segunda-feira, 26 de agosto de 2024

CONFIANÇA NA CIÊNCIA

 Meu artigo saído no País Positivo, suplemento do jornal Sol:

Um recente estudo do Open Science Framework (OSF) apurou que a grande maioria dos cidadãos em 68 países confia na ciência. Como disse Carl Sagan, no título de um dos seus livros, num «mundo infestado de demónios», a ciência continua a ser «uma luz na escuridão». Confiar na ciência significa confiar nos cientistas em quem o público delega a prática da investigação científica. Espera-se que eles comuniquem os resultados obtidos, assim como  os métodos usados para os obter. Mas o referido estudo diz mais: que os cientistas devem estar mais envolvidos na definição de políticas públicas em temas que dependem da ciência, que são muitos. Alguns deles são grandes desafios, como as mudanças climáticas, a inteligência artificial e a biomedicina.

Resulta, porém, do estudo que a abertura dos cientistas aos cidadãos não é suficiente. Isto é, os cientistas devem esforçar-se mais por se aproximar do público, comunicando o que fazem em linguagem comum. Assino por baixo: os esforços em curso, apesar de meritórios, não chegam para colmatar o fosso que persiste entre a ciência e as pessoas. A nossa vida depende da ciência e da tecnologia, mas a ignorância a respeito destas continua a dominar. Sagan disse que isso podia ser «uma receita para o desastre», designadamente quando a ignorância sobe a cargos de poder.

E em Portugal? De acordo com o OSF, Portugal ocupa uma modesta posição (38.ª) no ranking da confiança nos cientistas. Não me admira: a nossa cultura científica, apesar do seu indubitável crescimento nos últimos 50 anos, ainda é débil. Não nos devemos enganar pela forte adesão às vacinas da COVID-19, pois ela pode dever-se mais à obediência à autoridade do que à confiança na ciência. É preciso que os cientistas nacionais reforcem a sua aproximação à sociedade. Existe em Portugal uma agência para a cultura científica, mas ela, nos últimos anos, parece estar mais morta do que viva. O governo bem poderia reanimá-la, religando-a à comunidade científica e ao público de todas as idades.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

A RENDIÇÃO DA PALAVRA

A palavra pode só o que pode,
por mais que ensaie ir mais além:
diante de um mundo que explode,
sabe que é só impotente refém.

O apocalipse está bem perto
e já se lobrigam os seus cavalos:
são esbeltos bichos em céu aberto,
anunciando tremendos abalos!

Para os travar, temos a palavra,
mínimo guerreiro, que mal nos resta:
cheia de horror, com coragem, lavra

terreno que a peste já infesta.
Heroica, fala e diz em voz alta
que é a vaga final que nos assalta.
                                                                    Eugénio Lisboa

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

UMA VIDA EM 366 PALAVRAS

Por A. Galopim de Carvalho
 
Cada vez com mais frequência, dou por mim a reflectir sobre o encurtar do horizonte de vida, em particular pela falência acelerada do corpo, bem sentida fisicamente a cada dia que passa, e bem consciencializada pela lucidez do pensamento, como é, felizmente, o meu caso, quanto à inevitabilidade desta descida na “curva de Gauss” que é nossa condição da vida.

Quando olho para o espelho não vejo o adulto maduro e cheio de energia que ainda trago comigo e rege a minha maneira de estar e de conviver. Vejo um rosto que não conheço, que não condiz com o que vejo quando olho para dentro de mim. Mentalmente mantenho a curiosidade, a ousadia e a força anímica da juventude, caldeadas pela ponderação, tolerância e paciência dos velhos.

Devo dizer que esta realidade não me assusta minimamente. Felizmente, a medicação regular que tomo assegura-me a qualidade de vida que me permite ocupar o dia-a-dia com salutar alegria e continuar a trabalhar intensamente como até aqui. Já o disse, quando estou, como agora, bem sentado, frente ao monitor do computador, não tenho idade nem as múltiplas maleitas e limitações que se apoderaram do meu corpo.

Neste percorrer de uma longa caminhada, para além das múltiplas experiências presenciadas na infância, na adolescência e no tempo que cumpri como miliciano ao serviço do Exército, dei particular atenção às vividas e presenciadas como aluno e, mais tarde, como docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e como director do Museu Nacional de História Natural da mesma Universidade. 
 
