Novo texto de Eugénio Lisboa:
Anatole
France foi, no último quartel do século XIX e primeiro quartel do século XX,
talvez o mais admirado escritor francês e o mais internacionalmente conhecido.
A Academia sueca ansiava por dar-lhe o Prémio, pois era escandaloso não
galardoar o mais óbvio herdeiro de Voltaire. Mas andou a arrastar os pés, por
puras razões de cobardia e paroquialismo: o facto de Anatole ter uma história
de grande amor extra-conjugal, com Madame Arman de Caillavet. Experiência profunda
e duradoura, que nos valeu esse belo romance sobre o ciúme, intitulado LE LYS ROUGE (O LÍRIO VERMELHO). Por fim, a nem sempre muito inspirada Academia
lá lhe deu o galardão, em 1921, isto é tarde e a más horas, três anos antes da
morte do escritor. O autor de A ILHA DOS
PINGUINS não precisava do Prémio para nada, mas o Prémio é que tinha muito
a ganhar, pendurando-se no grande escritor. O número de romances e de ensaios
que nos legou constitui um dos mais nobres e sedutores patrimónios de que
todos, franceses e não franceses, se podem orgulhar e abundantemente servir. De
uma invulgar erudição, dono de um espírito suavemente acutilante, perspicaz no
sondar as grandezas e fraquezas do ser humano, iconoclasta sorridente, pessimista
não amargurado, mas intrépido, sempre que foi necessário, o autor de THAÏS, LA RÔTISSERIE DE LA REINE PÉDAUQUE, LES DIEUX ONT SOIF, LES
OPINIONS DE M. JERÔME COIGNARD,
CRAINQUEBILLE, LA RÉVOLTE DES ANGES,
LA VIE LITTÉRRAIRE e tantos outros,
fecundou, com o seu saber irónico mas tolerante, várias gerações de leitores e
continua hoje vivo e activo no mercado dos livros. LES DIEUX ONT SOIF continua a ser um livro dolorosamente
indispensável para se conhecer por dentro o mecanismo das revoluções e o
apetite destas pelo Terror, em que acabam por descambar.
É do seu
livro LES OPINIONS DE M. JERÔME COIGNARD,
que eu hoje retiro e traduzo esta sorridente meditação sobre a impossibilidade
de se fazer e ler História, de tal modo a documentação vai crescendo e tornando
inviável o acesso completo a ela. Eis o apólogo de que o erudito e céptico
Abade Coignard se serviu para entreter os seus ouvintes e fazer valer as suas
sérias dúvidas sobre a viabilidade da História:
- “O Doutor Zeb, meu mestre,
ensinou-me que os soberanos se exporiam a menos erros se fossem esclarecidos
pelo exemplo do passado. Eis por que quero estudar os anais dos povos.
Incumbo-vos, pois, de comporem uma história universal e de nada negligenciarem,
para que ela resulte completa.”
Os sábios prometeram satisfazer o
desejo do príncipe e, tendo-se retirado, meteram mãos à obra. Ao fim de vinte
anos, apresentaram-se ao rei, seguidos por uma caravana de doze camelos,
carregando cada um deles quinhentos volumes. O secretário da academia, tendo-se
prostrado nos degraus do trono, falou nestes termos:
- “Senhor, os académicos do vosso
reino têm a honra de depositar aos vossos pés a história universal que
compuseram, à atenção de Vossa Majestade. Ela compreende seis mil tomos e
engloba tudo o que nos foi possível reunir, no que respeita aos costumes dos
povos e às vicissitudes dos impérios. Inserimos nela as antigas crónicas que
foram felizmente preservadas e enriquecemo-las com notas sobre a geografia, a
cronologia e a diplomacia. Os prolegómenos formam, por si só, o carregamento de
um camelo e os paralipómenos são carregados, com grande dificuldade por outro
camelo.”
O rei respondeu:
- “Meus senhores, agradeço-vos o
incómodo que vos causei. Mas estou muito ocupado com os cuidados do governo. De
resto, envelheci enquanto fazíeis o vosso trabalho. Já cheguei, como diz o
poeta persa, ao meio do caminho da vida e, mesmo supondo que morro velho, não
posso razoavelmente esperar ter tempo para ler uma história tão longa. Ela
será, pois, depositada nos arquivos do reino. Façam-me um resumo mais
proporcionado à brevidade da existência humana:”
Os académicos da Pérsia trabalharam
mais vinte anos, levando depois ao rei mil e quinhentos volumes, carregados por
três camelos.
- “Senhor”, disse o secretário
perpétuo, com uma voz enfraquecida, “eis a nova obra. Julgamos não ter omitido
nada de essencial.”
- “Pode ser que sim”, respondeu o
rei, “mas não vou lê-la. As tarefas longas não dizem com a minha idade: resumi
mais e sem demora.”
Eles demoraram tão pouco que, ao fim
de dez anos, voltaram seguidos por um elefante jovem, carregando quinhentos
volumes.
- “Gabo-me de ter sido sucinto”,
disse o secretário perpétuo.
- “Não o fostes suficientemente”,
respondeu o rei. “Cheguei ao fim da vida. Resumi, resumi, se quiserdes que eu
conheça, antes de morrer, a história dos homens.”
Voltou a ver-se o secretário
perpétuo, diante do palácio, ao fim de cinco anos. Caminhando com muletas, ele
trazia, pela arreata, um burrico que carregava um livro enorme.
- “Apressai-vos”, disse um
funcionário, “o rei está mesmo a morrer.”
De facto, o rei encontrava-se no
leito de morte. Dirigiu ao académico e ao enorme livro um olhar quase apagado e
disse, suspirando:
- “Vou morrer sem conhecer a história
dos homens!”
- “Senhor”, respondeu o sábio, quase
tão moribundo como o rei, “vou-vo-la resumir em três palavras: Eles nasceram,
sofreram e morreram”
Foi assim que o rei da Pérsia
aprendeu, já tarde, a história universal.
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