segunda-feira, 7 de novembro de 2016

PERSISTIR CONTRA O ACORDO ORTOGRÁFICO DE 90

Artigo recebido de MARIA DO CARMO VIEIRA:



                                                               A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um
fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito.
                                                                                                  Fernando Pessoa

      Lembramos as palavras de Fernando Pessoa em epígrafe, ao insurgir-se contra a reforma ortográfica de 1911 que deu início a forte massacre na etimologia, juntando a pseudo -facilidade no combate ao analfabetismo à alegria de deitar por terra o que seria de influência monárquica, perceba-se, fruto de elitismo. Assim acontece quando a ignorância e também a prepotência e a alienação políticas vão a par. De lembrar ainda a situação chocante que foi constatar que os deputados da Assembleia da República, na sua esmagadora maioria, não haviam lido o único texto elaborado pelos autores do acordo para o justificar - Nota Explicativa do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90). Uma discussão que não passou de uma divertida sequência de intervenções (confirme-se pelas actas ) de quem vinha com o recado decorado, e que é exemplo da tragicomédia que define todo este processo que lamentavelmente se mantém, apesar do consenso, mesmo em instância superiores, de que, face ao caos ocasionado e aos graves erros que se verificam quotidianamente em todo o lado, o assunto deveria ser reflectido e discutido com seriedade. Falta, no entanto, o empenhamento e a seriedade intelectual e política de muitos que publicamente assim se exprimem, como falta também aos que o impuseram a honestidade e a humildade de saber ouvir a argumentação crítica, em lugar de lhe responder com indiferença ou calúnias, numa demonstração inequívoca da sua prepotência, em que obviamente toda a crítica é considerada indesejável. Uma postura que colide frontalmente com a responsabilidade individual e a abertura de espírito que, em princípio, caracterizam todo o intelectual. 

 Não ficou bem, por exemplo, ao Ministro da Cultura (Luís Filipe Castro Mendes) falar sobre o AO de forma tão chã e tão pouco científica, esquecendo que quem não sabe da matéria ou estuda-a ou deseja ouvir quem dela entende e é estudioso, para desse modo ficar a compreender alguma coisa. Impressionou-nos também o seu desconhecimento do significado da ortografia e, consequentemente, do equilíbrio necessário entre etimologia e fonética, equilíbrio agora posto em causa com a subestimação da história da palavra e da sua vertente cultural greco-latina, com a agravante de o critério privilegiado ser «a pronúncia», usado em pé de igualdade com o «critério fonético», como se fossem sinónimos. Lamentável foi ainda que o mesmo Ministro da Cultura, prezando a sua liberdade de escrever como deseja, esquecesse os que contra a sua vontade, e sob ameaça de processo disciplinar, são forçados a cumprir um acordo que agride a inteligência e impede, no que ao ensino diz respeito, uma reflexão e compreensão da língua. Finalmente, triste foi assistir, num Ministro tão ligado à poesia, ao seu lapso literário, confundido Teixeira de Pascoaes com Fernando Pessoa, exemplo que se juntou aos de tantos outros políticos que descuidadamente, e ao longo dos anos, têm dado livre curso à sua incerta sabedoria. Transcreve-se, a propósito do que anteriormente referimos, um extracto da entrevista de Luís Filipe Castro Mendes ao jornal "Público" ("como não sou contra o Acordo Ortográfico, autorizei os meus editores a fazerem como entenderem. Não tenho preferência: a ortografia é uma convenção, não a considero um elemento essencial da expressão artística. Eu sei que o Fernando Pessoa dizia que o “y” do “abysmo” era muito importante, eu não acho. Quanto a este acordo, não o avalio em termos científicos, porque não sou linguista; mas está em vigor, e não me sinto por ele diminuído na minha liberdade". Correcto será igualmente transcrever o texto em que Pascoaes, na Revista A Águia, se insurge, à semelhança de Pessoa, contra a reforma ortográfica de 1911: "Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com ilatino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal." 

 Ajudarão também a reflectir sobre este assunto as palavras elucidativas de Fernando Pessoa, que intimamente se associam à epígrafe que abre o presente texto: «[…]o problema da ortografia é o da palavra escrita, nada tendo essencialmente que ver com a palavra falada, visto que esta nada tem com aquela […] sendo a palavra escrita um produto da cultura, ao contrário da falada, que o é do simples uso ou moda [...]" [1] 