A estas experiências, sobre as quais tenho reflectido e que tenho relatado em livros e em vários outros meios de comunicação, acrescento as muitas que vivi e presenciei como cidadão interventor, sobretudo, na árdua defesa e valorização da geologia e do nosso património natural, numa sociedade cinzenta, onde, para vergonha dos responsáveis, assisto à degradação e, em alguns casos, destruição do património natural, à falência da Educação e ao descrédito da Justiça. 
 
Sociedade cinzenta onde a escola dá diplomas, mas não dá cultura e onde o conhecimento científico e humanístico continuam arredados da grande maioria dos nossos decisores, aos vários níveis da administração.
 
A, Galopim de Carvalho

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

UM ESCLARECIMENTO

Por A. Galopim de Carvalho

Foi muita a curiosidade que sempre tive por uma grande panóplia de assuntos. Na profissão, como docente do Departamento de Mineralogia e Geologia da Faculdade de Ciências de Lisboa, pertenci à última geração dos docentes que tinham de ministrar o ensino de quase todas a “cadeiras” (disciplinas) do Departamento, da Cristalografia à Paleontologia, passando pela Mineralogia, Geologia, Estratigrafia, Geomorfologia e outras. No doutoramento (que fiz nesta Universidade, em 1968), para além da dissertação a defender perante um júri, alargado a todos os professores catedráticos da Faculdade, o doutorando era interrogado sobre dois temas de entre todos os incluídos no universo científico e pedagógico do Departamento.

Como investigador, uma actividade complementar (eu diria obrigatória) da docência, a tempo inteiro, enveredei pela dualidade Geomorfologia apoiada pela Sedimentologia, um mundo que me abriu as portas à Geografia e me alargou os horizontes de uma ciência milenária. Foi assim ao longo de décadas, numa dedicação exclusiva, por vezes obsessiva, pelo que pouco tempo tive para sondar e, muito menos, enveredar por outros saberes.

Na sequência da jubilação, aos 70 anos, o Estado fez aquilo que é costume: atribuiu-me uma pensão e, como já escrevi, colocou-me na prateleira dos pensionistas, corria o ano de 2003. Só que eu não quis lá ficar. A meu pedido, ainda tive autorização para continuar por mais dois anos na direcção do Museu Nacional de História Natural, mas, depois, rua!

Há 21 anos que sou senhor do meu tempo e entendi continuar a servir o meu país e é público que o tenho feito em duas vertentes:

1. valorização e defesa do nosso património geológico, numa árdua “luta” contra a insensibilidade e desinteresse (leia-se ignorância) das administrações (há excepções, claro). Com o avançar da idade e as limitações físicas decorrentes, tenho diminuído consideravelmente esta “luta”, que felizmente não esmorece porque há continuadores;

2. divulgação científica pela palavra falada e escrita. Por decisão consciente, tendo em mente o que entendi ser um meu dever cívico, afastei-me da especialização que foi a minha, no meio académico (um saber que, com o passar dos anos, se foi naturalmente desactualizando) e enveredei pelo caminho da divulgação. Como divulgador que me assumo, direi que sou um generalista curioso de muitas “artes”.

Fazendo humor, lembro um dito, cuja autoria desconheço: «O especialista é aquele que sabe cada vez mais de um tema cada vez mais restrito, até saber tudo acerca de quase nada”. No campo oposto “o generalista é aquele que pouco ou quase nada sabe acerca de quase tudo».

“São muitos os leitores que comentam simpaticamente a diversidade de temas que encontram nesta minha página do Facebook.” A propósito destes saborosos comentários sinto o dever de deixar aqui um esclarecimento.

Começo por dizer que uma coisa é “estar a léguas de possuir um conhecimento enciclopédico”, o que é o meu caso, outra coisa é ter uma curiosidade, quase obsessiva, por muitos domínios do saber, sejam eles: eruditos (como filosofia, história de tudo ou quase tudo e artes das mais diversas, sociologia, política) ou vulgares e, aqui, há uma “infinidade” de tecnologias, ofícios e artesanais que, desde sempre, estiveram na mira dessa curiosidade.

