segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Entrevista Professor Carlos Fiolhais à revista Contextual, da Associação de Solidariedae Social dos Professores

 A ASSP preocupa-se com muitas das vertentes da nossa vida pública, com destaque para o seu cruzamento com as questões da Ciência e da Educação. É neste terreno que privilegiamos a sua opinião sobre os seguintes pontos:

1.    Ciência e Tecnologia sempre desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento das sociedades. Qual a influência que a divulgação da Ciência, através de todos os meios disponíveis, pode ter na promoção do interesse pelo conhecimento destas áreas?

CF- Não pode haver criação e aplicação da ciência e tecnologia se a sociedade não reconhecer a relevância desses processos. Estou em crer que, em todo o mundo, mais nuns sítios do que noutros, o papel da ciência e da tecnologia é reconhecido: é graças a estas que vivemos hoje mais e melhor. Mas há muito espaço para progresso: muita gente não tem ainda suficiente consciência do valor da ciência. E a maioria das pessoas que a têm podem ter mais. Somando-se ao papel imprescindível da escola, a divulgação da ciência desempenha um papel essencial na compreensão da ciência pelo público.  Onde há mais ciência é também onde há mais divulgação científica, alimentando-se as duas uma à outra.  Chama-se cultura científica a essa penetração da ciência da sociedade. Melhores índices de cultura científica significam a melhoria do conhecimento do mundo, incluindo o conhecimento de nós próprios.

2.    Que papel pode o ensino da Ciência desempenhar nas questões ambientais?

Sem ensino das ciências, feito a seu tempo na escola, não pode haver cultura científica. Sem acabar nela, a ciência deve começar na escola, e começar o mais cedo possível, logo no jardim de infância, quando as crianças alargam o seu contacto com o mundo. Hoje vivemos grandes desafios ambientais, derivados do sobreaquecimento do planeta causado pelas nossas emissões de dióxido de carbono para a atmosfera. Do ponto de vista científico compreendemos bem a questão e também desenvolvemos algumas soluções, designadamente substituir as energias provenientes de combustíveis fósseis por energias ditas alternativas. Tudo isso deve ser ensinado e discutido nas escolas, porque estas servem para preparar para a vida. Deve ser transmitido não só o estado do planeta, mas também os métodos que usámos e usamos para conhecer esse estado, porque a ciência, mais do que um corpo de conhecimentos, é um método para os obter. Contudo, o referido desafio ambiental não tem solução fácil, porque, para além da ciência, há questões sociais, económicas e políticas, que dividem os países. A escola também devia transmitir essa realidade humana, para além da realidade da Natureza, ligando as ciências exactas e naturais com as ciências sociais e as humanidades. E a consciência ambiental não pode acabar na escola, desempenhando os media um papel fulcral, para que os cidadãos possam fazer escolhas quando fazem intervenções políticas.

3.    Que avaliação faz da situação atual da Educação em Portugal?

Temos grandes problemas nessa área. À partida e desde logo a progressiva desconsideração dos professores, cujo papel importa valorizar. Cheios de trabalho, não apenas pedagógico, mas infelizmente também burocrático, e mal pagos, os professores estão desmotivados. Muitos querem reformar-se o mais cedo possível. E foram cometidos erros de planeamento (ou houve falta dele…), descurando a formação de professores para ocupar vagas em aberto ou que vão abrir. É preciso que o corpo docente volte a ter estímulos, sendo o maior o reconhecimento pela sociedade da sua nobre tarefa de educar. Depois, há questões organizativas – como os currículos, o espaço escolar, os meios pedagógicos (incluindo os computadores)), etc. – que nem sempre têm sido bem tratadas. Vários governos têm tentado conduzir políticas que por vezes se «atropelam» umas às outras, confundindo quem está na escola e fora dela.

4.    O ensino das Ciências está a cumprir a sua função de estimular conhecimento, curiosidade e sentido crítico na Educação básica?

A educação básica é básica: nela assenta todo o edifício escolar. Respondendo de forma sumária, sim, está, mas pode fazer melhor.  Os educadores e professores dão todos os dias o seu melhor para estimular a curiosidade natural dos mais novos. Mas as distrações são muitas – incluindo as distrações dos telemóveis e da Internet – e o seu trabalho não é fácil.  Fez-se já um grande caminho de integração de elementos de ciência no ensino básico, mas pode-se fazer melhor: por exemplo, as boas práticas do ensino experimental deviam ser mais conhecidas e os bons exemplos deviam ser premiados.

