Meu artigo no mais recente JL:
Em Outubro de 2019, visitou
Portugal, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o médico sueco
Svante Pääbo, que deu no anfiteatro da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra a palestra «Como a genética conta a nossa grande história humana». Pääbo
lançou então o seu livro O Homem de Neandertal. Em busca dos genomas
perdidos, saído na colecção «Ciência Aberta» da Gradiva. O meu exemplar tem
uma simpática dedicatória, que se liga ao facto de eu ter organizado a sua visita
a Portugal.
Dificilmente podia o
cientista, director de Genética no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva,
em Leipzig, na Alemanha, adivinhar, nessa altura, que, escassos três anos
depois, viria a ser o único laureado com o Prémio Nobel da Fisiologia ou
Medicina pelas «suas descobertas relativas aos genomas de hominídeos extintos e
à evolução humana.» O prémio foi mais do que merecido porque, como nos conta nesse
livro, ele e a sua equipa tinham realizado, em 2010, a primeira sequenciação do
genoma do homem de Neandertal. Uma conclusão desse estudo é que os modernos
humanos (isto é, a nossa espécie, Homo sapiens) possuem uma parte, ainda
que pequena, do genoma de Neandertal, em resultado dos seus cruzamentos com os neandertais.
Saiu agora, na mesma editora, um novo
livro, mais abrangente e actualizado, sobre o genoma humano antigo, que tem por
título Quem Somos e Como Chegámos Aqui e o subtítulo O ADN antigo e
os novos avanços científicos acerca do passado humano. É seu autor o
biólogo norte-americano David Reich, professor de Genética na Harvard Medical School.
Reich foi um discípulo de Pääbo: ampliou os resultados deste, ao desenvolver as
técnicas de sequenciação de genomas antigos. Em vez dos ossos de alguns
esqueletos antigos, passaram a ser examinados milhares de ossos de muitos lados
do mundo. Não só ao cruzamento entre Neandertal e o Sapiens ficou comprovado,
como foram reveladas as surpreendentes migrações e a enorme mistura de populações
na Europa, Ásia, na África e na América. De facto, os estudos de os genomas
antigos, somando-se às investigações arqueológicas, antropológicas e linguísticas,
vieram a revelar-se um meio extraordinariamente fértil de conhecer a história humana.
Reich explica o que foi a
Revolução do Genoma Antigo:
«Os primeiros genomas de humanos antigos foram publicados
em 2010: alguns genomas de neandertais arcaicos, o genoma arcaico de hominídeo
de Denisova e outro de um individuo com aproximadamente quatro mil anos, da Gronelândia.
Nos anos seguintes assistimos à publicação de dados genómicos de mais cinco
seres humanos, logo seguida por uma explosão de dados de 38 indivíduos, em
2014. Mas, em 2015, a análise dos genomas completos do ADN antigo entrou em
modo acelerado. Três artigos revelaram mais conjuntos de dados de genomas
completos, primeiro de outras 66 amostras, em seguida de mais 1200 e, depois,
de mais 83. Em Agosto de 2017, o meu laboratório gerou dados genómicos de mais
de três mil amostras antigas.»
Tornou-se assim possível analisar a
ancestralidade de uma variedade de populações humanas espalhadas pelo mundo. O livro
de Reich, competentemente traduzido por David Marçal, nas suas 400 páginas com
muitos mapas e esquemas, expõe para leigos o essencial do que sabemos hoje sobre
as nossas origens.
O que é o genoma? É a sequência
genética completa de um determinado organismo. Ela contém a informação para construir
proteínas, peças biológicas essenciais. As instruções estão escritas no ADN,
uma molécula longa, num código que faz uso de quatro letras – A, T, G e C. O
código genético é universal, ou seja, o mesmo para todos os seres vivos. Nos
humanos o ADN encontra-se em 46 cromossomas, no núcleo celular, e nas
mitocôndrias, organelos das células, com a particularidade de, neste caso, a
transmissão se dar só pela via materna. A sequenciação do genoma consiste em
determinar a código do ADN. O Projecto do Genoma Humano foi concluído em 2003 e
modernas tecnologias permitem hoje realizar a sequenciação do nosso genoma de
um modo incrivelmente mais rápido e económico.
Todos somos iguais e todos somos
diferentes. Mas somos mais iguais do que diferentes: cerca de 99% do genoma de
todos os humanos é comum. Pääbo e Reich sequenciaram os genomas de pessoas que
viveram há muito tempo e compará-lo com o nosso. O homem de Neandertal surgiu há
400 mil anos e extinguiu-se há 28 mil anos. E o Homo sapiens surgiu
há 300 mil, em África. As mutações, que são uma parte essencial da
evolução, permitem-nos seguir a história humana e mesmo pré-humana. Sabemos
hoje que os primeiros hominídeos têm cerca de seis milhões de anos, altura em
que se separaram de outros primatas (o mais próximo de nós, o chimpanzé, tem um
genoma que coincide em cerca de 95% com o nosso). Reich conta-nos a história não
só das nossas origens como do nosso espalhamento pelo planeta.
A genética liga-se com a recorrente
discussão sobre as raças. Sabemos que a ideia de raça não tem sustentação
científica, mas a genética diz que há pequenas diferenças biológicas entre
grupos de populações humanas. Por exemplo, os negros americanos têm maior
probabilidade de cancro da próstata do que os brancos. Reich diz-nos:
«Se, como
cientistas, nos abstivermos voluntariamente de estabelecer um enquadramento
racional para discutir as diferenças humanas, deixaremos um vácuo que será
preenchido pela pseudociência, um resultado que é muito pior do que qualquer
coisa que poderíamos alcançar falando abertamente.»
Não admira que o livro tenha
originado controvérsias logo que saiu. Mas, também por isso, vale a pena lê-lo.
O autor é judeu e foi perguntar a
um rabino, irmão da sua mãe, se fazia sentido usar os ossos de humanos antigos
para a ciência. A resposta – sábia – foi
que os túmulos eram sagrados, mas que podiam ser abertos «desde que haja potencial
para promover o entendimento e derrubar barreiras entre pessoas.» O livro
ensina-nos que todos resultámos de misturas sucessivas e que, por isso, estamos
mais ligados do que imaginamos. A genética permite-nos saber cada vez melhor
quem somos e como chegámos aqui.