terça-feira, 9 de novembro de 2021

"Uma nota de introdução à edição portuguesa" de "Está a Brincar Senhor Feynman!"



A Gradiva acaba de publicar numa tradução completamente revista o grande livro auto-biográfico de Richard Feynman, que tem um prefácio de Onésimo Teotónio Almeida, professor na Brown University nos EUA (nesta edição há um outro prefácio de Bill Gates). Aqui vai o prefácio do Onésimo (sem as notas):

 Quando enviei ao meu amigo Guilherme Valente, da Gradiva, um exemplar do livro de Richard Feynman sugerindo‑lhe a publicação em português, acrescentei um parágrafo à carta, dizendo‑lhe, sem mais rodeios, que queria escrever a introdução. Atrevimento que venho agora justificar ao materializar o desejo que manifestei ao editor. 

O livro andava havia tempos pelas livrarias sem eu o topar. Foi o Alex, um amigo de Biologia, que, na versão impressa das anedotas que regularmente me envia do seu laboratório1, insistiu numa nota garatujada: You must read it

As recomendações do Alex nunca falharam e, por isso, fui arranjar um exemplar. Li‑o em ritmo acelerado. No fim, ainda embalado, registei brevissimamente a minha impressão global nos termos que agora traduzo: «Que tipo! Do género ‘Sim, eu sei que sou grande, mas isso não é nada de especial. Sou um ser humano e não vejo razão nenhuma para me armar em Deus ou sequer no seu sacerdote! Humano, demasiado Humano (Nietzsche)’.» 

Ao relê‑lo agora, antes de escrever esta nota introdutória, sinto o mesmo a propósito do livro e da personalidade de Richard Feynman, que ressalta desta série de histórias por ele contadas a um amigo, que as passou ao papel. Admito, porém, que o meu entusiasmo possa estar aqui reforçado pelo contacto com essa jóia da literatura científica que é The Character of Physical Law (Traduzido em português: O Que É Uma Lei Física, Gradiva, 1989) , em que Feynman se revela um grande escritor, senhor de um estilo elegante, que consegue transmitir com simplicidade e transparência, de forma cristalina, conceitos científicos profundos. Depois tenho essa imagem de Richard Feynman ele próprio filmado ao vivo (em vídeo) a dar as lições que constituem o livro: uma inteligência fulgurante a dimanar‑lhe do corpo inteiro, superiormente descontraído e sem pose e com um sentido de humor sorridente a iluminar‑lhe as palavras. Tudo menos o cliché do prémio Nobel. Mas creio ser mesmo essa imagem que nos dá este livro. 

Aliás, ele dispensa quaisquer introduções, sobretudo esta. Mas não resisto a chamar a atenção para alguns pormenores culturais que vejo como virtudes e em Portugal serão por não poucos considerados defeitos. Na verdade, Richard Feynman surge‑nos como a quinta‑essência prototípica e paradigmática do cientista contemporâneo. Um profissional (superprofissional) que se assume apenas como cientista e somente na área da sua especialidade. Não se evade às suas responsabilidades de cidadão. Leva a sério, mais que ninguém, a missão que lhe é entregue de, por exemplo, avaliar a qualidade de livros didácticos e demite‑se quando vê que afinal esse ofício não era para levar assim tão a sério. Mas Feynman não transfere para outras áreas a convicção de competência. No resto, é um cidadão como os outros, com plena consciência de não se dever meter em coisas que não sabe. É capaz de desenvolver hobbies, e tornar‑se até perito neles, como acontece com a sua diabólica habilidade de decifrar códigos e a sua perícia em tocar tambor na bateria de uma escola de samba. Mas não tem qualquer rebuço em dizer que não sabe quando não sabe ou admitir candidamente o que muitos considerariam uma fraqueza, como confessar que foi hipnotizado apesar de ter procurado resistir. Recordo‑me de, nos anos 1960, ter lido algures um texto de Jorge de Sena em que, numa nota, esboçava um pouco caricatamente o professor universitário norte‑americano como alguém que trabalhava intensamente das nove da manhã às cinco da tarde, mas depois deixava de ser universitário e ia para casa cortar a relva do jardim. Esses traços, a que ainda hoje ouço referências em Portugal, eram exagerados. Reflectiam o olhar do intelectual europeu (e em que elevado grau representava Jorge de Sena esse modo de ser!), sobretudo das letras e humanidades, que, exceptuando esse grupo de umas quantas personalidades invulgares, como era Jorge de Sena, chama «cultura» a uma série de conhecimentos diletantes e superficiais sobre tudo ou quase tudo e aponta displicentemente o especialista norte‑americano como uma deformação aberrante. Mas trata‑se apenas de estilos, maneiras de ser, preferências, porque o universitário norte‑americano, por hábito cultural, coíbe‑se de falar fora da sua área. Deixa isso a outros, o que não significa que não leia sobre temas alheios aos seus interesses profissionais. É bom que, do outro  lado do Atlântico, determinado tipo de preconceituosos se apercebam disto. O especialista norte‑americano desconfia do erudito verboso, pronto a discorrer sobre o universo inteiro com convencimento e presunção, como se fosse possuidor de acesso privilegiado ao mistério das coisas. Naturalmente que os exageros de caracterização habitam os dois lados, mas o ponto a vincar aqui é essas diferenças constituírem paradigmas tradicionalmente estabelecidos e cultivados com apreço. Revelam concepções diferentes da sociedade, do indivíduo, e acima de tudo do papel do cientista, do universitário, ou do scholar, já que a palavra «intelectual» para englobar todo esse grupo não é geralmente usada nos Estados Unidos. Numa sociedade em que há especialistas em tudo, os amadores assumem‑se como amadores nas áreas em que o são. Respeitam o seu interlocutor e não o maçam com banalidades sobre coisas que toda a gente sabe. Até porque ele(a) não sabe se esse(a) interlocutor( a) não será especialista no próprio assunto sobre o qual ele(a) se atreve a dizer umas balelas. Mas se esses especialistas em cultura geral, sabedores de tudo e leitores de tudo (do género de sabença de ouvido ou de leitura em diagonal dos semanários ao fim‑de‑semana), ainda por cima se dão ares de importância, então é que Feynman vai às nuvens: «Fico doido com palermas pomposos!» 