5.    Considera que atualmente há uma boa ligação entre a Ciência, a Tecnologia e as Empresas?

A actividade da maioria das empresas assenta hoje, de uma forma ou de outra, na ciência e na tecnologia. Estas empregam os jovens que o ensino superior forma. As instituições de ensino superior têm tentado aprofundar a sua ligação às empresas. Mas há aqui um amplo espaço para melhoria: ainda há alguma desconfiança mútua e alguns entraves burocráticos a projectos conjuntos. As estatísticas dizem que a maior parte da investigação científica e tecnológica é feita no sector privado, nas empresas, mas julgo que esses dados estão um pouco inflacionados. As empresas podem e devem, para seu próprio benefício, investir mais em ciência e tecnologia e devem fazê-lo em boa integração com os centros de investigação, que na sua grande maioria estão ligados ao ensino superior. Isto é, há que multiplicar os contactos entre as instituições de ensino superior e as empresas. Têm objectivos diferentes (por exemplo, as instituições de ensino superior não têm de ter lucro), mas complementares.

6.    Se não, o que falta fazer? Qual o papel dos dois subsistemas do ensino superior neste processo?

O ensino superior está, pelo menos desde os tempos do ministro Veiga Simão, no regime anterior, articulado em ensino universitário e politécnico (uma divisão que existe tanto no sector público como no sector privado). Falamos, por isso, de um sistema dual. Mas o certo é que essa divisão não é nítida - por exemplo há universidades com ensino politécnico e politécnicos com ensino universitário. E, além disso, cada vez mais os politécnicos reclamam uma parte do q1ue era apenas  estatuto universitário. A referida dualidade, que, num país muito desigual, liga muito à questão do desenvolvimento regional, devia ser debatida. E não deveria haver medo de fazer mudanças se estas forem julgadas necessárias. 

7.    Qual a avaliação que faz do incremento que a Inteligência Artificial está a ter nas sociedades em geral?

A Inteligência Artificial está em explosão por via do desenvolvimento da sua modalidade generativa: isto é, programas como o ChatGPT, permitem criar obras que parecem humanas. A sociedade tem aqui também um grande desafio. Haverá mudanças que não sabemos ainda bem quais são – alguns trabalhos humanos passarão a ser automatizados, por exemplo, como de outros modos já aconteceu no passado. Mas há, claramente, alguns perigos, designadamente a capacidade de fazer e espalhar concepções virtuais que muitos podem confundir com reiais. O real e o virtual estão cada vez mais difíceis de distinguir e isso acarreta perigos sociais. È cada vez mais fácil sermos enganados.

8.    Qual o papel que a Inteligência Artificial pode ter no Ensino Básico/Secundário e nas Universidades e Politécnicos?

Sei que há algumas tentativas em curso do seu uso e a experiência devem ser avaliadas. O papel dessa Inteligência será maior nas Universidades e Politécnicos do que no básico e secundário. Há mudanças que se antecipam: por exemplo, a avaliação por escrito terá de ser feita com mais critério. Sendo a favor da inovação, não posso deixar de chamar a atenção para a cautela que é sempre preciso quando se introduzem novidades no ambiente educativo. A escola pode e deve ser inovadora, mas tem também de ser conservadora. Não pode trocar o certo pelo duvidoso. E vejo muitos estudos hoje que põem em causa o excessivo uso de ecrãs na escola. A pandemia mostrou-nos que, se os ecrãs são uteis, a presença pessoal tem componentes insubstituíveis. Estou em crer que os professores nunca serão substituídos por máquinas, porque a escola é acima de tudo um lugar de promoção da humanidade.

9.    Os manuais escolares estão a ser substituídos pelo digital. Considera essa substituição positiva do ponto de vista dos protagonistas da Educação?

O digital tem o seu papel, se me é permitido o trocadilho. Mas eu sou, por formação, um leitor e autor do papel. Aprendi por manuais em papel e acho que este tem enormes vantagens. Sou autor de vários manuais, dos quais há versões digitais, que terão uma vantagem ou outra, por exemplo a leveza ou a procura rápida de texto. Ensaios feitos em países mais desenvolvidos estão a desfazer uma «ilusão tecnológica» que foi criada apregoando a total superioridade do digital. Para os governos há a tentação de supor que os problemas da educação se curam com tecnologia. Mas não: a educação é um problema humano, que se cura, ou melhor que temos de procurar curar, com mais humanidade, em especial formando melhor os nossos professores e confiando mais neles.

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