segunda-feira, 1 de setembro de 2025

APOROFOBIA

Amanhã começa um novo ano lectivo, pautado pela revisão da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (por Resolução do Conselho de Ministros n.º 127/2025, de 29 de agosto). Ainda que, como tenho dito neste blogue, esteja em desacordo com o destaque que nela é dado à "educação" financeira-empresarial (vindo de trás), a verdade é que as escolas (sobretudo nas pessoas dos seus directores e professores) têm autonomia para orientar a componente de Cidadania e Desenvolvimento em função dos valores que se encontram consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), constante nessa Estratégia como referência.

Mesmo que não se possa estabelecer uma relação directa entre o ensino desses valores e os efeitos desejáveis que pode ter na pessoa e na sociedade, no imediato e no futuro, não se pode também negar toda e qualquer relação, pelo que precisamos de continuar a pressupor que o trabalho curricular com base na Ética é nada menos do que fundamental.

Sem querer afirmar a ideia de que a escola tem de responder a necessidades prementes da sociedade, reconheço que, em nome do bem-comum, é sua obrigação ajudar a dirimir alguns problemas que a todos afectam. Um desses problemas, que volta para ensombrar os nossos dias, é a ameaça, em diversas frentes, à dignidade da pessoa, atentando directamente contra a democracia. 

A isto a escola pública não pode ficar indiferente. E, portanto, recusando o doutrinamento, recorrendo a "conhecimento poderoso", tem obrigação de promover a atitude de cidadania dos mais jovens. Se considerarmos, como a imprensa e resultados de eleições nos dão a ver, que a hostilização do outro que vemos como diferente está em crescendo, vale a pena oferecer aos alunos conceitos que possam ancorar essa atitude.

A minha sugestão vai, neste texto, para o conceito de aporofobia, apresentado pela filósofa espanhola Adela Cortina, no início dos anos de 1990, que deu título a um dos seus livros, tendo sido, em 2017, incluído no Dicionário da Língua Espanhola da Real Academia Espanhola e considerado, pela Fundação do Espanhol Urgente como palavra do ano.

Aporofobia provém de dois étimos gregos: áporos, que significa desamparado, miserável, indigente ou, simplesmente, pobre, e fobéo, que significa ter medo, rejeitar, hostilizar. Logo, designa a tendência de distanciamento daqueles a que se atribuem essas características. Diz Cortina que a palavra lhe surgiu ao perceber que os estrangeiros ricos e famosos tendem a ser bem acolhidos. Portanto, nem tudo pode ser explicado pela xenofobia.

A tendência aporofóbica percorre todas as épocas e lugares mas não sem contestação, o que tornou possível alicerçar as ideias de igualdade e de fraternidade, fixadas como valores éticos, no primeiro artigo da mencionada Declaração:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

Vale a pena ler uma entrevista à professora Cortina, catedrática emérita de Ética da Universidade de Valência, realizada por Irene Hernández Velasco uma vez que, lamentavelmente, nos quase cinco anos passados, não perdeu actualidade (aqui)

"Por que é importante que exista uma palavra para nomear o ódio aos sem-abrigo? Porque as pessoas precisam de dar nomes às coisas para reconhecer que elas existem e identificá-las; ainda mais se forem fenómenos sociais, não físicos, que não podem ser apontados com o dedo. Dar um nome à rejeição dos pobres permite visualizar essa patologia social, investigar as suas causas e decidir se concordamos que ela continue a crescer ou se estamos dispostos a desativá-la porque nos parece inadmissível.

A aporofobia é um fenómeno sobretudo dos nossos tempos, em que o sucesso e o dinheiro são concebidos por muitos como valores supremos? Infelizmente, sempre existiu, está no íntimo dos seres humanos, é uma tendência universal. O que acontece é que alguns modos de vida e algumas organizações políticas e económicas potenciam mais a rejeição aos pobres do que outros. Se nas nossas sociedades o sucesso, o dinheiro, a fama e o aplauso são os valores supremos, é praticamente impossível conseguir que se tratem todas as pessoas da mesma forma, que se reconheçam como seus iguais.

Como se manifesta a aporofobia na sociedade? Pode dar-nos alguns exemplos? Claro. Os imigrantes e refugiados são mal recebidos em todos os países, e alguns partidos políticos até ganham votos quando prometem fechar-lhes as portas. Tratamos com muito cuidado as pessoas que nos podem fazer favores, ajudar-nos a encontrar um emprego, ganhar eleições, apoiar-nos para conseguir um prémio e abandonamos aquelas que não nos podem dar nada disso. A sabedoria popular diz que é preciso trocar favores em provérbios como 'hoje por ti, amanhã por mim', e os pais costumam aconselhar os filhos a aproximarem-se das crianças em melhor situação. O bullying escolar é um exemplo de aporofobia (...).