Como é natural, ao “meter a foice em seara alheia”, sempre que ouso falar de um assunto que não seja aquele em que fiquei profissionalmente rotulado, sujeito-me a reparos por parte dos cultores desse assunto. Neste aspecto devo esclarecer que a imensa maioria dos saberes sobre os quais gosto de escrever, está nos livros, noutros documentos ao meu alcance e na Internet que, criteriosamente, sei consultar. A experiência de quarenta e três anos a estudar para poder ensinar, habilita-me e encoraja-me neste caminhar que tem sido o meu, para quem, fins-de-semana, feriados ou dias de férias deixaram de fazer sentido como tal.

A minha sabedoria é, pois, a que fui adquirindo ao longo da vida, mais toda a que tenho acesso, numa infinidade de fontes ao dispor de qualquer um. Posso, assim, escrever sobre tudo o que me der prazer.

A. Galopim de Carvalho

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

"DÁ O PRIMEIRO PASSO!"

“Ser professor… é mudar vidas”. Estas são as palavras que formam o principal slogan da "campanha de sensibilização" (ver aqui) (leia-se marketing) destinada a (como direi?) "encontrar", "angariar", "recrutar" ou (de modo politicamente correcto) "atrair" pessoas que possam assegurar funções docentes na escola pública portuguesa. A medida, que tinha sido antes anunciada pelo (agora designado) Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), no âmbito do dito "Plano+Aulas+Sucesso", foi operacionalizada pela Direção-Geral da Administração Escolar (DGAE), constando no seu site oficial (aqui) e redes sociais associadas. Também está a ser divulgada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, Câmaras Municipais de Lisboa e Porto, instituições de ensino superior, rede pública de escolas e mais além (ver aqui).

Recorte daqui
Abri o site oficial e os diversos links, vi as imagens, assisti a um pequeno filme, li os textos... Os comentários a fazer seriam mais do que o tempo de férias permite e que limito a três.

1. Entre as pessoas a "atrair" para o ensino, contam-se, sobretudo, jovens, que podem concorrer com habilitação própria (não realizaram o Mestrado em Ensino, habilitação que, segundo a lei vigente, lhes permite serem professores de pleno direito) e já idosas, que se irão reformar ou já se reformaram como professores.
 
Esses dois grupos estão representados na imagens de rosto do mencionado site: na primeira a jovem professora (?) quase não se distingue dos alunos e na terceira a senhora grisalha quererá "continuar jovem". Estas representações (todas de mulheres) mereciam desenvolvimento, mas penso que o leitor entenderá aqui a presença de uma ideia que marca o discurso sobre a profissão em causa: a motivação e... sucesso dos alunos são (muito) devidos à "proximidade" que os professores mantêm com eles, como se fossem como eles: novos, dinâmicos, aprendizes...
 
2. Daí, talvez, o tratamento por "tu" que o MECI/DGAE entendeu usar, ainda que não de modo exclusivo, para se dirigir formalmente aos potenciais candidatos, que, jovens ou idosos, são adultos.
"Receberás indicações sobre o tipo de habilitações, o(s) respetivo(s) grupo(s) de recrutamento, e, em seguida, deves proceder ao registo (...). Deverás acompanhar no website da DGAE e nas Redes Sociais os horários disponíveis em oferta de escola (Agrupamento de Escolas/Escolas não Agrupadas) para poderes concorrer online. o primeiro passo! (aqui)
3. Numa apreciação global do material da campanha, destaco a pobreza da linguagem, os lugares-comuns, os argumentos-mais-que-estafados, a ausência dos grandes princípios condutores da educação escolar pública. Digo isto por várias razões:
a) tal como o slogan principal, que acima reproduzi, os restantes (destinados a diferentes tipos de potenciais candidatos) não são mais animadores: Ser professor é escolher o futuro (destinado a alunos que ingressem em licenciaturas e mestrados em Ciências da Educação/Ensino e que passam a beneficiar de bolsa); Ser professor é um novo percurso (destinado a bolseiros de doutoramento, mestres, investigadores e doutorados); Ser professor é continuar jovem (destinado a professores que chegados à reforma queiram continuar a ensinar) e Ser professor é voltar à escola (destinado a professores aposentados com remuneração extra) (ver aqui);
b) não falta a alusão à "boa-vondade" do sistema, direccionada sobretudo para os alunos de "contextos socioeconómicos mais desfavorecidos, colocando em causa a igualdade de oportunidades no acesso a uma educação de qualidade e a um percurso escolar de sucesso";
c) os depoimentos de três professores que constam num tal "Guia da profissão docente" (atendendo à data de publicação noutro sítio, conta já com um ano, terá sido repescado? ver aqui e aqui) são "redondos", confrangedores, nota-se que desempenharam um papel.
Em suma, alguém que coloque o ensino além da trivialidade subjacente a este discurso (que se percebe replicado de outros), que considere a dignidade um atributo inalienável da profissão docente, que entenda o professor como um intelectual, a menos que precise desesperadamente de um trabalho, não "dá o primeiro passo", como consta no texto da campanha, que se quer mobilizador.
 
