sábado, 26 de julho de 2025

INDIGNAÇÃO E REACÇÃO — ASSIM VAI A EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA

Anteontem foi publicada na página oficial do Governo uma Nota explicativa: Educação Sexual na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e no currículo do Ensino Básico e Secundário

Que sentido tem esta nota do Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI)? 

Nenhum, absolutamente nenhum! A não ser reagir à indignação de muitos que têm vindo a terreiro contestar a perda de protagonismo, no currículo escolar, da dita "educação sexual". O que nela se diz de novo devia ter sido dito antes.

Que sentido faz a indignação que precipitou a nota explicativa?

Nenhum, absolutamente nenhum! A não ser reagir à medida do MECI no respeitante à dita "educação sexual". Não, não vou defender o MECI, contudo não posso deixar de notar a ausência da mesma indignação quando se trata de outras medidas da tutela, nomeadamente:

1) supressão de áreas e conteúdos disciplinares fundamentais, redução de tempo lectivo dedicado a disciplinas estruturantes, confundir aprendizagem com manifestação de competências (que cada vez mais se aproximam de habilidades), avaliação dessas competências ou habilidades (os tais domínios?) destituída de adequação pedagógica e razoabilidade.

2) prioridade dada à educação financeira e para o empreendedorismo, no quadro daquilo que impropriamente se designa por "educação para a cidadania", o que, de resto, já havia acontecido nas mudanças curriculares iniciadas em finais de 2011, mas não com esta pujança e estratégia. O doutrinamento está nestas duas "educações para..." como está na educação sexual, só que mais refinado.

3) desaparecimento de outras "educações para...". Recordo que de dezassete (ou dezoito ou mais) restaram oito. E com isto não estou a defender a sua manutenção.

Fica, então, a pergunta: porquê a suprema indignação com o desaparecimento, subalternização, redução (não entendi bem) da educação sexual (seja isso o que for)?

Esta "educação para..." parece ter o dom de polarizar todas as atenções, à esquerda e à direita, das religiões e de fora delas, de conservadores e progressistas, sem contar com a gente da saúde familiar e reprodutiva, da psiquiatria e da psicologia, das muitas terapias e intervenções, das não menos associações, organizações e outras agremiações, algumas de boa-vontade, reconheço... Sim, porque tal "educação para..." está (e não devia) alocada a tudo isto (como outras "educações para..." estão alocadas a outras coisas). Diz-me o meu colega e amigo Andrés Palma Valenzuela que em Espanha é o mesmo, talvez um pouco pior (ver, por exemplo, aqui), porém com o mal dos outros não nos damos propriamente bem.

Mas, o que diz a nota do MECI?

Começa por afirmar ser falso que a sexualidade tenha sido eliminada da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (CeD), afirma que está inserida nas Aprendizagens Essenciais (AE), nomeadamente na Dimensão “Saúde”. Educação sexual é saúde? Bem, deve ser... Tudo tem a ver com a saúde, não é? Fica a dúvida: tem "apenas" ou "principalmente" a ver com a saúde?

Para tentar perceber, detenho-me no exemplo dado. Li a primeira AE para os 2.º e 3.º ciclos: "Relacionar-se consigo e com as outras pessoas com empatia e respeito, numa perspetiva de bem-estar". Educação sexual é relacionar-se consigo e com as outras pessoas com empatia e respeito, numa perspetiva de bem-estar? O que é que esta formulação rebuscada tem a ver com sexualidade? E com a saúde? Também deve ter...

Os exemplos para os 1.º 2.º e 3.º ciclos não esclarecem a minha dúvida, eventualmente, para este último ciclo, a referência a abusos sexuais, a violência de género e contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas... Mas isto é educação sexual?

Passei à frente e fui até ao ponto 4 que é da mesma natureza, apresenta uma explicação a que se seguem AE. Na explicação é dito que nas AE está inserida a "rejeição da discriminação e a promoção da inclusão de todas as pessoas (...), nomeadamente na dimensão 'Direitos Humanos' (...) obrigatória em todos os anos de escolaridade, precisamente por se tratar de um tema fundamental no quadro de uma sociedade democrática". Sim... mas pergunto mais uma vez o que é que esta formulação, que se entende no quadro dos Direitos humanos, tem a ver, de modo mais ou menos directo, com sexualidade?

No ponto 2 diz-se que CeD tem natureza interdisciplinar, devendo ser tratada no quadro das outras disciplinas. Tirando o chavão "interdisciplinar", é o que defendo. Talvez os alunos percebam melhor o valor da liberdade se na História, na Literatura, nas Artes e até nas Ciências ele for "naturalmente" destacado. 

