Minha recensão no I de hoje:
O neurologista brasileiro Miguel
Nicolelis (n. S. Paulo, em 1961), professor de Neurobiologia, Engenharia Biomédica
e Neurociências na Universidade de Duke, na Carolina do Norte, nos Estados
Unidos, é um dos cientistas brasileiros mais conhecidos no mundo. Talvez só
rivalize nesse aspecto com o físico Marcelo Gleiser (n. Rio de Janeiro, em
1959), professor de Física e Astronomia no Dartmouth College, em New Hampshire.
Os dois são autores de vários livros de divulgação científica, nas respectivas
áreas de especialidade. Mas, se o mercado português recebeu bem os livros de Gleiser,
designadamente Criação Imperfeita (Temas e Debates, 2011) e A Ilha do
Conhecimento (2015), não estava ainda publicado deste lado do Atlântico nenhum
livro de Nicolelis. A falta acaba de ser colmatada com a publicação pela
Elsinore (a chancela, do grupo 2020, que publicou Yuval Harari e Elizabeth Kolbert)
da tradução em português do seu livro mais recente (Yale University Press, 2020).
O título é O Verdadeiro Criador de Tudo e o subtítulo, que ajuda a
esclarecer o título, é Como o Cérebro Humano Moldou o Universo Tal Como o Conhecemos.
A tradução, boa, é de Paulo Tavares, autor de obras de poesia. A única nota
negativa da edição é o tamanho minúsculo da letra da bibliografia e o facto de
não estarem indicadas muitas das traduções existentes.
O livro começa assim: «No
princípio existia apenas um cérebro primata. E, das profundezas dessa rede
bastante emaranhada de 86 mil milhões de neurónios, moldada através de um
percurso evolutivo cego e de múltiplos big bangs ao longo de um período
de milhões de anos, emergiu a mente humana.» Para se perceber a divergência
entre o português dos dois lados do «rio Atlântico» (expressão de Onésimo
Almeida) vale a pena ver como começa a versão em português do Brasil (Crítica,
2020), decerto abalizada por Nicolelis: «No princípio, havia apenas um cérebro
de primata. E de suas profundezas, graças às misteriosas tempestades eletromagnéticas
– originárias de um emaranhado de dezenas de bilhões de neurônios moldado por
uma tão inédita quanto única caminhada evolucionária – a mente humana emergiu.»
A expressão «graças às misteriosas tempestades eletromagnéticas», que deve
apelar a um certo público brasileiro, não está na versão em inglês.
A tese do autor, expressa em 456 páginas,
que por vezes são densas e exigentes de um esforço de concentração, é que o
cérebro não é nem nunca será imitável por um sistema computacional. Inclino-me
a concordar. Haverá faculdades do cérebro humano – se
quisermos, da mente ou do espírito humanos – que não parecem estar ao alcance de uma
máquina, pelo menos das máquinas computacionais tais como hoje as conhecemos. Nicolelis
socorre-se não apenas da medicina, mas também da biologia, da química, da
física e da matemática. O autor fala de informação gödeliana, do nome do
matemático austríaco Kurt Gödel, companheiro de Albert Einstein no exílio em Princeton,
aquela que não pode ser inferida por sistemas lógicos. O momento-chave do livro
ocorre logo no início do capítulo 3 («A informação e o cérebro. Um pouco de Shannon,
uma mão-cheia de Gödel»), quando Nicolelis e um seu amigo, o matemático e filósofo
suíço-egípcio Ronald Cicurel, se detêm, corria o ano de 2005, junto a uma
árvore de aspecto retorcido nas margens do Lago Léman, perto de Montreux, na
Suíça. Nicolelis teve então uma epifania e disse: «Viver é sobretudo dissipar
energia de modo a incorporar informação em matéria orgânica».
Porque é que os computadores não
são seres vivos? Para Nicolelis os
sistemas computacionais dissipam energia ao processarem informação, aquecendo o
ambiente à sua volta, mas não a incorporam em matéria orgânica. Uma árvore, nós
e os outros seres vivos transformamos a energia (que em última análise, não
podemos esquecer, vem do Sol), para deixar informação gravada em matéria
orgânica, que numa árvore pode ser em anéis concêntricos do tronco, mas no nosso
caso são memórias cerebrais, que naturalmente desaparecem com a morte. Vale-nos
o facto de ultrapassarmos a morte com memórias, que ficam guardadas noutros
cérebros (já alguém disse que morremos duas vezes, uma quando efectivamente
morremos e outra quando uma pessoa diz pela última vez o nosso nome) e em obras
de todo o tipo (artigos, livros e outras marcas culturais).
No capítulo 6 («O porquê de o
verdadeiro criador do tudo não ser uma máquina de Turing»), o autor esclarece a
sua posição: «A ideia de que o funcionamento intrínseco do cérebro humano pode
ser reduzido a um algoritmo computacional e reproduzido numa lógica digital tem
de ser simplesmente considerada mais um mito pós-moderno, uma espécie de lenda urbana,
ou um exemplo da era da pós-verdade, um tempo em que uma declaração falsa, por
ser tantas vezes repetida e disseminada em tão larga escala no seio da
sociedade, passa a ser aceite como verdadeira.»
