terça-feira, 24 de dezembro de 2024

UM CRIME OITOCENTISTA

Artigo meu num recente JL:

Um dos crimes mais famosos do século XIX português foi o envenenamento de três crianças, com origem na ingestão de amêndoas e de um bolo recebidos pelo correio na sua casa da Rua das Flores, no Porto, na Páscoa de 1870. Uma delas, Mário Sampaio, de treze anos, veio a falecer. As crianças foram logo assistidas pelo seu tio, o lente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto Vicente Urbino de Freitas (1849-1913), que lhes mandou administrar clisteres. As últimas palavras de Mário foram: «O clister do tio matou-me e eu não quero morrer.» O médico não tardou a ser preso, sendo as suspeitas agravadas por um alibi falso sobre a autoria da expedição da encomenda (pretendeu estar em casa do escritor Adolfo Coelho em Lisboa).

Ao fim de um processo muito publicitado foi, em 1893, condenado a oito anos de prisão celular, seguidos de 20 anos de degredo. O apelo feito pela defesa não resultou: levou até ao agravamento da pena para nove anos. O professor Urbino de Freitas ficou preso na Penitenciária de Lisboa até 1901, quando uma amnistia parcial lhe permitiu iniciar o degredo em Angola, onde gozou de alguma liberdade, voltando a exercer a sua profissão. Um perdão do rei D. Carlos concedeu-lhe em 1905 total liberdade, ainda que no exílio: rumou ao Brasil, onde também exerceu medicina. Finalmente, em 1913, já depois da instauração da República, regressou a Portugal. Visitou então o Porto, onde já não ia há duas décadas, mas morreu repentinamente passadas escassas semanas de pneumonia.

Decisivo no desfecho do processo foi o aparecimento de uma testemunha credível que afirmou que Urbino tinha sido o mandante do envio da encomenda fatal. A acusação também se serviu do facto de ele poder lucrar com o crime, uma vez que a sua mulher, Maria das Dores, filha de um rico negociante de linhos, ficaria a única herdeira. De facto, já tinha havido um outro envenenamento na família: José António de Sampaio Júnior, irmão de Maria das Dores, morrera em circunstâncias estranhas no início de 1890, com a assistência de Urbino, tendo mais tarde surgido a acusação, não provada após os exames dos restos do cadáver, de que ele seria responsável por mais essa morte. A sogra de Urbino foi veemente em tribunal: «Foi este homem o envenenador do meu querido Mário. Como foi o do nosso José. Juro-o, Sr. Juiz! Juro-o, Srs. Jurados!»

Urbino de Freitas, formado em Medicina na Universidade de Coimbra, era um conceituado clínico antes do processo, com consultório montado no centro do Porto. Era, tal como o seu irmão, João António de Freitas Fortuna, amigo de Camilo Castelo Branco, que se suicidou em 1890 dois meses depois do crime da rua das Flores (o irmão era muito próximo do escritor, a ponto de os três estarem sepultados no mesmo jazido no cemitério da Lapa no Porto). Camilo expressou o desejo de que Urbino fosse inocentado. Outros escritores, como Raul Brandão e Júlio Dantas, também escreveram sobre o assunto. Alguns médicos e químicos de Coimbra defenderam Urbino, assim como peritos estrangeiros consultados pela defesa, ao contrário de um grupo de médicos e químicos do Porto que examinaram as provas toxicológicas no corpo de Mário Sampaio: havia, de facto, substâncias tóxicas. 

Nessa altura a química forense estava a dar os seus primeiros passos entre nós, inaugurando um frutuoso caminho de colaboração entre justiça e ciência. Os jornais da época contaram o drama. Foram escritos vários livros, uns contra e outros a favor de Urbino, mais contra do que a favor. E ainda hoje o processo faz correr rios de tinta. Será Urbino inocente (ele, a sua mulher e o irmão sempre sustentaram essa inocência) ou culpado (como as provas apresentadas em tribunal indiciaram)?

Dois livros muito esclarecedores sobre o caso foram escritos pelo professor de Engenharia José Manuel Martins Ferreira, que ensinou na Universidade do Porto e hoje ensina na Universitet i Sorost Norge, na Noruega. Num processo de «arqueologia literária» levado a cabo nos alfarrabistas portuenses, coleccionou tudo o que achou sobre o crime e consultou o processo nos arquivos judiciais. O minucioso resultado encontra-se nos livros Urbino de Freitas. Um médico ou um monstro? (Húmus, 2020) e Urbano de Freitas. As manobras de bastidores, este acabado de sair na mesma editora. 

Se o primeiro livro trazia na capa o retrato de Urbino em vestes doutorais, o segundo traz o jovem Urbino com capa de estudante, acabado de se formar na Lusa-Atenas. Os dois têm muitas fotografias e um design muito cuidado da responsabilidade da editora de Vila Nova de Famalicão, que tantas boas obras tem produzido. O segundo livro, que, como é explicado pelo autor, pode ser lido independentemente do primeiro, traz novas e importantes achegas. Há sempre coisas a descobrir sobre crimes, mesmo que antigos. Um conjunto de cerca de 200 cartas que estiveram na posse do irmão de Urbino, Freitas Fortuna, falecido em 1899. Graças à família, o autor pôde aceder a essa documentação que ele expõe com rigor, incluindo cuidadas transcrições dos documentos mais relevantes. 

Há cartas de vários tipos: algumas são relativamente banais por documentarem a estratégia da defesa que é bem conhecida (o irmão foi o grande mentor dessa defesa, tendo nisso gastado parte da sua fortuna: curioso o nome dele), outras são cartas que o autor chama confidenciais porque mostram relações corruptas com jornalistas que pediam dinheiro em troca de notícias favoráveis, e ainda outras são secretas, porque tratam do arrolamento de testemunhas falsas, o que é incriminado por lei. O desenrolar do processo é apresentado de modo a ir aumentando o suspense nos leitores, tal como num bom livro policial. No final, fiquei com a ideia de que Urbino não pode ser considerado inocente. Tem demasiados rabos de palha.

Saber-se-á agora tudo sobre este «crime do século»? Sabe-se mais, mas não se sabe tudo. Por que razão um homem inteligente como Urbino se enredou nesta trama que tantas dores lhe trouxe assim como à sua família (curioso o nome da mulher)? Teria tido cúmplices? Esta história dava um bom filme da Netflix se houvesse por aí um produtor atento.

A MONUMENTAL OBRA POMBALINA

Meu artigo recente no As Artes entre as Letras:

Acaba de sair do prelo da Imprensa da Universidade de Coimbra a segunda edição, em capa mole, do primeiro tomo do primeiro volume da Obra Pombalina, que vai reunir não só a obra escrita pelo punho de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), que se tornou marquês de Pombal em 1769, como as várias obras que ele directamente inspirou e para a qual teve a colaboração de diversos coautores. Os directores da Obra são o historiador José Eduardo Franco e os filósofos Pedro Calafate e Viriato Soromenho Marques, o primeiro da Universidade Aberta e os segundos da Universidade de Lisboa. O livro vindo a lume, que é a primeira parte dos Escritos de Inglaterra (1738-1739), foi coordenado pela historiadora Ana Leal Faria, também da Universidade de Lisboa. O plano geral das Obras Completas, que são resultado do projeto «Pombal Global», prevê 14 tomos e 50 volumes, um monumental empreendimento que só será possível graças ao esforço de uma enorme equipa se tiver suficiente apoio mecenático.

O tomo I, Escritos de Inglaterra (1738-1743), inclui a correspondência diplomática quando o futuro marquês de Pombal (doravante só Pombal) era «enviado» (hoje diríamos «embaixador»), do rei D. João V (1689-1750, rei 1706) em Londres, na corte de Jorge II. Faltam ainda três volumes para completar o tomo, o que significa que a compilação de manuscritos redundou praticamente num volume por ano. O tomo II, em 6 volumes, intitular-se-á Escritos de Áustria (1745-1747), referindo-se ao período em que Pombal foi «enviado» do rei português à corte de Maria Teresa em Viena de Áustria. Em 1750, quando D. João V morreu e o seu filho D. José I (1714-1777) foi entronizado, ele tornou-se Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra (1700-1755). Esse período será coberto pelo tomo III, Negócios Estrangeiros, em dois volumes. Após o Terramoto de 1755, Pombal padrou a ser Secretário de Estados dos Negócios Interiores do Reino, lugar em que permaneceu até o rei morrer, em 1777, quando ocorreu a chamado «Viradeira», isto é o repúdio das ideias e métodos de Pombal. Perante a retirada do rei da cena pública, assustado com o grande desastre natural, Pombal tornou-se um homem de Estado, diríamos hoje «primeiro-ministro», com amplos poderes. As Obras Completas Pombalinas preveem para esse período dez tomos, do IV ao XIV, com um total de 32 volumes, agrupados por temas: Administração Colonial, Arquitectura, Política e Práticas Sociais, Perseguição dos Jesuítas e da Nobreza, Igreja Católica, Assistência, Economia. Justiça e Ordem Pública, Aparelho Militar, Educação e Epistolografia Diplomática). O tomo XV apresentará a Apologia de Pombal, escrita no seu retiro perto da vila com o mesmo nome, em que se defende das acusações que lhe foram movidas, e, finalmente, o tomo XVII será uma Biografia, contendo documentação mais pessoal. Louvando a visão deste grande projeto, só espero que ele atinja bom porto.