Nada se aproveita, então, nas diversas "peças" que constituem a campanha? Sim, aproveita: o diagnóstico (já há muito conhecido) da gravíssima situação da falta de professores devidamente formados e a referência à legislação com que, bem ou mal, temos de contar neste momento. 
 
Era acrescentar, de modo muito simples e directo, que a tutela (tal como muitas outras), em virtude de medidas inadequadas que tem tomado para o ensino e para a formação docente, não pode eximir-se à responsabilidade na debilitação de uma profissão que, note-se, tem em Portugal um passado recente frágil. E solicitar a quem possa contribuir para reerguer estas duas áreas que se disponha a fazê-lo. Isto sem os ardis de campanhas e dos seus slogans... Em educação, o marketing não vale.

domingo, 11 de agosto de 2024

A REVOLUÇÃO DO GENOMA ANTIGO

Meu artigo no mais recente JL:

Em Outubro de 2019, visitou Portugal, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o médico sueco Svante Pääbo, que deu no anfiteatro da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra a palestra «Como a genética conta a nossa grande história humana». Pääbo lançou então o seu livro O Homem de Neandertal. Em busca dos genomas perdidos, saído na colecção «Ciência Aberta» da Gradiva. O meu exemplar tem uma simpática dedicatória, que se liga ao facto de eu ter organizado a sua visita a Portugal.  

Dificilmente podia o cientista, director de Genética no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, adivinhar, nessa altura, que, escassos três anos depois, viria a ser o único laureado com o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina pelas «suas descobertas relativas aos genomas de hominídeos extintos e à evolução humana.» O prémio foi mais do que merecido porque, como nos conta nesse livro, ele e a sua equipa tinham realizado, em 2010, a primeira sequenciação do genoma do homem de Neandertal. Uma conclusão desse estudo é que os modernos humanos (isto é, a nossa espécie, Homo sapiens) possuem uma parte, ainda que pequena, do genoma de Neandertal, em resultado dos seus cruzamentos com os neandertais.

Saiu agora, na mesma editora, um novo livro, mais abrangente e actualizado, sobre o genoma humano antigo, que tem por título Quem Somos e Como Chegámos Aqui e o subtítulo O ADN antigo e os novos avanços científicos acerca do passado humano. É seu autor o biólogo norte-americano David Reich, professor de Genética na Harvard Medical School. Reich foi um discípulo de Pääbo: ampliou os resultados deste, ao desenvolver as técnicas de sequenciação de genomas antigos. Em vez dos ossos de alguns esqueletos antigos, passaram a ser examinados milhares de ossos de muitos lados do mundo. Não só ao cruzamento entre Neandertal e o Sapiens ficou comprovado, como foram reveladas as surpreendentes migrações e a enorme mistura de populações na Europa, Ásia, na África e na América. De facto, os estudos de os genomas antigos, somando-se às investigações arqueológicas, antropológicas e linguísticas, vieram a revelar-se um meio extraordinariamente fértil de conhecer a história humana.

Reich explica o que foi a Revolução do Genoma Antigo: 

«Os primeiros genomas de humanos antigos foram publicados em 2010: alguns genomas de neandertais arcaicos, o genoma arcaico de hominídeo de Denisova e outro de um individuo com aproximadamente quatro mil anos, da Gronelândia. Nos anos seguintes assistimos à publicação de dados genómicos de mais cinco seres humanos, logo seguida por uma explosão de dados de 38 indivíduos, em 2014. Mas, em 2015, a análise dos genomas completos do ADN antigo entrou em modo acelerado. Três artigos revelaram mais conjuntos de dados de genomas completos, primeiro de outras 66 amostras, em seguida de mais 1200 e, depois, de mais 83. Em Agosto de 2017, o meu laboratório gerou dados genómicos de mais de três mil amostras antigas.»

