpoints da tutela, notas da mesma fonte,
  • ...

Julgo que não esgotei os temas dos mails a que me refiro mas não importa porque, na verdade, o que queria era deter-me no seu modelo de redacção, que é muito simples: um conjunto de chavões retirados da "narrativa da educação do futuro" intercalados com palavras comuns.

Eis alguns exemplos desses chavões (alguns deles deturpações de palavras com real sentido educativo e pedagógico): inovação/mudança/transformação, competências/habilidades, valores, literacias, qualidade, liderança, crítica, criatividade, sucesso, resiliência, empoderamento, softskils, bem-estar, stakeholders, emoções, aprendizagem autónoma/activa/significativa, ubiquidade, disrupção, complexidade, cidadania, democracia, inspirador, mentoria, agency, eficácia, boas práticas, flexibilidade, digitalização, tecnologias, inclusão..

Num certo texto, os chavões estão alinhados de um certo modo; noutro, estão alinhados de um modo ligeiramente diferente; num terceiro, a mesma coisa e assim por diante. Não importa a ordem pela qual os chavões estão dispostos e ainda menos o que, nessa ordem, significam; o que importa é que estejam lá e que o conjunto pareça ser compreensível e que convença aqueles a quem se destina.

Face a um discurso que impõe a "criatividade" e a "crítica" (duas palavras com real sentido educativo e pedagógico, ainda que inteiramente desvirtuado na dita narrativa), deveríamos perceber, no imediato, o contrassenso que é a interminável e acrítica repetição a que me refiro. 

Mas não percebemos, e muito menos temos consciência de que a narrativa em causa já se tornou o "novo normal", não só de comunicação mas de pensamento. É mesmo uma novilíngua, tal como Orwell a apresentou.

Tenho, por isso, de reconhecer, recorrendo ao dito por Eugénio Lisboa, que esses chavões são "palavras bem escolhidas", cujo estilo "altamente purificador", salvífico, lhes confere "um ar de inocente formulação erudita" e benemérita. Por isso, sim: o "horror" revelado pela exploração do significado de algumas é "desinfectado pela filologia ao seu serviço".

1 comentário:

Anónimo disse...

As autoridades governamentais prosseguem a sua saga de desvalorização do papel do professor “em contexto de sala de aula”. Se para alcançar esse objetivo criminoso for necessário utilizar uma novilíngua, à maneira dos torcionários do Ministério da Verdade de que nos fala George Orwell, então venha ela, e em força, a linguagem pseudo-educativa, também apropriadamente designada por eduquês. Os professores não podem alegar que não a entendem porque assim estariam a admitir que, ao contrário da esmagadora maioria dos seus colegas, ainda não se apropriaram da transparência e clareza inerentes ao eduquês. É verdade que muitos alunos e encarregados de educação ficam abismados com uma tal linguagem, mas depressa ficam sossegados quando os professores lhes explicam que não se devem preocupar com os pormenores estúpidos das diretivas pseudo-educativas porque, ao fim de cada ano, as avaliações e classificações, baseadas em critérios dada vez mais absurdos, serão cada melhores.
Eu gostava era de ver os propagandistas do eduquês a enfrentarem e resolverem o problema da indisciplina e violência escolar, que vem destruindo o ensino e a aprendizagem nas escolas EB 1, 2, 3 + S + JI, com a mesma leveza e eficiência com que resolveram o desafio do “sucesso escolar” para todos!

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