O livro já publicado contém, para além da uma introdução geral em que Pombal e as Obras Completas Pombalinas são apresentadas pelos directores, uma introdução às Cartas de Inglaterra, da autoria da coordenadora do primeiro tomo. Depois dos critérios da educação, surge o grosso do volume contendo cartas de ofício redigidas pelo enviado e dirigidas a António Guedes Pereira (?-1747), que era Ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos e que interinamente ocupava o cargo de Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, enquanto o titular Marco António de Azevedo Coutinho (1688-1750) estava ausente em Inglaterra (Coutinho, que era primo afastado de Pombal, foi o seu antecessor nas funções diplomáticas em Londres), e ao próprio Azevedo Coutinho, quando ele reocupou as suas funções em Lisboa. Depois há um conjunto de cartas a D. Luís da Cunha (1662 –1749), que na altura era enviado do rei português a Paris depois de o ter sido em Londres, Madrid e Haia (este diplomata é um dos homens mais notáveis do reinado joanino) e outro conjunto de cartas a João da Mota e Silva ou Cardeal da Mota (1685–1747), o poderoso conselheiro de D. José, o homem forte do regime, embora não ocupasse nenhuma secretaria de Estado. Finalmente, há algumas cartas diversas, algumas delas dirigidas a outros enviados portugueses na Europa. Conclui-se que havia uma rede de contactos entre os enviados joaninos em várias capitais da Europa, que não passava necessariamente por Lisboa. De facto, no reinado de D. João V existiu um notável conjunto de diplomatas, que representavam um reino que, sendo rico na altura graças ao ouro do Brasil, queria ombrear com as maiores potências europeias.

 Pombal não tinha o brilho retórico nem o poder de concisão de D. Luís da Cunha, sendo os seus escritos por vezes repetitivos, para não dizer confusos, e enfadonhos (D. João V não queria, por vezes, ouvir as suas cartas!). Apesar de ter sido um bom organizador, não se pode dizer que Pombal tenha tido grande êxito como diplomata: a Inglaterra era uma velha aliada, desde o tempo do tratado de Windsor, mas pouco ligava às pretensões de Portugal, colocando os seus interesses acima de tudo. Mas foi em Londres que Pombal começou a sua formação de homem de Estado, aprendendo a ser diplomata – ninguém nasce diplomata - e conhecendo um outro tipo de regime, a monarquia constitucional (implantada com a Revolução Gloriosa de 1688), e outros tipos de negócios (como os da Companhia das Índias), para não falar dos avanços científicos e filosóficos que ocorriam na Inglaterra (basta pensar em Newton e Locke). Foi em Londres que Pombal começou a recolher os ensinamentos que o iriam tornar um governante esclarecido. Pombal foi um «estrangeirado» que aprendeu primeiro em Londres e depois em Viena como se fazia na Europa desenvolvida antes de tentar fazer cá dentro.

 

VASCO DA GAMA NOS 500 ANOS DA SUA MORTE

Meu artigo no mais recente As Artes entre as Letras:

Se não se sabe ao certo quando nasceu Luís de Camões, apontando-se para 1524, já se sabe bem quando morreu Vasco da Gama, o comandante da armada que descobriu o caminho marítimo para a Índia em 1498: foi a 24 de Dezembro de 1524, vai agora fazer 500 anos, em Cochim, na Índia. É uma coincidência curiosa que entre o poeta e o navegador celebrado por ele no seu poema maior exista esta coincidência de datas. O poema Os Lusíadas, publicado em 1572, canta essa viagem e Camões não se poupa a encómios quando refere Gama: «nobre Gama» (o que era literal, pois Gama veio da pequena nobreza alentejana), «forte Gama», «ilustre Gama», «sublime Gama», «felice Gama», «forte capitão», «valeroso capitão», «capitão ilustre», «nosso capitão esclarecido», «sábio capitão», «facundo capitão», «grande capitão», etc. A Gama, após ter consumado a sua proeza com a chegada a Calecut, é dada por Camões a glória, no canto X, de contemplar, na utópica Ilha dos Amores, a «máquina do mundo», mostrada pela ninfa Tétis: «Vês aqui a grande máquina do Mundo,/ Etérea e elemental, que fabricada/ Assim foi do Saber, alto e profundo,/ Que é sem princípio e meta limitada.»

Camões não foi o único poeta a celebrar Gama. Logo em 1580 o italiano Torquato Tasso fez um soneto onde não só enaltece Gama como fala de Camões. O romântico alemão Friedrich Hölderlin fala de Gama num poema em anda em torno de Colombo. O mesmo se passou com o francês Stéphane Mallarmé, um precursor da modernidade poética. Entre os portugueses, Fernando Pessoa enaltece Gama na Mensagem, o seu único livro publicado em vida, Camilo Pessanha fala das naus de Gama que realizaram a viagem à Índia, e Miguel Torga tem um poema intitulado «Vasco da Gama». Nos nossos dias, Os Lusíadas foi uma inspiração para Gonçalo M. Tavares escrever a sua epopeia Uma Viagem à Índia, onde não há deuses e o viajante é um homem comum.

No reportório de música erudita, encontra-se uma ópera em cinco actos intitulada L'Africaine, composta em 1865 pelo alemão Giacomo Meyerbeer sobre libreto do francês Eugène Scribe, que tem como personagem Vasco da Gama. O famoso tenor Plácido Domingo interpretou esse papel em 1989 na San Francisco Opera. Por sua vez, outro compositor do século XIX, o francês Louis-Alberta Bourgault-Ducoudray, compôs em 1872 uma ópera também baseada na vida e viagens de Gama.

A viagem da primeira chegada dos europeus por mar à Índia, protagonizada por Vasco da Gama entre 1477 e 1479, foi a primeira das três viagens que ele fez àquela região. Foi uma aventura temerária em que só regressaram duas das quatro embarcações que partiram e onde pereceram cerca de dois terços dos tripulantes (o próprio irmão mais velho de Vasco da Gama, Paulo da Gama, que comandava uma das naus, morreu no regresso, tendo ficado sepultado na ilha Terceira, nos Açores). Como prémio pelo seu sucesso, Vasco da Gama recebeu do rei D. Manuel I, que tinha ordenado a expedição, o título de «almirante-mor dos Mares das Índia», o título de Dom, duas vilas (Sines e Vila Nova de Milfontes), e uma renda de 300 mil réis anuais. Não foi longo o seu repouso, pois em 1502 voltaria a partir, por ordem do mesmo rei, para a Índia, agora à frente de uma armada maior, a fim de reforçar a presença lusa no Oriente. Instalou uma feitoria portuguesa em Cochim, cidade onde mais tarde viria a morrer. Foi nessa segunda viagem que cometeu o acto bárbaro de incendiar um navio de peregrinos muçulmanos.

Finalmente, após um longo período de descanso e após ter sido, em 1919, nomeado Conde da Vidigueira, fez uma terceira viagem à Índia em 1524, na condição agora de vice-rei (o terceiro) e governador (o sexto). O seu filho Estêvão da Gama (tinha o mesmo nome do pai de Vasco da Gama) haveria de ser também governador. Pouco depois de chegar à Índia, o vice-rei Vasco da Gama foi apanhado pela malária, que o vitimou em poucos dias. Não teve tempo para desenvolver a sua acção política. Sepultado na Igreja de São Francisco em Cochim, foi transladado para a Vidigueira em 1539 e, em 1880, para o Mosteiro dos Jerónimos, onde hoje está.

Para assinalar os 500 anos da morte de Vasco da Gama, o Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta organizou em Sines em 16 de Dezembro, em colaboração com o município local o simpósio «Vasco da Gama. Construtor da Globalização». O título tem cabimento. A primeira viagem de Gama permitiu iniciar a «carreira da Índia», que assegurou o comércio de especiarias do Oriente para Ocidente por mar. Até então existia já um comércio de especiarias, mas ele pelo menos em parte tinha de ser feito por via terrestre (o canal de Suez só foi aberto no final do século XIX). A presença muçulmana no Médio Oriente e na Ásia Menor dificultava ou impedia mesmo a ligação entre a Europa, a Índia e o Extremo Oriente. Vasco da Gama mudou as rotas do comércio global, afirmando-se como um dos protagonistas maiores do que se chama «primeira globalização» (outros são Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, o segundo a chegar à Índia por mar). 

Basta ler Os Lusíadas (o canto V em particular) para se perceber que a observação, a experimentação e o raciocínio, que são ingredientes essenciais do moderno método cientifico, já estavam presentes nos navegadores portugueses. Leia-se, por exemplo, esta estância: «Os casos vi que os rudos marinheiros,/ Que têm por mestra a longa experiência,/ Contam por certos sempre e verdadeiros,/ Julgando as cousas só pola aparência,/ E que os que têm juízos mais inteiros,/ Que só por puro engenho e por ciência,/ Vêem do mundo os segredos escondidos,/ Julgam por falsos ou mal entendidos.»

 

domingo, 22 de dezembro de 2024

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum Natura

"Os alunos vão deixar em breve de poder utilizar os telemóveis nas escolas do Brasil, após a aprovação de uma lei pelo parlamento que visa sensibilizar os jovens para os efeitos nocivos dos ecrãs. O Governo (...) deputados e associações de encarregados de educação têm feito campanha a favor das restrições ao uso do telemóvel nas escolas primárias e secundárias. Mais de metade das crianças brasileiras dos 10 aos 13 anos possui telemóvel, uma proporção que chega aos 87,6% entre os adolescentes dos 14 aos 17 anos.
De acordo com dados do Comité Gestor da Internet no Brasil, quase dois terços das escolas do país já restringem o uso de dispositivos móveis, mas apenas 28% proíbem completamente os telemóveis.
A lei, que diz respeito aos alunos dos 4 aos 17 anos (...), determina que, para "preservar a saúde mental, física e psicológica das crianças e adolescentes", os telemóveis serão proibidos nas escolas, tanto nas salas de aula como nos intervalos. Autoriza excecionalmente a utilização de dispositivos eletrónicos para fins educativos ou por razões de acessibilidade.
O ministro da Educação (...) também se pronunciou a favor (...): "As experiências no mundo inteiro têm mostrado o prejuízo que tem sido um deficit de atenção no uso de aparelhos celulares ou equipamentos digitais tecnológicos dentro da sala de aula" (...) "O telemóvel tirou a socialização das pessoas. Precisa ter um limite".
"A proibição dos telemóveis nas escolas melhora os resultados académicos, especialmente para os alunos em dificuldades", observou a UNESCO, num relatório publicado em 2023. No entanto, a agência das Nações Unidas advertiu que "proteger os estudantes de tecnologias". novas e inovadoras pode colocá-los em desvantagem".