De onde vem a aversão e o medo dos pobres, o que alimenta a aporofobia? É algo biológico, neuronal ou cultural? Para explicar com uma palavra bonita, é biocultural. A evolução do nosso cérebro e da nossa espécie é ao mesmo tempo biológica e cultural, ambas as dimensões estão entrelaçadas, influenciam-se reciprocamente. No caso da aporofobia, há uma base biológica, uma tendência para colocar entre parênteses aqueles que não interessam, a qual pode ser reforçada pela cultura, 
ou fragilizada se recorrermos a outras tendências, como a simpatia ou a compaixão.

Defende que a aporofobia é universal e que todos os seres humanos são aporofóbicos. Em que se baseia essa afirmação? No facto de que a antropologia evolutiva mostra que os seres humanos são animais recíprocos, dispostos a dar aos outros, desde que recebam algo em troca, seja da pessoa a quem deram, seja de outra em seu lugar. Esse mecanismo recebeu o nome de reciprocidade indireta e é a base biocultural das nossas sociedades contratuais, tanto políticas como económicas. Estamos dispostos a cumprir os nossos deveres se o Estado proteger os nossos direitos, estamos dispostos a cumprir os nossos contratos se os outros também o fizerem. Mas quando há pessoas que parecem não nos poder dar nada de importante em troca, excluímo-las desse jogo de dar e receber. Essas são as pessoas pobres, as excluídas.

As religiões têm tradicionalmente pregado em favor dos pobres. O catolicismo assegura, por exemplo, que deles será o reino dos céus (...). A crise das religiões está relacionada com a aporofobia? Mais do que crise das religiões, eu diria que, salvo exceções, vivemos em sociedades pós-seculares. Nelas, o poder político e o religioso não estão unidos, o que é excelente, porque assim o pluralismo é um facto, mas as religiões não desapareceram, continuando a ser uma fonte de vida e de sentido para muitas pessoas e para muitos grupos sociais. Até os seus valores, juntamente com outros, estão na raiz dos valores da ética cívica desses países. Quanto ao cristianismo, ele efetivamente aposta em todos os seres humanos e no cuidado da natureza, mas, por isso mesmo, num mundo em que há ricos e pobres, faz uma opção preferencial pelos pobres, exigindo que eles (...) possam sair da pobreza (...).

Considera que a rejeição dos pobres está por detrás da onda de xenofobia que assolou os Estados Unidos e a Europa nos últimos anos? E, se sim, porquê? Quando as situações políticas e económicas são más, procuram-se bodes expiatórios e os estrangeiros pobres são vítimas propícias. Fechar-lhes as portas, afirmar que são um perigo e defender os de dentro contra os de fora é a tática dos supremacistas. Mas, acima de tudo, contra os que são pobres (…) o supremacismo nacionalista rejeita os mais desfavorecidos e essa tática dá-lhes votos. No século XXI, devemos reverter essa tendência (…). A aporofobia atenta contra a democracia porque atenta contra a igualdade de dignidade de todas as pessoas, exclui os pobres, aqueles que parecem não ter nada para trocar. É radicalmente excludente, quando a democracia é inclusiva.

(...) Estamos conscientes de que somos aporofóbicos? Não estamos. Por isso, é preciso falar dessa patologia na esfera da opinião pública e tentar descobrir até que ponto está enraizada nas nossas vidas. Felizmente, há grupos a trabalhar nesse sentido, jovens que fazem os seus trabalhos de conclusão de curso, de mestrado e projetos de investigação sobre a aporofobia.

A aporofobia também se manifesta entre países? Os Estados mais ricos demonstram aversão aos mais pobres? (...). É claro que os países buscam a ajuda dos mais poderosos e isso explica, por exemplo, que se aproximem da China, esquecendo que ela não quer falar de direitos humanos. E no seio de cada país (...) existe a tendência para um afastamento dos mais desfavorecidos, para os tratar como leprosos no sentido bíblico da palavra.

Como se pode combater a aporofobia
? Tomando consciência de que ela existe e que não é apenas uma questão económica, mas sim a rejeição dos mais desfavorecidos em cada situação. Acho que se combate [afirmando] o igual valor das pessoas e educando no respeito pela dignidade de todas elas, e não apenas com palavras, mas mostrando na vida quotidiana que [somos] igualmente dignos." 

Vale também a pena ver uma entrevista conduzida por Juan Carlos Hervás, na qual Cortina afirma a enorme importância da educação na superação da aporofobia.



APOROFOBIA

Amanhã começa um novo ano lectivo, pautado pela revisão da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (por Resolução do Conselho de Mi...