segunda-feira, 15 de novembro de 2021

DA IMPOSSIBILIDADE DE CONHECER A HISTÓRIA DOS HOMENS (UM APÓLOGO)

 


Novo texto de Eugénio Lisboa: 

Anatole France foi, no último quartel do século XIX e primeiro quartel do século XX, talvez o mais admirado escritor francês e o mais internacionalmente conhecido. A Academia sueca ansiava por dar-lhe o Prémio, pois era escandaloso não galardoar o mais óbvio herdeiro de Voltaire. Mas andou a arrastar os pés, por puras razões de cobardia e paroquialismo: o facto de Anatole ter uma história de grande amor extra-conjugal, com Madame Arman de Caillavet. Experiência profunda e duradoura, que nos valeu esse belo romance sobre o ciúme, intitulado LE LYS ROUGE (O LÍRIO VERMELHO). Por fim, a nem sempre muito inspirada Academia lá lhe deu o galardão, em 1921, isto é tarde e a más horas, três anos antes da morte do escritor. O autor de A ILHA DOS PINGUINS não precisava do Prémio para nada, mas o Prémio é que tinha muito a ganhar, pendurando-se no grande escritor. O número de romances e de ensaios que nos legou constitui um dos mais nobres e sedutores patrimónios de que todos, franceses e não franceses, se podem orgulhar e abundantemente servir. De uma invulgar erudição, dono de um espírito suavemente acutilante, perspicaz no sondar as grandezas e fraquezas do ser humano, iconoclasta sorridente, pessimista não amargurado, mas intrépido, sempre que foi necessário, o autor de THAÏS, LA RÔTISSERIE DE LA REINE PÉDAUQUE, LES DIEUX ONT SOIF, LES OPINIONS DE M. JERÔME COIGNARD, CRAINQUEBILLE, LA RÉVOLTE DES ANGES, LA VIE LITTÉRRAIRE e tantos outros, fecundou, com o seu saber irónico mas tolerante, várias gerações de leitores e continua hoje vivo e activo no mercado dos livros. LES DIEUX ONT SOIF continua a ser um livro dolorosamente indispensável para se conhecer por dentro o mecanismo das revoluções e o apetite destas pelo Terror, em que acabam por descambar.

É do seu livro LES OPINIONS DE M. JERÔME COIGNARD, que eu hoje retiro e traduzo esta sorridente meditação sobre a impossibilidade de se fazer e ler História, de tal modo a documentação vai crescendo e tornando inviável o acesso completo a ela. Eis o apólogo de que o erudito e céptico Abade Coignard se serviu para entreter os seus ouvintes e fazer valer as suas sérias dúvidas sobre a viabilidade da História:

 Quando o jovem príncipe Zémire sucedeu ao seu pai, no trono da Pérsia, chamou todos os académicos do seu reino e, tendo-os reunido, disse-lhes:

- “O Doutor Zeb, meu mestre, ensinou-me que os soberanos se exporiam a menos erros se fossem esclarecidos pelo exemplo do passado. Eis por que quero estudar os anais dos povos. Incumbo-vos, pois, de comporem uma história universal e de nada negligenciarem, para que ela resulte completa.”

Os sábios prometeram satisfazer o desejo do príncipe e, tendo-se retirado, meteram mãos à obra. Ao fim de vinte anos, apresentaram-se ao rei, seguidos por uma caravana de doze camelos, carregando cada um deles quinhentos volumes. O secretário da academia, tendo-se prostrado nos degraus do trono, falou nestes termos:

- “Senhor, os académicos do vosso reino têm a honra de depositar aos vossos pés a história universal que compuseram, à atenção de Vossa Majestade. Ela compreende seis mil tomos e engloba tudo o que nos foi possível reunir, no que respeita aos costumes dos povos e às vicissitudes dos impérios. Inserimos nela as antigas crónicas que foram felizmente preservadas e enriquecemo-las com notas sobre a geografia, a cronologia e a diplomacia. Os prolegómenos formam, por si só, o carregamento de um camelo e os paralipómenos são carregados, com grande dificuldade por outro camelo.”

O rei respondeu:

- “Meus senhores, agradeço-vos o incómodo que vos causei. Mas estou muito ocupado com os cuidados do governo. De resto, envelheci enquanto fazíeis o vosso trabalho. Já cheguei, como diz o poeta persa, ao meio do caminho da vida e, mesmo supondo que morro velho, não posso razoavelmente esperar ter tempo para ler uma história tão longa. Ela será, pois, depositada nos arquivos do reino. Façam-me um resumo mais proporcionado à brevidade da existência humana:”

Os académicos da Pérsia trabalharam mais vinte anos, levando depois ao rei mil e quinhentos volumes, carregados por três camelos.

- “Senhor”, disse o secretário perpétuo, com uma voz enfraquecida, “eis a nova obra. Julgamos não ter omitido nada de essencial.”

- “Pode ser que sim”, respondeu o rei, “mas não vou lê-la. As tarefas longas não dizem com a minha idade: resumi mais e sem demora.”

Eles demoraram tão pouco que, ao fim de dez anos, voltaram seguidos por um elefante jovem, carregando quinhentos volumes.

- “Gabo-me de ter sido sucinto”, disse o secretário perpétuo.

- “Não o fostes suficientemente”, respondeu o rei. “Cheguei ao fim da vida. Resumi, resumi, se quiserdes que eu conheça, antes de morrer, a história dos homens.”

Voltou a ver-se o secretário perpétuo, diante do palácio, ao fim de cinco anos. Caminhando com muletas, ele trazia, pela arreata, um burrico que carregava um livro enorme.

- “Apressai-vos”, disse um funcionário, “o rei está mesmo a morrer.”

De facto, o rei encontrava-se no leito de morte. Dirigiu ao académico e ao enorme livro um olhar quase apagado e disse, suspirando:

- “Vou morrer sem conhecer a história dos homens!”

- “Senhor”, respondeu o sábio, quase tão moribundo como o rei, “vou-vo-la resumir em três palavras: Eles nasceram, sofreram e morreram”

Foi assim que o rei da Pérsia aprendeu, já tarde, a história universal.

 Eugénio Lisboa

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