Como o ministro da Cultura, assim muitos outros, com igual responsabilidade, se têm adaptado, aclimatado à imposição estabelecida, sem interesse algum em favorecer ou propiciar a discussão que de há muito se exige, expondo-se, pelo contrário, como exemplo a seguir e considerando autoritariamente o assunto encerrado, uma posição do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. Este último, ao afirmar ainda que «a língua portuguesa […] pertence a todos na diversidade com que a usam e enriquecem»;só vem dar razão a quem tem defendido a impossibilidade da «unificação ortográfica» que se apregoa. E entretanto, escorre o dinheiro para tarefas estéreis e inconsequentes sem que partido político algum levante o problema e elucide os portugueses sobre as avultadas somas gastas neste projecto, incluindo viagens e acções de formação para ensinar a «escrever o novo português», em que tantos se ocupam em proveito próprio. Aliás, é o secretário executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Murade Murargy, quem afirma, e fê-lo muito recentemente, que "Não há uma unanimidade sobre se valeu a pena, ou não, o tanto de dinheiro que se gastou. As implicações financeiras da aplicação do acordo são grandes.»

 O certo é que o assunto não está encerrado, senhor ministro Augusto Santos Silva, e a 26 anos de distância, Moçambique e Angola saudavelmente não se decidem e intensifica-se a confusão na aplicação do AO90. Os exemplos somam-se e já foram amplamente divulgados, observando-se todos os dias nos diferentes sectores da sociedade portuguesa. Verifique-se, por exemplo, a sanha devoradora de consoantes mudas (contato, tato, fato, jato, latente, etc.) que, no entanto, o referido acordo mantém, usando o critério da «pronúncia , "ou de sequências que dão origem a palavras desconhecidas («manânimo» ou «suntuoso» em vez de magnânimo e sumptuoso, respectivamente), para além da nefasta convivência com as inúmeras incoerências, facultatividades e ambiguidades impostas pelo referido acordo, originando o caos na aprendizagem dos alunos que já não sabem como escrever. Os exemplos são vários, e até em escolas e universidades já se usa o ano «létivo» e a prática «létiva» (https://www.facebook.com/TradutoresContraAO90/photos/a.645077242260614.1073741827.199515723483437/854733977961605/?type=3&theater); a «elétricidade» é também já uma realidade e os alunos, na confusão diária em que vivem, optam pelo acento em palavras que anteriormente mantinham a consoante muda, tentando respeitar a sua pronúncia: «corréção» e «espétacular» https://www.facebook.com/groups/acordoortograficocidadaoscontraao90/permalink/838915322878592/ 

 Os professores de Língua Portuguesa serão porventura os mais gravemente atingidos por esta imposição, em que se somam os disparates linguísticos, e felizmente são muitíssimos também os que não se resignam e que, ao demonstrar a confusão reinante, ensinam também os alunos a pensar. Não posso deixar de divulgar o trabalho amador de uma jovem colega açoriana (São Miguel) que, com as suas alunas de Latim, em vídeos semanais, e ao jeito da rubrica «Em bom português», tem posto a nu o que se passa: https://www.youtube.com/watch?v=IBn-rmbqdgc 

Porque não pedimos, não queremos e não precisamos do Acordo Ortográfico, como expressivamente escreveu António Emiliano, peço a todos os que reagiram criticamente a esta imposição que se empenhem na divulgação da iniciativa "Referendo ao Acordo Ortográfico de 1990 "e na recolha de assinaturas, em https://referendoao90.wordpress.com/documentos-para-recolha-de-assinaturas/, divulgando e assinando simultaneamente a Iniciativa Legislativa de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico (ILCAO), em http://ilcao.com/?p=19052#comment-26799 ou http://ilcao.com/?page_id=273 

 Maria do Carmo Vieira 

 [1] Fernando Pessoa, A Língua Portuguesa, edição de Luísa Medeiros. Lisboa, Assírio &Alvim, 1997

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem! O AO90 é "um monumento de incompetência e de ignorância".

João Paulo Forte disse...

O "acordo" ortográfico é um atentado ao nosso maior valor identitário, a língua portuguesa. Fez-se um monstro às escondidas e agora quer-se impor o terror por toda a eternidade. Não se trata de evolução da língua, mas sim perversão em prol de interesses obscuros... E é realmente preocupante insistir-se em algo atroz e ver que além do erro histórico que é o "acordo" ortográfico, escreve-se cada vez pior com o alto patrocínio de acordos que nunca o foram...

Anónimo disse...

Se a estupidez pagasse imposto, como disse Graça Moura, o AO 90 pagari a dívida externa de Portugal, da Grécia, da Itália, da Espanha...

Rui Baptista disse...

Querida Amiga Maria do Carmo Vieira: O seu verdadeiro sacerdócio, e estrénuo combate, em prol da Língua Portuguesa obriga-a, agora, em trabalhos hercúleos a lutar, sem desfalecimentos, contra a Hidra de Lerno de um Acordo Ortográfico que só pode ser vencido na fogueira do bom senso dos seus autores, retratando-se!

Bom senso (que disse eu!) de insensatos?

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