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"

Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Universidade de Coimbra.
 
 
"Após mais de meio século de atividade cívica pelo Ambiente e pela Natureza, tenho plena consciência de ter sido uma luta improfícua. Proferi cerca de 2500 palestras de educação ambiental, na sua maioria em escolas. 
 
Os alunos sensibilizados e despertos para o desastre ambiental do Planeta Terra, a Gaiola que habitamos. No entanto, os jovens são de tal modo estimulados para o consumismo que, ao chegarem a adultos, esqueceram tudo o que ouviram. 
 
Reflexo disso, são os atuais políticos e governantes, mesmo aqueles que foram alertados para os problemas ambientais que nada fazem para tentar travar ou minimizar o desastre ambiental corrente e cujas primeiras consequências são bem visíveis.

Estamos a comemorar o 5.º Centenário do nascimento de Camões, sendo Os Lusíadas a sua obra poética mais estudada pelos alunos. Mas além do poema épico, Camões legou-nos abundante poesia lírica. Camões foi, pois, também um poeta lírico. Na minha atividade cívica pelo Ambiente e pela Natureza também fui um ´lírico`, por ter sonhado e acreditado conseguir sensibilizar e consciencializar os jovens. 

Camões é um valoroso e verdadeiro lírico, enquanto eu fui um ´lírico` irrealista. É penoso chegar ao limiar da vida com a consciência de não ter conseguido resultados nenhuns e de que a Gaiola em que vivemos está imunda, plena de poluição gasosa, líquida e sólida, muito quente, com frequentes incêndios, o nível médio oceânico a subir, as calotes de gelos polares e das altas montanhas a desaparecerem, tempestades com inundações devastadoras, grandes lagos a secarem e regiões do Globo a desertificarem, como, por exemplo, o Centro e Norte de Portugal montanhoso, já transformado num deserto rochoso.

O meu desalento é enorme. Por isso, este cartão que é o 35.º da série que distribui anualmente, é o último. Deixei de ser um ´lírico` e percebi que não vale a pena continuar com a atividade cívica de educação ambiental.

Apesar disso, não posso deixar de fazer os meus votos para que os nossos governantes se capacitem que é fundamental estabelecer e incrementar o rápido ordenamento florestal do país e humanizar novamente as nossas montanhas, para acabarmos com os piroverões, com consequente aumento da área do deserto rochoso das nossas montanhas."

Jorge Paiva, 2024

domingo, 15 de dezembro de 2024

AS FÉRIAS ESCOLARES DOS ALUNOS SERÃO PARA... APRENDER IA!

Quando, em Agosto deste ano, o actual Ministério da Educação anunciou que ia avaliar o impacto dos manuais digitais suspendendo, entretanto, o alargamento a mais turmas do ensino básico e secundário (ver aqui) e, em Setembro, fez recomendações às escolas sobre uso de smartphones em contexto escolar (ver aqui, cujos desenvolvimentos podem ser vistos aqui) devo dizer que pensei na possibilidade de se estar a iniciar uma mudança positiva na educação pública em Portugal. Ou seja, uma mudança compatível com aquilo que a investigação científica digna desse nome tem evidenciado, e que o próprio Ministério da Educação invocou, sobretudo nas ditas recomendações.
 
Isto mesmo sem perceber a razão de se fazer mais um estudo de avaliação do impacto dos manuais digitais quando há muitos estudos recentes de elevadíssima qualidade que convergem num mesmo sentido: os manuais em papel são, a diversos títulos, preferíveis em termos de aprendizagem. E, no conjunto, há estudos que apresentam meta-análises que deixam poucas dúvidas a este respeito.

Recorte obtido aqui
Ora, em Novembro, em nome da inclusão, o Governo anunciou que será dado "a cada aluno um tutor educativo de inteligência artificial adaptado aos nossos currículos para o ajudar a compreender o mundo” (ver aqui), tendo agora lançado um projecto-piloto para ensinar inteligência artificial durante as férias (ver aqui).

Convenhamos que a intenção de dar um "tutor educativo de inteligência artificial (...) para ajudar a compreender o mundo”, não soa propriamente bem a quem tem algum conhecimento e reflexão sobre o que é educar. "Tutor" é uma palavra que não se poderá aplicar a um recurso digital e "compreender o mundo" tem que se lhe diga, mesmo quando tentado por pessoas (bem) formadas para tal tarefa.
 
Ora, a intenção de ocupar as férias dos alunos com tarefas escolares não soa melhor. Há que perguntar se voltamos à figura de "escola a tempo inteiro"? É que a escola tem de ser escola, mas não pode ser tudo. As férias escolares, tal como a expressão indica, servem (ou deveriam servir) para descansar das tarefas escolares, devendo as crianças e jovens ser orientados (pelos adultos) para sair do mundo digital em que passam horas infinitas, como mostram inúmeros estudos, nomeadamente um recentemente publicado em cuja apresentação esteve o Ministro da Educação (ver aqui).

Não tive mais notícias do tal "tutor", mas o dito projecto parece ir em frente pois faz parte da Estratégia Digital Nacional, aprovada há poucos dias em Conselho de Ministros (ver aqui). Nele foram envolvidos municípios que criarão condições para ensinar "programação, robótica e conteúdos relacionados com a inteligência artificial". Nas férias, bem se vê!

A questão, note-se, não está na aprendizagem/formação para o digital. Ela é importante para que os alunos (e também os professores) não se tornem meros consumidores, mas sejam, sim, utilizadores conscientes dos novos recursos tecnológicos e do seu movimento no espaço virtual; a questão está no facto de essa aprendizagem/formação ter sido, tanto quanto percebi, remetida para as autarquias e poder ser assumida por educadores/professores que não estejam devidamente preparados em termos técnicos e éticos. E de ser disponibilizada nas férias escolares...

Em suma, o designado plano de transição digital está em marcha na educação pública no nosso país, pois, além do que acima disse, foram recentemente alocadas verbas para arranjo e substituição de computadores nas escolas com vista à realização de provas de avaliação nacionais.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Debate: Europa de Pós-Crescimento

"Geopolítica de uma Europa Pós-Crescimento" é o tema do debate que irá ter lugar amanhã, sábado, dia 14 de dezembro, às 14h30, no auditório da Casa Fernando Pessoa. 

No debate participarão Richard Wouters, Ana Gomes, Inês Cosme e Rui Tavares, que irão trocar ideias sobre os conceitos de pós-crescimento, decrescimento ou crescimento verde. Num contexto histórico marcante de depleção de recursos naturais, de alterações climáticas, de asscenção de autoritarismos e de guerra às portas da Europa, importa debater os vários rumos para o futuro da Europa.

Data: Sábado, 14 de dezembro, 2024, às 14h30
Local: Auditório da Casa Fernando Pessoa, R. Coelho da Rocha 18, Lisboa

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

QUEM NÃO É FELIZ QUE TRATE DE O SER E DEPRESSA!

Na continuação de texto anterior (aqui).

Deixemos de lado a ideia de felicidade de Aristóteles, basilar do pensamento ocidental, e de filósofos que se lhe seguiram interessados por esta virtude ou, mais prosaicamente, estado de alma. Situemo-nos no ambiente neoliberal (melhor dito, utraliberal) que tem fixado com finalidade última da vida a produção-consumo, o lucro financeiro, o sucesso material, o mérito individual, a utilidade, funcionalidade e eficácia do agir humano.

Entende-se, neste ambiente que a "felicidade é lucrativa", por isso se tem desenvolvido a "indústria da felicidade" e consolidado a "ditadura da felicidade".

Vê-se prosperar a investigação sobre a felicidade, os rankings da felicidade, a formação para a felicidade, os gabinetes, departamentos que escrutinam/promovem a felicidade... 

A felicidade é uma obrigação que não admite interrupções ou excepções, nem, mesmo, variações. Não pode depender das circunstâncias ou das inclinações de cada um.

Não se pode ser feliz de qualquer maneira: tem de se ser feliz de uma certa maneira, que é uma maneira rasa, sobretudo pelo apelo que faz às emoções (as quais, recordo, constituem a base mais ancestral de relação com o mundo: de reacção biofisiológica aos estímulos que dele advêm).

Quem não for feliz dessa certa maneira, que faça por sê-lo, e depressa!

Esse ambiente tem-se infiltrado em todos os sectores da sociedade e também no sistema educativo e formativo público. 

Por isso (e referindo-me à notícia que destaquei em texto anterior) uma vez identificada a tristeza (que será falta de felicidade? Enfim, por certo, será uma emoção negativa) entre os professores, há que proporcionar-lhes "literacia emocional", de modo preventivo, na formação inicial, e remediativo, na formação contínua.

E se eles não mostrarem as "habilidades" pretendidas? Não podem entrar na carreira docente? São convidados a abandoná-la? 

Imagem recortada daqui
Atendendo a um caso muito recente, que se me afigura verdadeiro, estas perguntas não são tão estranhas como, à primeira vista, poderão parecer.

O caso é o seguinte: uma certa empresa não europeia (isso fará alguma diferença?) "de beleza e bem-estar" passou aos seus funcionários um inquérito para conhecer o seu nível de stress. Em resultado, aqueles que revelaram níveis mais elevados da dita maleita foram despedidos. Em seu benefício, claro! 

