sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O CORPO NA LITERATURA PORTUGUESA


“Não é uma alma, não é um corpo, é um homem”.

Montaigne

 Em cumprimento da promessa de responder ao comentário do engenheiro Ildefonso Dias ao meu post “Eu não tenho o meu corpo, eu sou o meu corpo” (30/10/2016), embora a minha memória sofra da erosão dos anos vividos ainda me sinto capaz, como diria Nietzche, "de cumprir as promessas que faço". 

 "Alea jacta est!. Um conceito enraizado em santa ignorância, ou mesmo em indivíduos que rescendem a falsa intelectualidade, faz com que a destreza e a força físicas continuem a viver em resquícios de euzebiozinhos  retratados pela crítica social do imortal  Eça , em “Os Maias””. Por seu turno, Ramalho Ortigão  dedicou uma vastíssima obra de inegável valor literário em defesa das práticas corporais, por ele próprio seguidas, quando, por exemplo,  escreveu: “Creio que nasci para homem de forças, para Hércules de feira”. Em tempos mais chegados, Almada Negreiros, tido por Bigotte Chorão, “talvez, como a personalidade mais completa e complexa e fascinante da cultura portuguesa do século XX”, escreveu: “É preciso criar a adoração dos músculos". E os exemplos estão bem longe de esgotados.

De meu avô materno,  presidente da Câmara Municipal do Porto (1925), José Pereira da Silva, pessoa cultíssima com mente sã em corpo são, para utilizar a expressão latina mens sana in corpore sano, julgo ter herdado genes que fizeram com que eu me tornasse  campeão de pesos e halteres quando quarentão  e seguido o magistério das actividades corporais que exerço  por vocação e gosto e pelo qual me vou batendo, na medida das minhas forças de octogenário, por vezes, sob o azorrague da incompreensão de falsos profetas que anunciam, como eu costumo escrever com amarga ironia,   estarem os músculos na razão inversa da inteligência!

 A propósito, contava-me a minha progenitora peripécias da vida atlética de seu pai que tendo assistido, com amigos da tertúlia  cultural portuense, a um espectáculo circense em que o homem das forças, o protótipo de Hércules de Feira (de bigode retorcido, musculatura impressionante sob o foco dos holofotes e maillot de pele de tigre), oferecia uma quantia em dinheiro a quem, a seu exemplo, fosse capaz  de dobrar uma barra de ferro. Depois de muito instado pelos amigos desceu ele à pista realizando o referido exercício. Quando o artista circense se prestava para lhe  dar o “prémio pecuniário”, que lhe cabia por direito da sua façanha, o meu Avô, obviamente,  não o aceitou.

Mas voltemos a Ramalho, talvez, a personagem literária que mais se bateu em defesa da exercitação física dos jovens. Escreveu ele:

“Leitor! Leitora! – falemos dos vossos filhos.

Eles e elas são pálidos, têm as gengivas esbranquiçadas, os dentes baços, as pestanas longas, as pálpebras oftálmicas, os cantos da boca levemente feridos, o sorriso triste, os movimentos indecisos e fracos, o olhar quebrado. Precisam de tomar banhos frios, de comer carne ao almoço, de beber uma colher de óleo de fígado de bacalhau todos os dias, de fazer ginástica e de que se lhes corte o cabelo.

Pelo que respeita ao corpo, se vêm de um ‘bom colégio’, sabem de ginástica o suficiente para fazer dele um mau arlequim, mas nunca empregaram a sua força nos exercícios verdadeiramente úteis a um homem. Não estão habituados à fadiga das marchas, não sabem defender-se se os esbofeteiam, não sabem nadar , desconhecem os princípios mais elementares da higiene. [Na Roma Antiga, em apodo aos ignorantes, dizia-se: neque natare, neque litteras, isto é, nem sabe nadar, nem sabe ler"]! Nós mesmos já fomos educados assim. Vede o que estamos sendo! Vede os homens que deitámos. Vede o país que fizemos e a sociedade que construímos!

Possam os nossos filhos reclamar a felicidade a que seus pais não têm direito, apresentando-se ao futuro com merecimentos que nós não podemos invocar! Suspensão de veemências e de ironias! Trata-se da infância. Não nos dirigimos aos políticos. Conversamos honrada sinceramente contigo, leitor amigo, leitora honesta.

Pesa sobre vós uma responsabilidade tremenda. No estado em que se acha a sociedade portuguesa, a família é um duplo refúgio – do coração e do espírito. A família é dos pouquíssimos meios pelos quais ainda é lícito em Portugal a um homem honrado influir para o bem no destino do seu século. Querido leitor! O modo mais eficaz de seres útil à tua pátria é educares o teu filho. Consagra-te a ele”.

Perante a obesidade dos nossos jovens, perpetuada pela vida fora,  confinados a pequenos espaços dos andares actuais sem jardins ou quintais, onde possam brincar ("quanto maior e mais activa for a força lúdica mais a criança é inteligente e disponível para um destino superior", segundo Émile Planchard), correr ou saltar,  tornou-se  numa epidemia do século XX, e deste nosso tempo, percursora de doenças várias e, algumas delas, letais: v.g.,  doenças cardiovasculares, diabetes, patologias da coluna, etc.


Ipso facto, embora a Ramalhal figura (tratamento dado a Ramalho por Eça) tenha escrito que “em Portugal, país de magricelas, de derreados de espinhela caída, nada mais importante do que a Educação Física”, a  Educação Física e Desportiva nas escolas de hoje  tem sido  tratada como parente pobre das cadeiras ditas intelectuais, entre elas o Português e a Matemática, ambas sobranceiras na sua declarada e reconhecida importância, assumindo-se em revanche de ultrajada e ofendida, como uma hodierna questão de SAÚDE PÚBLICA!

P.S.: Aliás, temática abordada, em idos de 72, na Sociedade de Estudos de Moçambique, em conferência por mim aí proferida intitulada: "Educação Física, Ciência ao Serviço da Saúde Pública".

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