Já tenho dúvidas acerca das acrobacias curriculares previstas e que se referem nesse ponto: "a revisão (...) em curso, fará ligações nas Aprendizagens Essenciais das várias disciplinas às Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento". O Ministério faz isto porquê? Porque supõe que os professores não são capazes de fazer tais ligações?!

No ponto 3 surge a sacrossanta avaliação: a CeD nada seria sem estar ligada a um programa internacional que pudesse comparar os níveis de cidadania alcançados numa infinidade de sistemas de ensino, de escolas... No caso, não é o PISA da OCDE; é o International Civic and Citizenship Education Study (ICCS), da IEA (International Association for the Evaluation of Educational Achievement). 

E é aqui que ficamos a saber algo de grande importância, que as AE de CeD foram elaboradas em função do molde da IEA. Diz o MECI na sua nota: "respeitando o histórico da disciplina, razão pela qual os 17 domínios que vigoraram até agora na disciplina foram incorporados nas novas 8 Dimensões da disciplina revista". Agora entendi, mas podia ter entendido antes se esta informação constasse, como devia, nos novos documentos de CeD e logo à cabeça. A redacção de um documento curricular exige, entendo eu, a referência às fontes.

Neste ponto esclarece-se também que a "lista de 13 objetivos da Educação para a Cidadania cobertos pelo ICCS 2022 (última edição) não contempla a Sexualidade", e que isso foi validado por "peritos internacionais e representantes dos centros nacionais dos países participantes". Aqui temos um argumento de autoridade a que se segue um argumento de actualidade, ambos irrelevantes para fazer escolhas curriculares: "a lista incorpora temas contemporâneos como a cidadania global, a sustentabilidade, a participação política e o combate ao racismo, refletindo uma atualização face aos desafios atuais das sociedades".

No ponto 5 vejo esclarecida uma dúvida que levantei em texto anterior: a Lei n.º 60/2009, de 6 de agosto e a Portaria 196-A/2010 relativas à educação sexual não estão esquecidas. É neste ponto que se dão exemplos do óbvio: a sobreposição de conteúdos patentes nestes normativos e os que fazem parte de programas de disciplinas como Estudo do Meio, Ciências Naturais, e Biologia. É nestas disciplinas que conhecimentos de fisiologia e biologia relacionados com a sexualidade têm pertinência e podem ser ensinados com propriedade pelos professores preparados para tal. Contudo, o que quer que seja a educação sexual não pode ser circunscrita à fisiologia e à biologia...

Nos pontos 6, 7 e 8 o MECI recorda que a escola tem autonomia para fazer e/ou escolher os seus próprios projectos. E dá exemplos daqueles que o Ministério acolhe. Também informa que está a trabalhar afincadamente no Programa Nacional de Saúde Escolar... No conjunto, o texto resvala para uma concepção de educação sexual ligada à saúde (mais uma vez a saúde, a "saúde escolar", a saúde sexual e reprodutiva"...).

O que devemos pensar tanto da indignação como da reacção num campo onde tudo se confunde, e a cada mexida mais confuso fica? Na verdade, não sei, o que sei é que em Setembro os miúdos voltam à escola e hão-de continuar a ser piões nesta embrulhada criada e mantida por adultos cuja obrigação é educá-los.

2 comentários:

Mário R. Gonçalves disse...

Certo, certo. A 'indignação' é mais analfabeta que o objecto da dita. Os pontos 1) e 2) que no início a Helena Damião elenca são o que está fundamentalmente mal. O resto é folclore. "supressão de áreas e conteúdos disciplinares fundamentais, redução de tempo lectivo dedicado a disciplinas estruturantes, confundir aprendizagem com manifestação de competências" é o que de facto atinge e prejudica a educação e portanto os alunos. A menorização das áreas relativas à 'sexualidade ' é uma questão polémica mas ela própria menor. De qualquer forma, já pouco ou nada se falava desse tema na EpC, e quando era pouco era provavelmente mal abordado.

Reduzir a EpC ao mínimo essencial, e aumentar ao máximo o investimento (horas, formação) nas áreas educativas estruturantes, isso sim, teria valido a pena.

Anónimo disse...

"A educação sexual deve ensinar o respeito pelo outro e por si mesmo. Não se trata apenas de biologia, mas de liberdade e responsabilidade."
Simone de Beauvoir
Trata-se, portanto, da pessoa, na sua integridade biológica e metafísica. A educação sexual deve ser ministrada por professores que dominem a biologia, os fenómenos físico-químicos e toda a fenomenologia amorosa envolvida na sexualidade humana.
Enquanto tal não se verifique, os alunos quando regressarem à escola em setembro continuarão a ser "piões", como bem diz Helena Damião, que, depois de enrolados em cordéis, são atirados para baixo e rodam de cá para lá, até caírem no ponto em que atingem o PASEO (Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória).

INDIGNAÇÃO E REACÇÃO — ASSIM VAI A EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA

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