Tornou-se assim possível analisar a ancestralidade de uma variedade de populações humanas espalhadas pelo mundo. O livro de Reich, competentemente traduzido por David Marçal, nas suas 400 páginas com muitos mapas e esquemas, expõe para leigos o essencial do que sabemos hoje sobre as nossas origens.

O que é o genoma? É a sequência genética completa de um determinado organismo. Ela contém a informação para construir proteínas, peças biológicas essenciais. As instruções estão escritas no ADN, uma molécula longa, num código que faz uso de quatro letras – A, T, G e C. O código genético é universal, ou seja, o mesmo para todos os seres vivos. Nos humanos o ADN encontra-se em 46 cromossomas, no núcleo celular, e nas mitocôndrias, organelos das células, com a particularidade de, neste caso, a transmissão se dar só pela via materna. A sequenciação do genoma consiste em determinar a código do ADN. O Projecto do Genoma Humano foi concluído em 2003 e modernas tecnologias permitem hoje realizar a sequenciação do nosso genoma de um modo incrivelmente mais rápido e económico.

Todos somos iguais e todos somos diferentes. Mas somos mais iguais do que diferentes: cerca de 99% do genoma de todos os humanos é comum. Pääbo e Reich sequenciaram os genomas de pessoas que viveram há muito tempo e compará-lo com o nosso. O homem de Neandertal surgiu há 400 mil anos e extinguiu-se há 28 mil anos. E o Homo sapiens surgiu há 300 mil, em África. As mutações, que são uma parte essencial da evolução, permitem-nos seguir a história humana e mesmo pré-humana. Sabemos hoje que os primeiros hominídeos têm cerca de seis milhões de anos, altura em que se separaram de outros primatas (o mais próximo de nós, o chimpanzé, tem um genoma que coincide em cerca de 95% com o nosso). Reich conta-nos a história não só das nossas origens como do nosso espalhamento pelo planeta.

A genética liga-se com a recorrente discussão sobre as raças. Sabemos que a ideia de raça não tem sustentação científica, mas a genética diz que há pequenas diferenças biológicas entre grupos de populações humanas. Por exemplo, os negros americanos têm maior probabilidade de cancro da próstata do que os brancos. Reich diz-nos: 

«Se, como cientistas, nos abstivermos voluntariamente de estabelecer um enquadramento racional para discutir as diferenças humanas, deixaremos um vácuo que será preenchido pela pseudociência, um resultado que é muito pior do que qualquer coisa que poderíamos alcançar falando abertamente.» 

Não admira que o livro tenha originado controvérsias logo que saiu. Mas, também por isso, vale a pena lê-lo.

O autor é judeu e foi perguntar a um rabino, irmão da sua mãe, se fazia sentido usar os ossos de humanos antigos para a ciência. A resposta – sábia –  foi que os túmulos eram sagrados, mas que podiam ser abertos «desde que haja potencial para promover o entendimento e derrubar barreiras entre pessoas.» O livro ensina-nos que todos resultámos de misturas sucessivas e que, por isso, estamos mais ligados do que imaginamos. A genética permite-nos saber cada vez melhor quem somos e como chegámos aqui.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

PROMESSAS

SONETO DE ESCÁRNIO E MALDIZER

Os populistas prometem ao povo
o sol no bolso e dinheiro à farta.
Prometem até um deus todo novo
e os velhos cristãos, um raio que os parta!

Os populistas lixam os pequenos,
enquanto se benzem junto dos grandes.
Fazem acenos, vomitam venenos
e não há poderio que os desbande.

Os populistas desejam o céu,
ao preço de venderem o inferno.
O poder musculado é um pitéu

que anuncia um calvário eterno.
O populismo cresce sem parar,
porque oferece terra, mar e ar!
                                                                                    Eugénio Lisboa

sábado, 3 de agosto de 2024

O "ESTILO ALTAMENTE PURIFICADOR" DA LINGUAGEM (PSEUDO)EDUCATIVA

Quando George Orwell cunhou, para a posteridade, a NEWSPEAK (NOVILÍNGUA),
criada pelo Ministério da Verdade, para esconder as coisas mais horríveis,
sob o casto manto das palavras bem escolhidas,
pensava que essas picardias eram só próprias dos regimes totalitários.
As maiores ignomínias eram descritas num estilo altamente purificador,
que lhes dava um ar de inocente formulação erudita.
O horror era desinfectado pela filologia ao seu serviço.