É isso que se diz no email que receberam: “Para garantir que ninguém permaneça stressado no trabalho, tomamos a difícil decisão de nos separarmos dos funcionários que indicaram stress significativo".

Texto recolhido aqui

A decisão da empresa passou para a comunicação social e não foi bem acolhida. Seguiu-se a emenda: tudo não passava de um mal-entendido pois o que se havia pretendido fazer era uma campanha para aumentar a conscientização sobre o stress no trabalho (ver aqui e aqui).

Lição de moral: quando nos for solicitada colaboração na resposta a um questionário, inquérito, entrevista, escala, o que for, convém perceber que entidade recolhe os dados e com que intenções o faz. É que, lamentavelmente, os dados que facultamos podem virar-se contra nós.

Reforçando o sentido do meu texto anterior: uma vez identificada "tristeza" num apreciável número de professores, a proposta que, mais imediatamente, a tutela apresentou não foi no sentido de superação das causas que possam estar no sistema, mas de os "ajudar" a resolver um problema que lhes será intrínseco. Contudo, não é (ainda) o despedimento...

MONUMENTO NATURAL DA PEGADAS DE DINOSSÁURIOS DA PEDREIRA DO GALINHA – OURÉM E TORRES NOVAS UMA HISTÓRIA DE MAIS DE UM QUARTO DE SÉCULO

Por A. Galopim de Carvalho

Tudo começou com um telefonema na manhã do dia 6 de Julho de 1994, já lá vão 30 anos, João Carvalho e os seus companheiros da Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia acabavam de descobrir, na Pedreira do Galinha, junto à localidade de Bairro, entre Torres Novas e Fátima (numa paisagem eminentemente calcária, no flanco oriental da Serra d’Aire), os mais longos e também os mais antigos e bem conservados trilhos de dinossáurios saurópodes de que havia conhecimento.

Foi nesta localidade da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, do concelho de Ourém, que “Alfredo Galinha, Lda.” iniciou, há décadas, a exploração da pedreira que trouxe à luz do dia a que se tornou uma das mais famosas jazidas com pegadas de dinossáurios do mundo. Exposta na imensa laje que constituía o fundo da pedreira, então ainda em plena laboração, cedo se tornou notícia entre a comunidade científica nacional e internacional.

Vários atributos fizeram desta jazida um caso único, não só do lado de dentro das nossas fronteiras, como à escala do planeta:
1. A abundância e perfeição das pegadas, em número de mais de quatro centenas, organizadas em duas dezenas de trilhos, dois dos quais com mais de 140m de comprimento, constituíram, desde logo, um factor de enorme interesse para o achado.
2. A idade da camada de calcário que conserva um tal testemunho da passagem destes animais, atribuída ao Jurássico médio, com cerca de 175 milhões de anos, representa outra novidade para a paleontologia. Provou-se aqui que este grupo de grandes herbívoros já existia bem representado nesta altura, isto é, uns 25 milhões de anos mais cedo do que o intervalo de tempo que era atribuído à sua passagem pela Terra.
3. O animais e o seu grande porte, deduzido pelas marcas aqui deixadas. Estas, as pegadas, indicam herbívoros (saurópodes) com cerca de 30 metros de comprimento e dezenas de toneladas de peso, o que constitui mais um elemento valorativo da ocorrência.
4. O grande número de trilhos é indicador de determinados comportamentos individuais e sociais.
5. A nitidez e boa definição das pegadas forneceram elementos que ajudam a caracterizar a morfologia das extremidades dos membros.
6. As dimensões da jazida, invulgarmente espaçosa (250x250m) contendo os icnofósseis (ou seja, as pegadas) – o topo de uma única laje, levemente basculada para Norte, no sentido do escarpado (com 30m de altura) deixado pela frente de exploração – dão-lhe invulgar espectacularidade, susceptível de ser apreciada a partir de diversos locais de observação, quais miradouros espalhados ao longo de um percurso pedonal com cerca de 1600m, que circunda a totalidade do Monumento Natural.
7. Grande importância, como polo de atracção turística, convicção amplamente potenciada pela proximidade (10km) do Santuário de Fátima.
Estudos paleontológicos da jazida
 
Após estudo preliminar da jazida realizado no MNHN, solicitei à Fundação Luso-Americana a vinda a Portugal do Prof. Martin Lockley, destacado especialista em paleoicnologia da Universidade do Colorado, em Denver.

Entusiasmado pelo interesse científico, grandiosidade e espectacularidade desta jazida, este colega elaborou um parecer altamente favorável à defesa de mais este monumental património paleontológico, a fim de ser presente ao governo e às duas câmaras, Ourém e Torres Novas, que partilham entre si a área ocupada pela jazida.

O estudo icnopaleontológico de pormenor desta jazida consta da dissertação de doutoramento de Vanda Santos.

Uma promessa cumprida

Estava-se em plena campanha eleitoral para as legislativas de 1995. Aproveitando a visita a Torres Novas do candidato do Partido Socialista, António Guterres, foi-lhe mostrada a jazida, que não deixou de o impressionar. Questionado sobre o que iria decidir sobre o futuro desta jazida, prometeu empenhar-se na sua defesa.

Com efeito, uma vez eleito, o novo Primeiro-Ministro fez cumprir a sua palavra. Assim, após conversações entre o governo e o industrial, foi acordado pôr fim à exploração, mediante uma indemnização de cerca de um milhão de contos ao concessionário, e a entrega do sítio à administração do então Parque Nacional das Serras d’Aire e Candeeiros (PNSAC). Cabe aqui lembrar o papel significativo da Ministra do Ambiente, Prof.ª Elisa Ferreira, que deu todo o seu apoio a esta causa (era Ministro das Finanças o malogrado Prof. Sousa Franco) e enaltecer o civismo do concessionário Rui Galinha que, com vultuoso prejuízo material, esperou mais de um ano com a exploração suspensa, na incerteza da decisão do referido ministro das Finanças

Programa preliminar

 
Em 1896 (já lá vão 28 anos), na qualidade de director do então Museu Nacional de História Natural (MNHN), concebi com o apoio, no plano da arquitectura, do Prof. Mário Moutinho, um programa preliminar de musealização deste Geomonumento (é assim que o classifico), que submeti à apreciação de responsáveis, a diversos níveis do governo, do Ambiente, da Educação, da Ciência e Tecnologia, da Cultura, da Juventude e do Turismo, constituindo um primeiro documento onde se propunha um plano de acção a curto, médio e longo prazos, visando a implantação, no local, de uma vasta estrutura museológica e demais equipamentos de apoio. Desse programa, que se perdeu nas gavetas das administrações, constava:
1. restauro e consolidação da camada de calcário que contém as pegadas, mediante intervenção adequada, em especial nas zonas esmagadas e/ou fracturadas pelas cargas de dinamite e sujeitas à erosão pelas águas pluviais. Esta intervenção começou agora a ser executada pela empresa Floradata.
2. valorização das pegadas operando experiências de sombreado (com corantes a definir) que as valorizem qualquer que seja a incidência da luz solar, ou em dias de céu encoberto e iluminação difusa, aliás muito frequentes. Esta sugestão, que ainda não foi adoptada, é a que melhor reproduz a imagem que se tem pela manhã, em dias de sol, evocando um cenário de grande realismo, como se tivessem acabado de passar por ali os dinossáurios de que aqueles trilhos são testemunho. Nunca consegui convencer os responsáveis por este Monumento Natural da necessidade deste procedimento que tive oportunidade de apreciar numa jazida na Alemanha. O recurso à pintura uniforme do total das pegadas, como foi ali tentado, anula-lhes o relevo, oferecendo uma imagem irreal, estampada na pedra, que se afasta do realismo que deveria ser procurado.
3. implantação de um sistema de passadiços, sobrelevados 20 a 30 cm do chão, ladeando os principais trilhos, com gradeamento, que permitissem ao visitante percorrê-los sem pisar a laje, num circuito cómodo. Esta sugestão foi agora adoptada.
4. criação de um “jardim jurássico” com plantas de grupos característicos do Jurássico e ainda existentes, a localizar num recanto da pedreira, há muito abandonado e abrigado do quadrante norte, exemplificativo da flora contemporânea dos dinossáurios que ali viveram. Este recanto seria valorizado pela simulação de um ambiente tropical, húmido e quente, em regime de estufa. Entre as plantas e por indicação do Prof. Fernando Catarino, deveriam figurar, ali Equisetum, Polipodium, Pteridium, Cycas, Ginkgo, Araucaria, Podozamites, Cupressus, Taxodium, Podocarpus, etc. No interior deste jardim, projectava-se a localização de um lago naturalizado. Da superfície da água deste lago propunha-se que saísse, o longo pescoço e a cabeça de um saurópode, dispensando, assim, a execução do restante corpo do animal (a mais dispendiosa) cuja presença submersa fica subentendida. Esta proposta de jardim Jurássico foi parcialmente concretizada mais tarde. Fazer sair da água do lago o pescoço de um herbívoro, semelhante aos que ali deixaram as pegadas, constituiria um elemento pedagógico sugestivo e de custo reduzido.
5. percurso de circulação pedonal, aproveitamento de um percurso na periferia do sector da pedreira, onde se distribuem as pegadas, com definição de locais de observação apoiados em painéis explicativos. Neste percurso, minimamente naturalizado e equipado (réplicas de diversas espécies de dinossáurios, bancos, guaritas, cestos para papéis e lixo, bebedouros, sanitários), deveria ser privilegiado, como miradouro, um local bem definido a WSW, no enfiamento dos dois trilhos principais, uma vez que é daqui que se obtém a visão mais grandiosa e espectacular da jazida. Este miradouro não foi instalado.
6. criação de um museu e centro de interpretação com o equipamento adequado (auditório, biblioteca e arquivo, salas de exposições e oficinas pedagógicas, refeitório, cafetaria, loja, sanitários etc.), agora muito parcialmente concretizado.
7. exposição de esqueletos montados, num pavilhão concebido para oferecer ao visitante um complemento do maior interesse pedagógico.
8. parque de merendas convenientemente equipado.
9. viagem no passado da terra entendida como um circuito pedonal concebido como uma viagem no passado da Terra, ao longo do qual se poderia observar uma sucessão convenientemente escolhida de réplicas de animais e plantas que só conhecemos através dos fósseis, incluindo, no final, o Homem pré-histórico, bem enquadrados em encenações adequadas, com vegetação arbórea e arbustiva compatível, à semelhança do que existe no museu de ar livre de Münchehagen (Hanover, Alemanha).
10. espectáculos nocturnos de luz e som, tendo em conta a grandiosidade da jazida e a proximidade de um centro grandemente atractor de visitantes – Fátima - foi considerada a hipótese de instalar aí um complexo sistema informatizado, em realidade virtual, com utilização de “luz lazer”, para apresentação, em espectáculos nocturnos de luz e som, durante os meses estivais.
11. combóio do tempo, no género dos conhecidos “comboios-fantasmas”, que atraem curiosos de feira em feira, circulando num “corredor do tempo” onde, com recurso aos novos meios de imagem, o visitante pudesse recuar à pré-história.
12. jardim infantil, equipado com elementos usuais neste tipo de espaço, tais como carroceis, baloiços, escorregas, etc., concebidos com base em estilizações de dinossáurios e de outros animais pré-históricos.
13. silhuetas gigantes. A jazida tem como fundo de horizonte próximo, a NE, um cabeço arredondado onde poderiam ser colocadas silhuetas gigantes de saurópodes (à semelhança do touro da “Domecq”, em Espanha). Do lado oposto, a NW, um cabeço mais amplo e mais próximo, permitiria a implantação de uma manada de adultos e crias de saurópodes, descendo a vertente, no sentido da jazida.
14. restaurante e/ou cafetaria com área coberta e esplanada.
15. albergue de juventude, com um número de camas a definir, sugeriu-se a hipótese de adaptação a de uma construção situada 400 m a NW da jazida, de momento com um impacte visual negativo, mas susceptível de beneficiação.
16. parque automóvel. Em apoio aos visitantes considerou-se a criação de um parque automóvel para ligeiros e pesados, de dimensões a definir.
17. os anúncios publicitários do complexo museológico, para além daqueles a colocar nas estradas interiores de acesso ao local, a partir de Fátima, de Torres Novas, de Ourém, etc., deverão incluir informação adequada na autoestrada A-1 (Lisboa-Porto).
Primeiro Grupo de Trabalho
 