É um bom exemplo do estilo do
autor: as frases são, em geral, longas, ao contrário do que é usual nos
cientistas que escrevem em inglês. A ideia de Nicolelis encontra fundamento, em
última instância, nas ideias de Gödel, para quem existia uma barreira lógica que
coloca limites à complexidade computacional. No capítulo 12 («Como a nossa dependência
da lógica digital está a alterar os nossos cérebros») o autor afirma com
convicção a singularidade do cérebro humano. Segundo ele, se continuarmos a imitar
as máquinas, a ser «escravos» delas, correremos o risco de nos tornarmos iguais
a elas, perdendo o melhor da humanidade: «Esta hipótese prevê que, quanto mais formos
cercados por um mundo digital e quanto mais as tarefas simples e complexas das
nossas vidas forem planeadas, ditadas, controladas, avaliadas e recompensadas
pelas leis e pelos padrões da lógica algorítmica que caracteriza os sistemas digitais,
mais os nossos cérebros tentarão emular esse modo digital de operação, em detrimento
das funções mentais analógicas e dos comportamentos mais relevantes do ponto de
vista biológico, gerados ao longo dos milénios pelo processo de evolução
natural». O autor continua, sempre em frases grandes e de grande estilo: «Esta
hipótese do camaleão digital prevê que, à medida que o nosso obsessivo entusiasmo
com os computadores digitais for assumindo um maior controlo na forma como percepcionamos
e reagimos ao mundo à nossa volta, os atributos humanos únicos como a empatia,
a compaixão, a criatividade, a inventividade, a intuição, a imaginação, o pensamento
inovador, a linguagem metafórica, o discurso poético e o altruísmo – apenas
para referir algumas das manifestações de informação gödeliana não computável –
sucumbirão e desaparecerão do repertório das capacidades mentais humanas.»
Não é que Nicolelis despreze as capacidades
dos computadores. Ele tem até usado recursos computacionais para ajudar pessoas
com handicaps severos, como os tetraplégicos. No posfácio descreve uma experiência
que exibiu na Copa do Mundo de Futebol realizada no Rio de Janeiro em 2014. No jogo
inaugural, um tetraplégico, de seu nome Juliano Pinto, deu o pontapé de saída, com
o auxilio de um exoesqueleto. Um sistema informático captou a informação do seu
cérebro para a transmitir ao pé artificial. Estive atento, mas achei que essa operação
mediática, realizada brevemente numa lateral do campo do jogo, ficou aquém do
que pensava que ia ser, com uma encenação mais demorada no centro do relvado.
Muitos colegas de Nicolelis, especialmente no Brasil, foram bastante críticos do
dinheiro que o governo brasileiro investiu para se produzir esse curto momento mediático.
É estimulante ler Nicolelis. Exige
tempo e paciência, mas seremos recompensados com a visão abrangente de um cientista
com experiência na interacção homem-máquina (já ligou os cérebros de dois ratinhos,
colocando-os em contacto à distância, numa espécie de telepatia; nessa
experiência participou o jovem neurocientista português Miguel Pais Vieira) a
respeito das extraordinárias capacidade do homem que lhe permitem superar as máquinas.
Elenco, por ordem cronológica inversa, os seus livros publicados no Brasil: Muito
Além do Nosso Eu (Crítica, 2.ª edição, 2017); O Maior de Todos os Mistérios
(Editora do Brasil, 2017), escrito em parceria com a sua mãe, uma autora
de livros infanto-juvenis de grande sucesso, Giselda Laporta Nicolelis; Made
in Macaíba (Criativa, 2016), sobre a criação de um centro de neurociências
no estado de Natal, no Brasil, que originou forte polémica; O Cérebro Relativístico,
com Ronald Cicurel (Createspace Platform); e Prazer em Conhecer: A Aventura
da Ciência e da Educação (Papirus, 2008), escrito com Drauzio Varella,
um médico muito conhecido no Brasil pelo seu trabalho de divulgação na área da saúde.
Nicolelis tem tido uma presença frequente na imprensa brasileira, incluindo uma coluna na edição em português do El País cm comentários sobre a pandemia de Covid 19. As suas críticas ao governo brasileiro são justíssimas. Em Março passado, dizia numa entrevista ao Expresso que «o Brasil perdeu o controlo da pandemia e é uma bomba-relógio para o mundo. A comunidade internacional deve intervir.» O cientista, que é um adepto do Palmeiras, pediu mesmo que os jogos de futebol parassem. Ora o futebol confunde-se, no Brasil, com a vida e a vida não pode parar, mesmo quando há uma ameaça tão grande como a actual pandemia, que já custou ao Brasil 610 mil mortos (a mortalidade diminuiu felizmente de Março para cá). Não faltam ao Brasil cérebros, falta usá-los.
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