Eugénio Lisboa, 2023 (texto cedido graciosamente).

Em final de ano lectivo, abro mails - cujo tema é educação e formação - que, não tendo "classificado" como urgentes e/ou importantes, fui acumulando ao longo dos últimos meses. São mails que me foram directamente dirigidos ou encaminhados por quem considera que tenho interesse neles. Refiro-me a informações sobre:

  • congressos, colóquios, seminários e outros eventos académicos,
  • iniciativas de editoras de livros escolares, que vão muito além da divulgação desses livros,
  • concursos para (os melhores) professores, alunos, escolas, projectos em variadas matérias... e, claro, os respectivos prémios,
  • selos de qualidade/de garantia/de certificação de alguma coisa, atribuídos ou a atribuir a escolas por uma diversidade de entidades, sobretudo privadas,
  • sites de novas e surpreendentes entidades, da mesma natureza, com promessas para as escolas, os alunos, as comunidades... o mundo,
  • actividades de autarquias/municípios, muitas delas em colaboração com esse tipo de entidades,
  • acções de formação para professores, e para os que o hão-de ser, sobre temas inimagináveis, muitas delas (estranhamente?) organizadas e acreditadas por tais entidades,
  • conferências, palestras... em escolas, politécnicos e universidades dadas por personalidades mediáticas provenientes de outros contextos como o do empreendedorismo,
  • kits pedagógicos, muitos de cidadania mas não só, produzidos por equipas, centros de investigação, empresas... pouco ou nada habilitadas em matéria educativa mas, nota-se, "oferecidos" com as melhores intenções,
  • publicação de relatórios, recomendações, orientações e afins de sacrossantas organizações transnacionais, mas também de organizações nacionais, em especial das cada vez mais presentes fundações,
  • recentes documentos normativos, powerpoints da tutela, notas da mesma fonte,
  • ...

Julgo que não esgotei os temas dos mails a que me refiro mas não importa porque, na verdade, o que queria era deter-me no seu modelo de redacção, que é muito simples: um conjunto de chavões retirados da "narrativa da educação do futuro" intercalados com palavras comuns.

Eis alguns exemplos desses chavões (alguns deles deturpações de palavras com real sentido educativo e pedagógico): inovação/mudança/transformação, competências/habilidades, valores, literacias, qualidade, liderança, crítica, criatividade, sucesso, resiliência, empoderamento, softskils, bem-estar, stakeholders, emoções, aprendizagem autónoma/activa/significativa, ubiquidade, disrupção, complexidade, cidadania, democracia, inspirador, mentoria, agency, eficácia, boas práticas, flexibilidade, digitalização, tecnologias, inclusão..

Num certo texto, os chavões estão alinhados de um certo modo; noutro, estão alinhados de um modo ligeiramente diferente; num terceiro, a mesma coisa e assim por diante. Não importa a ordem pela qual os chavões estão dispostos e ainda menos o que, nessa ordem, significam; o que importa é que estejam lá e que o conjunto pareça ser compreensível e que convença aqueles a quem se destina.

Face a um discurso que impõe a "criatividade" e a "crítica" (duas palavras com real sentido educativo e pedagógico, ainda que inteiramente desvirtuado na dita narrativa), deveríamos perceber, no imediato, o contrassenso que é a interminável e acrítica repetição a que me refiro. 

Mas não percebemos, e muito menos temos consciência de que a narrativa em causa já se tornou o "novo normal", não só de comunicação mas de pensamento. É mesmo uma novilíngua, tal como Orwell a apresentou.

Tenho, por isso, de reconhecer, recorrendo ao dito por Eugénio Lisboa, que esses chavões são "palavras bem escolhidas", cujo estilo "altamente purificador", salvífico, lhes confere "um ar de inocente formulação erudita" e benemérita. Por isso, sim: o "horror" revelado pela exploração do significado de algumas é "desinfectado pela filologia ao seu serviço".

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...