No sentido de sensibilizar o governo de então a salvar este logo entendido como um importante geomonumento, organizou-se um grupo de trabalho coordenado pela Arqtª. Maria João Botelho, então directora do Parque Natural das Serras d'Aire e Candeeiros (PNSAC), o Eng.º. Carlos Caxarias, em representação da Direcção Geral de Minas, o Dr. José Manuel Alho, então como elemento da Quercus, o industrial Rui Galinha, o vereador David Catarino, mais tarde presidente da Câmara Municipal de Ourém, o então vereador Pedro Ferreira, da Câmara Municipal de Torres Novas, também ele, mais tarde, presidente desta autarquia, e uma representação do Museu Nacional de História Natural, composto pela paleontóloga, Drª Vanda Santos e por mim, na qualidade de director do dito MNHN.

O local de reunião foi o escritório da própria pedreira e para ali se correu regularmente durante meses até se conseguir o objectivo final: salvar a jazida.

Monumento Natural. Por proposta minha, era eu Director do MMNHN, esta jazida foi classificada como Monumento Natural, em 1966, pelo Decreto Regulamentar 12/96 de 22 de Outubro.

Segundo Grupo de Trabalho
 
Em Janeiro de 1997, foi criado pelo ICN, por diligência da então Presidente Teresa Andresen, um grupo de trabalho visando o “Programa de Intervenção no Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios da Serra d’Aire”, coordenado pelo Dr. José Manuel Alho, de que fiz parte e no qual pudemos contar com a valiosa participação do Arqtº. Martins Barata. Os trabalhos prosseguiram a bom ritmo, havendo, na altura, disponibilidade financeira para executar algumas das propostas iniciais e outras surgidas no seio deste grupo de trabalho, isto enquanto durou a equipa ministerial liderada pela professora Elisa Ferreira. 
 
Desde a sua abertura ao público e até 2002, houve financiamento para inovações importantes, com destaque para o “painel do tempo”, uma pintura mural com 25 m de comprimento, da autoria de Martins Barata, anexa ao jardim jurássico, e o “aramossaurus”, uma enorme estrutura metálica, estilizando um gigantesco saurópode em tamanho natural, do tipo daqueles que deixaram ali os seus rastos há 175 milhões de anos, concebida pelo mesmo arquitecto. Esta mais-valia, assim chamada porque o estudo inicial, em modelo reduzido, foi construído em arame, está implantada em local cimeiro, é visível de todos os pontos do Monumento Natural.

Numa primeira fase, o PNSAC abriu a jazida ao público, com um mínimo de equipamentos que permitiam uma visita, não a ideal, mas satisfatória, antecedida de uma explicação prévia em vídeo, seguida de um percurso a pé, ao longo de um itinerário traçado, apoiado com vários painéis explicativos. Satisfazia-se, assim, ainda que provisoriamente, alguma pressão que se fazia sentir por parte da imprensa e de um público legitimamente curioso e sempre interessado.

Desde logo fico claro que esta jazida é um local de potencial científico, pedagógico, cultural e, por todas estas razões, também, turístico.
1. científico, porque foi alvo de estudo (publicado em diversos trabalhos, incluindo uma dissertação de doutoramento);
2. pedagógico, na perspectiva de prestar apoio ao ensino, dirigido a grupos escolares nas áreas da geologia regional (Maciço Calcário Estremenho), da paleontologia e da paleobiologia dos dinossáurios, da educação ambiental e, ainda, na reciclagem e na actualização de conhecimentos destinadas a educadores e professores;
3. cultural, na medida que tem preocupações de divulgação do saber científico, destinado ao público, não só no domínio da temática da jazida, como no das Ciências da Natureza e do Ambiente, em geral;
4. turístico, por enquanto intencionalmente moderado, será função do investimento que aqui se venha a fazer e na perspectiva de que ali, mesmo ao lado, dez quilómetros a Norte, o Santuário de Fátima recebe milhões de visitantes por ano.
Protocolo de 18 de Maio de 1998
 
Com vista à conveniente musealização do que passou a ser designado por Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios da Serra d’Aire, o MNHN assinou, em 18 de Maio de 1998, um protocolo com Instituto de Conservação da Natureza (ICN), o Instituto de Promoção Ambiental (IPA)e a Associação para o Desenvolvimento das Serras d’Aire e Candeeiros (ADSAICA). Neste espírito, seja qual for o regime (público ou privado) da sua exploração turística, o MNHN continua a ter competência para participar na elaboração das citadas regras e na fiscalização do seu cumprimento por parte das eventuais entidades concessionárias, e deverá ser chamado a fazê-lo. 
Além deste aspecto, o MNHN, como entidade neste processo com idoneidade científica para o objectivo em vista, deverá continuar a participar na produção de toda a documentação informativa no que concerne os aspectos científicos, pedagógicos e culturais da ocorrência, tais como guias, folhetos, brochuras, cartazes, postais, diapositivos, vídeos, etc.

Nunca, no espírito deste protocolo o Museu foi chamado a participar no que ali se decidiu fazer. A 9 de Julho de 2022, teve lugar, na dita pedreira, a inauguração do Centro de Interpretação e de um bem pensado conjunto de passadiços que permitem ver de perto os longos trilhos com pegadas de dinossáurios. Tratou-se da concretização de uma pequena parte do dito programa preliminar. Sou o primeiro a felicitar o ICN e a ADSAICA pelas intervenções inauguradas, estou certo de que muito mais se poderá e deverá fazer e tenciono envolver-me, ao limite das minhas capacidades, na sua concretização.
 
Nessa ocasião tornei público um meu propósito relativamente a este Geomonumento. Era um sonho ambicioso, mas todos sabemos que “sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança. O que eu então pretendia e pretendo ultrapassa o muito e bom que já li se fez. Trata-se de uma iniciativa pessoal que só me compromete a mim, não só na qualidade de cidadão, que sempre fui sou, mas também na de quem, desde a primeira hora, ali deixou muito trabalho. Já o afirmei, por palavras faladas e escritas, que não pretendo ultrapassar ninguém. Felizmente que o relacionamento com o ICNF foi o melhor que se podia desejar e que o sucesso alcançado se, sobretudo, ao trabalho do Eng.º Rui Rombo, Engª geóloga Lia Mergulhão e Drª Ana Falcão. O sonho começa a ser realidade.

Tenho 93 anos, muito provavelmente não o irei ver concluído, mas vê-lo arrancar já é uma felicidade. Este meu propósito, muito claro e frontal, era:
1. divulgar amplamente a real importância desta jazida.
2. convencer as entidades que o tutelam a encontrarem meios para fazer nascer um projecto a ser” pensado em grande”, com projecção internacional, compatível com as características que o distinguem a nível mundial;
3. convencer as mesmas entidades a encontrarem o financiamento necessário à sua execução. 
Oportunamente, informei, deste meu propósito, o Director Regional de Lisboa e Vale do Tejo do ICNV, os presidentes das Câmaras Municipais de Torres Novas e Ourém e o presidente da Associação para o Desenvolvimento das Serras d’Aire e Candeeiros (ADSAICA) e o Reitor da Universidade de Lisboa.
 