A tolerância, o respeito pela área em que os outros são especialistas, o gosto pela frontalidade no diálogo, como troca livre de pontos de vista, o estilo nonsense, uma grande dose de reconhecimento das limitações do conhecimento humano, são características que ressaltam destas páginas, personificadas num modelo ou modo de estar que é emulado pelo profissional das ciências e da universidade liberal da melhor tradição norte‑americana. Feynman não seguiu as pisadas de tantos Nobel  sobre quem o prémio tem efeitos sacramentais: como que eleva o premiado a um estatuto quase religioso, meio profético meio metafísico, e impele‑o a fazer declarações grandiosas sobre o mundo, a história, o universo. To go off the deep end, como é conhecida a atitude. 

Einstein comparou‑se uma vez com uma criança que entrara numa biblioteca enorme com livros escritos em variadíssimas línguas, de onde apenas tirara um volume e conseguira traduzir algumas páginas. Newton falou de si em termos semelhantes: sentia‑se como um garoto a brincar na orla de um vasto oceano de verdade, entretendo‑se a apanhar um seixo ou uma concha. 

Apetece aqui citar o parágrafo final do já referido livro de Richard Feynman, The Charater of Physical Law. Após umas considerações em epílogo sobre o período fascinante que a ciência vive hoje e os padrões em que se processam as descobertas científicas, fecha a última lição nestes termos: «Mas o que há na Natureza que permite prever o comportamento do todo a partir de uma só parte? Não é uma questão científica. Como não sei a resposta, vou responder de uma forma não científica. Penso que é porque a natureza tem uma grande simplicidade e, portanto, uma grande beleza.»

 Quando, há cerca de um ano, uma comissão nacional investigava as razões do malogro do vaivém espacial Challenger, à frente dela estava nem mais nem menos que Richard Feynman. Lembro‑me de o ver na televisão, com um à‑vontade impressionante, a explicar aos políticos no Senado, em Washington, e através da televisão ao país inteiro, o que apurara o grupo de cientistas sobre as causas da fractura do anel de borracha  à volta da Challenger. Como sempre, fê‑lo com a simplicidade arrasadora de quem sabe profundamente das coisas e consegue falar delas agarrando o essencial, graças a um poder de comunicação invulgar, a que quase nunca é alheio um finíssimo humor. Feynman pediu um copo com água e gelo e um elástico de segurar maços ou rolos de papéis. Esticou o elástico diante dos circunstantes. Tudo normal. Depois mergulhou‑o no copo e deixou‑o ali algum tempo. A seguir retirou‑o e dobrou‑o. O elástico partiu‑se. Feynman concluiu para os presentes mais ou menos nestes termos e com o ar que Cristóvão Colombo deveria ter tido na história provavelmente apócrifa de pôr o ovo em pé: «Foi o que aconteceu com o anel do Challenger. Estava demasiado frio no cabo Canaveral aquando do lançamento da nave espacial. Com a trepidação, o anel de borracha da base, sem elasticidade, partiu‑se.» Tomas, meu ex‑professor de Filosofia, e agora reformado, companheiro de cavaqueio frequente, comentou assim essa história, que ele seguira igualmente pela televisão: «A câmara não mostrou os rostos estupefactos daqueles sisudos senadores a ouvir atentamente o relatório de Feynman. Esperando, com certeza, uma lição complexíssima com terminologia científica impenetrável misturada de fórmulas, ao depararem‑se com uma explanação tão lucidamente simples, imagino uns quantos a exclamarem de si para si: ‘Deve estar a brincar, Sr. Feynman!’» 

Onésimo Teotónio Almeida 
Providence, Rhode Island Junho de 1987 

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