Enviado pelo académico e crítico literário Eugénio Lisboa, transcreve-se, com o prazer de sempre, mais um seu valioso texto literário publicado
no “Jornal de Letras”:
“e as insistentes
palavras
parecem desistir enquanto avançam”
parecem desistir enquanto avançam”
Armando Silva Carvalho
Convocado para glosar estes dois versos em epígrafe, pareceu-me que poderia, sem dificuldade, glosar, quase interminavelmente, o insistente poder da palavra, no poema. As pistas são muitas. Tomemos por uma delas, um pouco ao acaso.
Nestes dois versos do poeta Armando Silva Carvalho, alude-se
àquilo que é fundamental no texto poético e, também, no texto literário, em
geral: a palavra, o poder da palavra, como elemento nuclear constituinte desse
mesmo texto. A palavra: mas não se trata, aqui, de uma palavra qualquer, ou,
antes, não é a palavra usada no seu modo corrente da fala de todos os dias. No
texto poético, as palavras são usadas de modo muito especial, com o fim de
permitirem ao poeta fazer uma exploração eficaz dos seus próprios assombros
(como dizia Christopher Fry). Paul Claudel, falando de poesia, dizia: “São as
palavras de todos os dias e contudo não são as mesmas.” (“Ce
sont les mots de tous les jours et ce ne sont pas les mêmes”). São realmente as palavras de todos os
dias, mas deslocadas – nem que
ligeiramente – do seu sentido e uso corrente: por associações inesperadas e
refrescantes com outras palavras ou por qualquer outro tipo de “deslocação”.
No texto literário e, sobretudo, no texto poético, interessa
não só o significado da palavra, mas também o seu som, o seu volume, o seu
peso. O poema faz-se com palavras usadas com toda a sua carga significante e
sonora. Conta-se que o pintor impressionista Degas (o das bailarinas) se
lamentou, um dia, junto do poeta Mallarmé, dizendo que, tendo embora ideias
magníficas, não conseguia escrever um poema que prestasse. Sibilino, Mallarmé
respondeu-lhe que um poema não se fazia com ideias, mas sim com palavras. É
claro que a afirmação de Mallarmé contém alguma verdade, mas é extremista: os
poemas fazem-se de facto com palavras, mas não só com palavras, fazem-se também
com ideias. Simplesmente, as ideias, só por si, não fazem o poema: é preciso
construir essas ideias com palavras determinadas, associadas de maneira
especial e colocadas no discurso de maneira peculiar. No final, fica-se sem
muito bem saber se o que nos toca, nos comove, nos atinge é a ideia ou o modo como ela é formulada, com aquele acervo
peculiar de palavras e com aquele som (aquela música) que emitem. É o que
exprimia o poeta Paul Valéry, ao dizer: “O poema é uma hesitação prolongada
entre o som e o sentido.” Isto é, hesitamos interminavelmente em decidir se é a
ideia ou o som dela (a música dela) que nos atinge.
É extraordinário o inventário enorme que se pode estabelecer,
de testemunhos dados por escritores eminentes – isto é, por pessoas que vivem e
trabalham com palavras – sobre o poder nuclear da palavra, sobre o fascínio
que, para eles, tem a palavra. Por exemplo, o grande contista e notável poeta
inglês Rudyard Kipling observava: “Words are, of course, the most powerful drug
used by mankind” (“As palavras são, é claro, a droga mais poderosa usada pela
humanidade”).
Reparem que, nos dois versos de Armando Silva Carvalho, as
palavras são “insistentes” e não desistem, apenas “parecem desistir”, porém
“avançam”. Vem aqui a propósito assinalar que, muito embora, o poeta saiba que
a sua matéria prima é a palavra, por vezes, hesita e duvida da sua eficácia, da
extensão do seu poder, da sua total adequação
ao projecto que tem em vista. Estes versos de T. S. Eliot são disso testemunho:
“É estranho que as palavras sejam tão inadequadas. / No entanto, qual asmático
lutando por um pouco de ar, / assim o amante deve lutar pelas palavras. /” Isto
é: apesar de uma possível inadequação,
o manipulador de palavras (o amante, o poeta) não deve desistir de as usar para os seus fins. E sabe que só com
elas – as palavras – se poderá salvar.
No entanto, as palavras não são utilizadas, manipuladas por toda a gente, com o mesmo grau de
empenho, de intensidade, de investimento. O poeta francês Charles Péguy observava,
a este respeito, que “uma palavra não é a mesma num escritor e noutro escritor.
Um arranca-a do ventre. Outro tira-a do bolso do seu sobretudo.”
A palavra, repito, com o seu volume, o seu sabor, a sua
sonoridade singular tem, no poema, um valor essencial. Faz-nos hesitar, como já
disse, entre o som e o sentido.
A palavra tem de distinguir-se, de maneira muito clara e
forte, do silêncio. Se o não fizer, melhor será que nos remetamos ao silêncio :
Eurípedes: “Fala, caso tenhas palavras mais fortes do que o silêncio ou, então,
guarda silêncio.”
O poeta sabe muito bem que vive de palavras e que fenece da
falta delas: não da falta de quaisquer palavras, mas da falta daquelas palavras
especiais de que precisa para fazer poesia. Perguntaram um dia ao poeta
irlandês, William Butler Yeates se ele se sentia bem. Respondeu: “Não muito
bem. Hoje só consigo escrever prosa.” Queria com isso dizer que, nesse dia, só
conseguia usar palavras, para o fim básico da comunicação e não, daquela maneira especial que faz com que as
palavras de todos os dias não sejam as mesmas palavras de todos os dias. Na
prosa de pura – e básica – comunicação, as palavras perdem aquele peso e sabor
especial que têm na poesia ou na prosa literária. “A poesia está para a prosa
como o dançar está para o andar”, disse o poeta inglês John Wain. Na poesia, as
palavras são diferentes, soam diferente, funcionam de maneira diferente,
percutem um som diferente. Os testemunhos disto chegam-nos de todo o lado. O
poeta francês Léon-Paul Fargue, por exemplo, dizia-o desta maneira: “É preciso
que cada palavra que cai seja o fruto bem maduro da suculência interior.”
Poderíamos continuar, interminavelmente, nesta sinalização da
palavra, como constituinte fundamental (mas não único) do texto poético ou, simplesmente,
do texto literário.
Seja como for, repito, teimosamente, com Claudel: “São as
palavras de todos os dias e contudo não são as mesmas.” São as “insistentes”
palavras do poema de Armando Silva Carvalho, que “parecem” desistir mas não
podem desistir, porque têm de “avançar”, com todo o seu som, com toda a sua
música encantatória, para construírem, ante nós, atónitos, o poema.
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