Sou o primeiro a felicitar o ICN e a ADSAICA pelas intervenções que acabam de inaugurar, estou certo de que muito mais se poderá e deverá fazer e tenciono envolver-me, ao limite das minhas capacidades, na sua concretização.
 
ESTAMOS TODOS DE PARABÉNS
 
Ontem, 09 de Dezembro de 2024, no pequeno auditório do Monumento Natural com Pegadas de Dinossáurios de Ourém-Torres Novas, foi assinado, pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), Associação Portuguesa dos Industriais de Mármores, Granitos e Ramos Afins (ASSIMAGRA) e Associação para o Desenvolvimento das Serras d’Aire e Candeeiros (ADSAICA), o protocolo para a 1ª fase da musealização deste importante geomonumento.
 
A utopia é a força que transforma os sonhos em realidade.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

LITERACIA EMOCIONAL PARA PROFESSORES: UMA FALÁCIA DO DISCURSO POLÍTICO, MAS NÃO APENAS POLÍTICO

Li o título que reproduzo abaixo de uma notícia do jornal Público de hoje e lembrei-me da famosa frase de Bertolt Brecht: "Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém diz que são violentas às margens que o comprimem". 

Imagem recortada daqui. Sublinhados meus
Declaro que não li nem sequer consultei (mais) este estudo (de matriz psicológica) referido no corpo da notícia. E também não prestei a atenção que se justificaria à própria notícia É a fadiga do deja vu...

Interessa-me, porém, o destaque dado à ligação estabelecida entre o problema (nada surpreendente) e a solução apresentada pelo governo.

O problema é os professores sentirem-se tristes, denotando mal-estar. Nada de novo: temos, desde há várias décadas, estudos internacionais e nacionais cujos resultados vão, muito consistentemente, no mesmo sentido. E talvez nem precisássemos de estudos para perceber esta realidade, tão evidente ela é. 

Mas porque é que muitos professores se sentem assim? Entre as várias causas apontadas, uma das mais relevantes prende-se com as políticas e medidas educativas que desviam os professores do que consideram ser o cerne do ensino e pelo qual se sentem responsáveis. Não conseguirem levar os alunos a aprender o que se esperaria que aprendessem em contexto escolar, aliado a ambientes institucionais agrestes, onde o relacionamento humano e o estímulo intelectual se dissolvem, constituem a principal base do  designado "sofrimento ético".

Tal não decorre da falta de formação favorável à aceitação (acrítica) das políticas e medidas que se lhe destinam, mas do facto de muitos professores terem clara consciência de que uma parte substancial dessas políticas e medidas não serem realmente educativas.

Imputando-se aos professores o problema, desvincula-se a tutela do mesmo. São estes profissionais (e as instituições que os preparam) que têm de robustecer a sua "literacia emocional", dada a sua ignorância ou incapacidade na matéria.

Com as emoções "afinadas" estão aptos para, contidos nas margens que se lhes impõem, seguirem sem turbulências para... onde? 

domingo, 8 de dezembro de 2024

"PORTUGAL EM SELOS 2024". DEDICADO (TAMBÉM) A EUGÉNIO LISBOA

Jorge M. Martins acaba de publicar um novo álbum de arte dos CTT, em edição bilingue, com o título Portugal em Selos 2024. Na apresentação diz-se:

"Em 2024 comemoram-se os 500 anos do nascimento de Luís de Camões, poeta épico português, ilustre personagem do Renascimento, homem de grande cultura e de riquíssima vivência que, em redor de 1572, escreveu Os Lusíadas, inequivocamente uma das mais importantes obras da literatura de língua portuguesa. Jorge M. Martins (...) não esquece esta importante efeméride e, capítulo a capítulo, propõe um diálogo entre as emissões de selos deste ano e a grande epopeia de Camões."

A obra, de grande empenho e beleza, é dedicada à memória de "três companheiros de uma 'mesa de amigos', alimentada a poder de livros": Eugénio Almeida Lisboa (1930-2024), Alfredo Campos Matos (1928-2023) e João Bigotte Chorão (1933-2019).

Eugénio Lisboa, o último a partir, deixou belíssimos e empenhados textos a propósito dos livros que o tocavam. Por certo, da sua mão sairia um belo texto acerca deste livro, que possivelmente partilharia com o De Rerum Natura.. Imaginemo-lo...

Novos Classica Digitalia

NOVIDADES EDITORIAIS

 

Fora de Série [estudos]


- Cláudia Cravo & Susana Marques (Coords.), Re)visitar os Clássicos greco-latinos em sala de aula (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 157 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2613-0


[Este volume reúne vários contributos que exploram, na sua maioria, textos de autores portugueses, de diferentes épocas, com o propósito comum de revisitar os clássicos greco-latinos em sala de aula. Esta diversidade de colaborações pretende inspirar os docentes do ensino básico e secundário a promoverem, nas suas aulas, diferentes  abordagens didático-pedagógicas, que possam motivar os alunos para a receção da Antiguidade Clássica na língua e na literatura portuguesas.]


Série “Autores Gregos e Latinos” [textos]

 

Reina Marisol Troca Pereira & Joaquim Pinheiro, Plutarco. Vidas Paralelas. Filopémen e Flaminino. Introdução, tradução do grego e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 100 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2647-5


[O objetivo deste livro é fornecer em língua portuguesa uma tradução do par biográfico Filopémen-Flaminino, com uma breve introdução e notas de apoio à leitura e compreensão do texto. O par biográfico Filopémen-Flaminino é o único do corpus biográfico de Plutarco com dois heróis contemporâneos. Esta dinâmica temporal tem consequências na descrição e no processo comparativo. De facto, Plutarco entrelaça o declínio helénico com a expansão romana na narrativa biográfica. Oscilando entre a philonikia e a philotimia, misturam-se factos históricos com a interpretação ética e moral. Estes elementos temáticos fornecem, sem dúvida, valiosos elementos sobre a identidade greco-romana.]

 

Adriana Nogueira, Diógenes Laércio. Vidas de Filósofos Ilustres. Livro IIIntrodução, tradução do grego e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 204 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2643-7

  

[Diógenes Laércio, autor que terá vivido no séc. III d.C., fez-nos saber que o seu propósito era dar a conhecer as doutrinas e os filósofos em todas as suas dimensões. Esta foi uma obra – uma primeira história da filosofia grega –  citada ao longo das épocas e que ainda hoje continua para muitos dos autores aqui referidos a ser a única fonte de informação disponível, à qual não faltam, para além das suas teorias e escolas a  que pertenciam, as máximas atribuídas às personagens ou as anedotas que as envolviam. De Anaximandro a Menedemo, passando por Sócrates, o Livro 2 de Vidas de Filósofos Ilustres permite-nos conhecer melhor vários filósofos da linhagem em que Sócrates se insere e que a ele se seguiram.]

USO MASSIVO DE ECRÃS E TECLADOS NA ESCOLA: PROTESTOS E DECISÕES

A notícia é do Diário de Coimbra do passado dia 4 de Dezembro: mais dois Agrupamentos de Escolas decidiram restringir o uso de telemóveis, com vista, dizem, a "preservar a saúde mental e física dos alunos".

A reportagem dá conta do consenso obtido entre, como agora se diz, os diversos parceiros educativos. Dá também conta da razoabilidade da restrição: a questão não se coloca entre proibir em absoluto ou deixar ao critério de cada um; coloca-se, isso sim, na adopção de medidas que fazem sentido em termos de aprendizagem e de protecção das crianças e dos jovens.
 
Imagem recolhida aqui
Um dia antes, a 3 de Dezembro, o jornal As Beiras noticiava um protesto realizado à porta de uma escola contra o uso exclusivo de manuais digitais no ensino básico. Esta é uma das escolas que entrou, a título voluntário, no projeto-piloto de transição digital.
 
O protesto surgiu na sequência de um manifesto da iniciativa de encarregados de educação, (ver aqui) contra o uso exclusivo de manuais digitais, que obteve 655 assinatura.
 
Cito o texto do jornal que reproduz extractos de uma declaração recolhida.
“É algo que não se compreende, porque todos os dados indicam que os pais não estão satisfeitos, os professores não estão satisfeitos e todos os países, nomeadamente europeus como a Finlândia e a Suécia, que tinham avançado com isso há anos, recuaram e estão a reintroduzir novamente os manuais em papel (...). Por isso, só por outras razões, eventualmente económicas e de negócio, mas que não são os interesses destas crianças e destas comunidades educativas, que têm o direito de exigir acesso aos manuais em papel, que todos os estudos indicam que em, termos pedagógicos e de saúde, são mais favoráveis para a aprendizagem e para a saúde das nossas crianças.”

O que nos dizem estas duas notícias? No meu entender dizem-nos que estamos no bom caminho do uso dos recursos pedagógicos. E isso decorre da investigação séria que se tem realizado e da atenção que cada vez mais professores, directores e encarregados de educação lhe conferem.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

OS DIAS CONTADOS

OS LUSÍADAS APRESENTADOS EM COIMBRA


 

Toda a Física Divertida: recensão por João Lopes dos Santos na Brotéria

Recensão de João Lopes dos Santos ao meu livro Toda a Física Divertida ( Gradiva , 2024), publicado na Brotéria:

Diz-se que, para matar a conversa num evento social, nada melhor do que anunciar-se como físico teórico. As pessoas atribuem-nos logo elevada inteligência e pouco interesse. A parte do “pouco interesse” não aconteceria, de certo, ao autor dos dois livros “Física Divertida” e “Nova Física Divertida”—em boa hora agora reeditados num único volume—, o físico teórico Carlos Fiolhais.

