Minha recensão no I de hoje:
Rodrigo de Castro
(c.1546-1627) é um médico de origem judaica, nascido em Lisboa e formado em
Salamanca que foi obrigado a exilar-se devido ao ambiente inquisitorial que se
vivia no reino português no final do século XVI, tendo-se fixado em Hamburgo, na
Alemanha. Pertence a uma elite de médicos portugueses desse século, que integra
outros judeus emigrados, como Garcia de Orta (c. 1501-1568), que foi para a
Índia, Amato Lusitano (1511-1568), que andou por terras das actuais Bélgica,
Itália, Croácia e Grécia, Francisco Sanches (1550-1622), que se fixou em França,
e Zacuto Lusitano (1575-1642), que emigrou para os Países Baixos. Tanto Castro
como Sanches e Zacuto são contemporâneos de Galileu, Kepler e Descartes e,
portanto, da Revolução Científica. De certo modo, Sanches, com o seu Que Nada
Se Sabe (1581; edição moderna: Vega, 1991), precedeu Descartes.
Entre as obras de Castro,
quase todas escritas em latim, só estava traduzida em português O Médico Político.
Ou Tratado Sobre Deveres Médico-políticos (Colibri, 2011), publicada em Hamburgo
em 1616, que é um extraordinário tratado de ética médica que ainda hoje é moderno
em muitos aspetos como salientou o saudoso João Lobo Antunes, numa sessão na
Ordem dos Médicos aquando do seu lançamento, na qual tive o gosto de participar.
Deixo um excerto: «Pois se [o médico] exercer a medicina por qualquer outra razão
[sem ser curar doenças], como o lucro, a honra ou por causa da glória, não será
chamado simplesmente médico, mas, tirado da finalidade o nome, será designado
médico ambicioso, presunçoso e interesseiro (…); aquele, porém, que se designa
verdadeiramente médico é impelido a curar por bondade e humanidade.» A obra
maior de Castro, por ser fundadora da Ginecologia e Obstetrícia (conforme salientei
recentemente numa apresentação que fiz a abrir o 22.º Congresso Português de Ginecologia
e Obstetrícia, realizado no Porto), foi, porém, o seu tratado, saído em Hamburgo
e Colónia em 1603, e que conheceu um total de nove edições: De Uniuersa Mulierum
Medicina («A medicina completa das mulheres»).
Porém, o primeiro livro
de Rodrigo de Castro intitula-se Tractatus breuis De Natura, et Causis
Pestis… ou, em português, Tratado Breve Sobre a Natureza e as Causas da Peste,
que neste ano de 1596 assolou a cidade de Hamburgo. A edição original foi
publicada por Jacob Lucius Junior, nessa cidade, e a edição moderna em
português acaba de sair na Afrontamento, do Porto, sob o título A Peste de
Hamburgo. Tratado breve da sua natureza e suas causas. O volume contém o texto
latino original e a tradução em português, além de introdução, edição e notas
de Bernardo Mota, Cristina Pinheiro e Gabriela Silva, todos eles investigadores
no Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa. O livro tem um prólogo
do historiador de medicina espanhol Jon Arrizabalaga. Sendo o n.º 171 da colecção
«Textos», trata-se de um trabalho académico, realizado no quadro do projecto «Gyneceu
- Rodrigo de Castro e a tradição médica antiga sobre ginecologia e embriologia»,
coordenado por Cristina Pinheiro, professora da Universidade da Madeira. Mas esta
edição, muito bem editada e produzida, tem também interesse para todos os curiosos
pela história da medicina, ou, em geral, pela história e, em particular, por
todos aqueles que, motivados pela pandemia que hoje vivemos, queiram conhecer
as epidemias passadas.
A bela capa exibe o
quadro de Pieter Bruegel, o Velho, O Triunfo da Morte (c. 1562), exposto
no Museu do Prado em Madrid, que retrata uma surreal paisagem apocalíptica.
O resumo de A Peste de
Hamburgo está indicado no subtítulo: «Nele se mostra, de forma sucinta, mas
exacta, na presente enfermidade, que método de prevenção e de cura se deve
observar, para que tanto a cidade no seu todo como cada um possa, do mal
nascente, preservar-se, e, depois, a pernície já ocupante, mais facilmente, rechaçar.
E ainda muitas coisas nesta matéria até agora difíceis de entender são
explicadas de passagem.»
O
autor começa com uma dedicatória ao Senado de Hamburgo, onde brilha a sua arte
retórica: «Incríveis Varões de tão grande sabedoria e virtude! Perseverai a
fazer o que sempre fazeis e guarnecei a florentíssima e opulentíssima República
com este triplo nó, que, como se diz, não se desata facilmente: com os bens da
fortuna, com a justiça e com as letras. (…) É verdade que há, nesta cidade,
varões sapientíssimos e aprimoradamente versados na arte médica, que, com os
seus muito eruditos e salutares conselhos, podem ajudar a República, e, por
isso, esta nossa obra poderá parecer menos necessária. Considerei, no entanto,
que também Vos devia ser oferecida alguma coisa sobre esta matéria, não tanto
por dela terdes falta, mas porque desejava que a minha afeição e o meu respeito
para convosco e para com o Magistrado fossem conhecidos e testemunhados. Espero
que Vós, muito distintos e esplêndidos Varões, considereis esta oferta boa e
justa.»
Encontram-se
muitas coisas modernas no texto de Castro, designadamente as medidas de
afastamento social, incluindo a cessação dos cumprimentos tradicionais: «Todos
aqueles que se querem manter saudáveis devem fugir das aglomerações de pessoas,
pois aí o ar não circula livremente e o hálito expirado é mais rapidamente comunicado
aos presentes. Por isso, agirão muito correctamente os que conversam uns com os
outros, se evitarem que o hálito da boca, que com extrema frequência infecta,
atinja a pessoa que está próxima. Com efeito, noutras regiões, isto respeita-se
com extrema diligência mesmo em tempos de saúde, por civilidade. Ainda que o
costume de estender a mão seja óptimo e louvável, a mim, todavia, parecer-me-ia
mais proveitoso se, enquanto durar o contágio, as pessoas usassem outro modo de
cumprimento.»
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