Porque Carlos Fiolhais é um exímio contador de histórias. Cada um dos nove capítulos que compõem este volume, Carlos Fiolhais conta uma ou várias histórias. Mesmo quando fala de Física e não de físicos, dos seus sucessos e fracassos, das suas vidas, ou da relação que tiveram com Portugal, Carlos Fiolhais conversa. Não espere o leitor aquela prosa fastidiosamente precisa, despojada de emoção e de humor, inodora e incolor, com que tantos peritos e professores nos brindam quando lhes pedem para explicar algum fenómeno ao público. Se quiser saber o que esperar destes dois livros, imagine-se a conversar longamente com alguém que ama o assunto de que fala, que o conhece com profundidade e abrangência enciclopédica e está ansioso para partilhar o seu entusiasmo com o ouvinte.

Mas não conclua que Carlos Fiolhais escreve como fala. Num dos livros citados por Carlos Fiolhais, as “Feynman Lectures on Physics”, que além de Feynman tem mais dois co-autores, lê-se que passar à escrita as lições orais de Feynman foi um processo editorial de grande magnitude. Apesar disso, quem lê as “Feynman Lectures” ouve Feynman a falar. O mesmo acontece nestes livros, em que o autor usou muitas das inúmeras palestras que deu em escolas de todo o país. Carlos Fiolhais escreve muito bem, com uma prosa escorreita e refletida, que em muitas passagens exige atenção e releitura, porque a física que expõe o requer e não é divertida por ser fácil, mas sim porque quem a comunica o faz com graça, humor, sem pretensiosismo, transformando o quotidiano, recorrendo a analogias, metáforas, imagens: “V. Exa. quer o café aquecido com trabalho ou calor?”. Não hesita mesmo a personalizar os objetos físicos: luas malucas, eletrões que tocam campainhas e não são promíscuos, ao contrário dos bosões, fotões, “soluços” de luz, que dão pancada nos eletrões, são apenas alguns exemplos da linguagem desinibida de Carlos Fiolhais, com que se casam, em união feliz, os geniais desenhos de José Bandeira.

De que fala “Toda a Física Divertida”? Se não de “toda” pelo menos de muita física e não só. Nos seis primeiros capítulos (“Física Divertida”), três são da área da Mecânica Clássica, um dedicado à Luz, outro ao Eletromagnetismo e o último à Termodinâmica (ou na designação de Carlos Fiolhais ao “Calórico e às Máquinas de S. Nunca”. A “Nova física Divertida” tem três capítulos: “A Paradoxal Física Quântica”, a “Fantástica Relatividade” e “Dos Núcleos às Estrelas”.

Como é de esperar num livro desta natureza, as histórias deixam muitas interrogações, traçam um quadro impressionista dos assuntos, com grossas pinceladas que estimulam o desejo de saber mais, a quem é vítima da mesma “curiosidade apaixonada” pelo mundo que motivou a vida de Carlos Fiolhais. Em cada capítulo o autor vai muito mais longe nas implicações dos assuntos que discute do que é habitual nos textos universitários de Física, evidenciando sempre os problemas em aberto, mesmo em áreas com décadas ou centenas de anos de estudos; nesta reedição pôde abordar vários desenvolvimentos da Física, e sobretudo das suas aplicações, posteriores às datas das edições originais (1990 e 2006).

Na vastidão de assuntos que toca num volume relativamente breve, seria difícil não deixar escapar uma ou outra subtileza. Por exemplo, quando o autor refere que o movimento de um automóvel o encurta (verdade) e quanto mais rápido se mover, melhor caberá num curto túnel, esquece-se de chamar a atenção que, para o condutor do automóvel, é o túnel que fica mais curto!

Um lapso mais óbvio (o único que encontrei) é que não foi Voltaire que defendeu que vivemos no melhor dos mundos, mas sim Leibniz, crença que Voltaire parodiou no seu “Candide”.

As histórias contadas à volta da Física, os amores e desamores dos protagonistas, as passagens da sua correspondência, as citações de textos literários, as relações e as referências de físicos proeminentes a Portugal são um dos ingredientes que mais cor dão a estes livros. É impressionante o conhecimento enciclopédico do autor. Ficamos a saber, entre muitas outras curiosidades, que Kepler afirmou que não se coibiu de escrever sobre os seus fracassos porque os Portugueses, nos descobrimentos, também o fizeram; que Einstein (em 1925) achou que Lisboa dava uma impressão “maltrapilha mas simpática”; que um padre português, Teodoro de Almeida, escreveu no século XVIII uma obra em 10 volumes em que expôs e defendeu as ideias de Newton. Aliás se o leitor ficou com impressão que Carlos Fiolhais apenas passou à pena as inúmeras palestras que deu em escolas de todo o país, consulte a extensíssima bibliografia destes dois despretensiosos livros para perceber a origem da erudição do seu autor.

Carlos Fiolhais termina assim este volume:

O que se pode desde já prever — e eu vou apostar, contrariando um conselho da minha avó— é que, graças aos avanços da ciência e da tecnologia, o século XXI vai ser tão diferente do anterior pelo menos quanto o anterior foi daquele que o antecedeu.

Vai, portanto, haver muito mais Física Divertida para o autor nos contar. Mas para já, passe-se umas boas e agradáveis horas na companhia de “Toda a Física Divertida”.

Porto, 13 de Outubro

João Lopes dos Santos

DOZE LIVROS DE CIÊNCIA PARA O NATAL

Meu texto no JL:

Há já alguns anos que costumo divulgar uma selecção pessoal de livros saídos no final do ano, que procuram beneficiar da maior procura que as livrarias têm nesta época do ano (agora até há cheques-livro para alguns jovens). Embora o meu leque de leituras seja ecléctico – incluindo romance, poesia, história, banda desenhada, etc. - restringi esta lista a uma dúzia de livros de divulgação de ciência e tecnologia. A ordem é a alfabética do apelido do primeiro autor.  

1- Alves, Miriam e Kono, Yara. As Peças Mais Pequenas. Tudo o que vemos é feito do que não vemos, Planeta Tangerina. Uma jornalista portuguesa e uma artista brasileira fizeram um belo livro para crianças que explica que «tudo o que vemos é feito do que não vemos».  Na ciência, o essencial é invisível aos olhos: os átomos formam tudo à nossa volta e dentro de nós. Mas, mais do que descrever a ciência, a primeira autora fala do processo de descoberta. E a segunda ilustra o texto esplendidamente.

2- Baptista, António Manuel. A Ciência no Grande Teatro do Mundo, Tinta da China. Para assinalar o centenário do autor, professor de Física da Academia Militar, investigador na área da Física Médica no Instituto Português de Oncologia e comunicador de ciência pioneiro na rádio e televisão, a filha Cristina Ovídio preparou uma reedição de um livro que tinha saído na colecção «Ciência Aberta» da Gradiva, que foi enriquecida por um prefácio do neto do autor e por um apêndice em que o professor Baptista fala do que deve aos seus professores. 

3- Bohannon, Cat. Eva. Como o corpo feminino determinou 200 milhões de anos de evolução humana, Objectiva. É o primeiro livro de uma escritora de ciência doutorada recentemente pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Qual foi o papel do corpo feminino na evolução biológica? A autora olha para a História Natural, revelando em 536 páginas as origens de órgãos como útero e funções como o aleitamento. Os 200 milhões de ambos do título justificam-se porque a autora olha para alguns vertebrados que foram antepassados remotos do Homo sapiens. 

4- Conway, Ed. Mundo Material. Uma história substancial do nosso passado e futuro. Temas e Debates. Um premiado jornalista de economia inglês realizou uma viagem pelo mundo para nos contar os materiais que se extraem da terra e o modo como são transformados para formarem os objectos de que precisamos. Por exemplo, de onde vem o silício dos nossos chips de computadores=?

5- Graydon, Samuel. Einstein no Tempo e no Espaço: Uma vida em 99 partículas,  Saída de Emergência. Uma visão da vida e obra de Einstein através de pequenos fragmentos, escritos por um jornalista de ciência britânico. Revela não só o génio, que ganhou o estatuto de mito imortal, mas também a pessoa, com algumas das falhas e fragilidades que caracterizam a nossa espécie.

6- Kissinger, Henry; Mundie, Craige; e Schmidt, Eric. Génesis. Inteligência Artificial, Esperança e o Espírito Humano, Dom Quixote. Um ensaio que nos dá ampla matéria de reflexão sobre os prementes desafios da Inteligência Artificial da autoria do político e estadista falecido em 2023 com cem anos, de um ex-director da Microsot e de um ex-CEO da Google. O primeiro e o terceiro autores já tinham analisado o assunto no seu livro, com Daniel Huttenlocher, A Era da Inteligência Artificial e o Nosso Futuro Humano (também na Dom Quixote).

7- Lewandowski, Cédric. O Nuclear, Guerra & Paz. Uma tradução de um livrinho da colecção francesa Que Sais-Je que resume o que é a energia nuclear, escrito por um quadro da EDF France, a empresa que gere um dos maiores parques de centrais nucleares do mundo.

8- Marçal, David. Como Perder Amigos Rapidamente e Aborrecer Pessoas com Factos e Ciência, Gradiva. O bioquímico e comunicador de ciência que escreve regularmente no Público disseca o mundo de hoje, largamente irracional, numa perspectiva eminentemente racional, baseada em factos e na ciência, neste livro com um título irónico e um prefácio meu. No mundo polarizado em que vivemos, é natural que alguns dos seus textos, bem escritos e documentados, sejam polémicos. 

9- Sapolsky, Robert M., Determinado. Uma ciência da vida sem livre-arbítrio. Temas e Debates. O professor de Neurologia da Universidade de Stanford, na Califórnia, e autor de Comportamento. A Biologia Humana no nosso melhor e no nosso pior (também na Temas e Debates), analisa nesta sua nova obra a complexa questão da nossa liberdade individual, que nos permite tomar decisões. É um problema não só biológico como filosófico.

10- Soares, Luísa Ducla, Carlos Fiolhais; e Daniel Completo, com ilustrações de Cristina Completo. No Mundo dos Porquês. A ciência cantada e contada. Canto das Cores. Livro infantil que apresenta cantigas sobre questões de ciência com poemas da primeira autora que o terceiro musicou (o código QR permite ouvi-las). Eu forneci respostas científicas simples. Só está acessível na editora.

11- Tulleken, Chris Van. Pessoas Ultraprocessadas, Porque comemos comida de plástico e não conseguimos parar de comer? Lua de Papel. O médico infecciologista inglês que é professor no University College de Londres e trabalha no Hospital de Doenças Tropicais dessa cidade insurge-se contra a indústria alimentar que coloca nos alimentos produtos químicos que criam habituação. Deveríamos talvez processar quem nos ultraprocessa!

12 - Tyson, Neil de Grasse e Walker, Lindsay. Para o Infinito e Mais Além. Uma viagem de descoberta cósmica, Gradiva. O norte-ameericano Tyson, autor de Astrofísica para Gente com Pressa (também na Gradiva), é um dos divulgadores de ciência mais brilhantes da era pós Carl Sagan, com quem aliás contactou. Walker é uma comunicadora de ciência. Juntos fizeram um belo volume ilustrado que nos conduz aos mistérios do cosmos, alguns deles bem longe da Terra. A tradução é minha. Como os outros livros desta lista, pode ser um belo presente de Natal.

Boas festas com boas leituras!

À MARGEM DAS REGRAS

Por A. Galopim de Carvalho

Em tempo de paz, sem perspectiva de guerra no horizonte, e feita a recruta, a vida no quartel, nos anos em que a vivi (1952-1954), era uma pasmaceira. Cumpridas as tarefas que a todos competiam, o resto do tempo era uma espera para o dia seguinte.

Uma regra de ouro de um miliciano era estar “desenfiado”, um termo militar, muito usado em artilharia, que quer dizer fora do alcance da vista. Outra regra era, no caso contrário, dar a impressão de que se ia em serviço, com passo firme, decidido e, de preferência, com um papel na mão. Estar à vista, parado ou a deambular sem destino, era condição quase certa para que um superior o chamasse e lhe desse uma qualquer incumbência que, na maior parte dos casos, ele havia recebido de um superior dele.

Por exemplo, o comandante do regimento encarregava o segundo-comandante de resolver uma dada tarefa. Este, um tenente-coronel, chegando ao seu gabinete, mandava uma ordenança chamar um major, a quem entregava da sua resolução. Por sua vez, este graduado declinava-a num capitão. E era nesta fase que um subalterno como eu podia ser apanhado, se estivesse à vista, com ar de desocupado.
– Ó nosso alferes!
– Eu, meu capitão?
– Sim, você! Vê aí mais alguém? Vá ao parque auto e confira este inventário. 

E agora, das duas uma: ou eu tratava, pessoalmente, do assunto ou, o que era mais certo, chamava um furriel, que sempre descobria um cabo que acabava por fazer o trabalho. Cumprido este, o nosso cabo entregava-o ao furriel e, através da mesma cadeia, mas agora em sentido inverso, o dito inventário, conferido, chegava às mãos do comandante. Era, pois, sempre em passo rápido, decidido, e com um rolo de papel na mão que, nas muitas tardes de ociosidade, atravessava a parada, a caminho das cozinhas ou da oficina do sargento carpinteiro. Das cozinhas porque aí, de vez em quando, me juntava a meia dúzia de rapazes da minha geração, independentemente das graduações de cada um, para saborearmos uns queijos do Redondo, um tinto das Cortiçadas, um coelho frito trazido pelo furriel Silva, caçador num fim de semana de licença, ou de umas farinheiras assadas vindas do fumeiro dos pais do 127 de 53.

O chefe cozinheiro, um soldado pronto, rapaz com quem eu jogara à bola (de trapo) no grande terreiro dos Salesianos, que participava nestas confraternizações, arranjava-nos um canto resguardado, sendo exímio na preparação dos petiscos, não raras vezes retirados do caldeirão do rancho, condimentados e apurados à parte e a preceito. Todos sabíamos que aquele convívio era passível de procedimento disciplinar, mas nunca houve uma denúncia e só são boas as recordações desses momentos. Outra das fugas que, com relativa frequência, fazia dentro do quartel, tinham por alvo a oficina do sargento carpinteiro. Autodidacta em muitos saberes e de uma notada sensibilidade poética, era um artista a trabalhar a madeira, encafuado no seu espaço, para ele um santuário. O quotidiano do quartel, praticamente, apenas o solicitava para trabalhos menos nobres, rudes, tais como fazer um caixote, colocar umas prateleiras, armar um alpendre ou um estrado na parada, em dia de cerimónia militar. Tudo isto ele fazia de bom grado, com rapidez e perfeito, granjeando a estima dos superiores, restando-lhe muito tempo para dar expressão à sua criatividade e alimento à sua curiosidade intelectual. 

Só passada a recruta, com mais tempo disponível, me apercebi que tínhamos ali um exímio marceneiro, restaurador de móveis antigos e, ao mesmo tempo, um filósofo. De estatura mediana, seco de carnes e meio dobrado pelo ofício, usava óculos de lentes cortadas a meio, só para ver ao perto, e lápis atrás da orelha. Ao canto da boca, pendida, estava sempre uma ponta de cigarro, daqueles que se enrolavam à mão, a maior parte do tempo, apagada. A passar constantemente os dedos pelos ralos cabelos, lisos, alourados, a virarem a branco, o mestre, como eu o tratava, andava o dia todo de cabeça descoberta. Perdera o bivaque ou, melhor, nunca sabia onde o deixava nem procurava encontrá-lo. Ao cruzar-se com um superior, levava a mão à altura da testa e, num gesto descontraído, e sem tirar a beata da boca, mesmo assim descomposto, fazia uma espécie de continência, sem parar. Do comandante, aos soldados, todos o aceitavam naquele seu modo de estar.

Um dia, um jovem capitão, recém-chegado ao Quartel, imbuído de militarismo, participou, por escrito, ao comandante, a falta de aprumo militar do sargento, referindo que, ao passar por ele, este lhe prestou a continência com o mesmo desalinho que lhe era habitual. Mas, o comandante, um coronel, de há muito na “casa”, chamou o jovem capitão e, pacientemente, explicou-lhe quem era o velho sargento, finalizando, com bonomia e numa bela expressão de caserna.
– Rasgue lá a merda do papel e deixe o homem em paz.

O sargento carpinteiro era uma espécie de paisano excêntrico dentro do quartel, uma excepção consentida na uniformidade própria da instituição militar A carpintaria, a um extremo do vasto campo de instrução, era um verdadeiro atelier de artista, cheio que nem um ovo, onde obras finas começadas se misturavam com restauros há muito por acabar. De chão nunca varrido, os montes de serradura e raspas acumulavam-se na base de pranchas e tábuas empinadas à parede onde, suspensa de pregos e escápulas, saltava à vista uma profusão caótica de tudo e mais alguma coisa. Ir para a oficina do sargento carpinteiro, de quem me tornei amigo, tinha o sabor da evasão. Só entrava ali, de tempos a tempos, uma ordenança a transmitir-lhe algum recado ou a chamá-lo, o que era para ele sempre uma interrupção forçada. Mais parecendo um civil, saía, então, do seu canto, com ferramentas e tábuas nas mãos ou aos ombros, em passo rápido, alheio a tudo e todos, só se sabendo ser um militar pelas divisas de segundo-sargento, quase imperceptíveis pela falta de solarine no latão de que eram feitas.

Com fama de bom jogador de xadrez, a chegada de novos aspirantes milicianos trazia-lhe parceiros para jogos intermináveis e entusiásticas conversas aos fins da tarde. A primeira vez que ali entrei trouxe-me à lembrança a oficina do mestre Roberto, onde, como já escrevi por diversas vezes, me iniciei no gosto de trabalhar a madeira, um gosto que nunca perdi. Os cantares das serras e serrotes, das plainas e garlopas, o som do ferro de pua, qual bicho da madeira, a abrir caminho, o do rebolo de amolar a dar desbaste às ferramentas de corte, voltaram aos meus ouvidos quase duas décadas depois. 

Também os cheiros das diversas madeiras, os do grude, dos vernizes e outros me trouxeram à memória aquele meu pequeno mundo onde brinquei julgando ser aprendiz. Com ele passei a conhecer muitas madeiras para além do pinho, do carvalho, do azinho ou da nogueira, que me eram familiares. Vinhático, cerejeira, andiroba, pau-santo, acácia, vidoeiro estavam ali para que as pudesse conhecer, algumas delas em antigos móveis restaurados ou à espera de o serem ou, ainda, em restos de outros. O mestre soprava-os do pó, explicava-me as suas particularidades específicas e falava-me das suas características como matéria-prima da sua arte. – Esta aqui – dizia ele, encorajado pelo meu interesse – é angelim. Resiste ao tempo como nenhuma outra. Só o fogo dá conta dela. Veio da Índia. E esta – deu-me a cheirar – é criptoméria. É oriunda do Japão, mas dá-se muito bem nos Açores.

Foram muitas as horas que passei “desenfiado” neste canto esquecido do quartel, umas dando largas a uma vocação que não tivera continuidade, outras, em longas conversas com o sargento. Curioso dos meus saberes no domínio da preparação académica que era a minha, ensinou-me outros, os que aprendera nos livros e os que a vida lhe facultara.

UM CRIME OITOCENTISTA

Artigo meu num recente JL: Um dos crimes mais famosos do século XIX português foi o envenenamento de três crianças, com origem na ingestão ...