Rui Bebiano, historiador e professor na Universidade de Coimbra, publicou hoje no diário As Beiras um texto que devia ser lido por todos aqueles que têm responsabilidades em matéria de educação escolar pública, desde ministros da tutela, formadores de professores, directores, professores... E relido tantas vezes quantas as necessárias até ser devidamente compreendido, pois tenho a certeza de que, não obstante a clareza da redacção, o seu conteúdo se afigura estranho, anacrónico, pouco aceitável face às "exigências da sociedade" e aos "interesses e necessidades" que se dizem ser as dos clientes, ou seja dos alunos e das famílias.
A finalidade educativa da educação escolar não está, efectivamente, no nosso horizonte, o que queremos da escola é que produza "capital humano", "recursos humanos". Isto significa a médio e longo prazo condenar a humanidade à degradação.
O título do texto, O recuo das humanidades como problema coletivo, é verdadeiro, mas o que nele se diz para as humanidades pode ser dito para uma parte significativa das ciências e, sem dúvida, para as artes e, mesmo, para a expressão corporal. Todas as áreas do currículo foram, há muito capturadas pelas exigências neoliberais e tomadas de assalto pelos seus gurus, que, com uma inenarrável arrogância, conquistam a comunicação social e a academia, sem deixar a escola de fora.
É preciso que se percebam os efeitos devastadores deste caminho, legitimado politicamente, por partidos mais à esquerda e mais à direita: é a dignidade humana que, antes de mais, está em causa e, de modo bem visível, a democracia, mas também outros valores que devem ser estimados como a verdade e a liberdade.
Por isso, subscrevo inteiramente o último parágrafo do texto de Rui Bebiano: como educadores temos de tomar consciência profunda de várias coisas:
1) de que o problema é bem real e de enormes proporções, como diz Nussbaum, que cita;
2) da coragem que é precisa para o enfrentar, porquanto isso gera incompreensões, quando não antagonismos, que se fazem acompanhar de consequências;
3) da dificuldade de oferecer "conhecimento poderoso" às crianças e aos jovens, e estimular as suas capacidades num mundo que insiste em atrofiá-las;
4) da morosidade que isso implica e da paciência que é preciso ter para não desistir.
2) da coragem que é precisa para o enfrentar, porquanto isso gera incompreensões, quando não antagonismos, que se fazem acompanhar de consequências;
3) da dificuldade de oferecer "conhecimento poderoso" às crianças e aos jovens, e estimular as suas capacidades num mundo que insiste em atrofiá-las;
4) da morosidade que isso implica e da paciência que é preciso ter para não desistir.
Eis o texto de que falo, com destaques que me permiti fazer:
Todos procuram compreender e partilhar as formas usadas pelos seres humanos para se expressarem, interagirem e criarem significados nos planos pessoal e coletivo, combinando diferentes modos de estar no mundo, de o entender, de o representar e de o transformar.
São-lhe muitas vezes associa das outras disciplinas, como a sociologia, a antropologia, a ciência política, o direito, a psicologia social ou a geografia humana, que se interessam também pela vida em sociedade.
Todavia, estas detêm junto do poder político e económico um referente de objetividade e de «utilidade» mais explícito, enquanto as humanidades são frequentes vezes relacionadas com formas de subjetividade e escolhas diletantes julgadas sem préstimo material.
Foi esta uma das razões pelas quais as políticas educativas do neoliberalismo passaram a encará-las como formas de despesismo, com um peso dispensável nas contas públicas. Salvo quando a sua presença possa servir para legitimar certas escolhas. Em particular a história local e a dos «grandes feitos» tem cumprido esta função, passando a ser olhada com desinteresse logo que revele um passado silenciado ou diverso das leituras dominantes.
Todavia, as humanidades têm sido essenciais para produzir sociedades melhores e para propagar sensibilidades que favoreçam a afirmação do humano.
O conhecimento que oferecem, as experiências que comunicam, a diversidade que mostram, os trajetos dos indivíduos e das sociedades que veiculam, têm sido, ao longo dos séculos, vitais para ampliar e transmitir a variedade do mundo, tornando-o melhor. E também para destacar, como exemplo e legado coletivo, os valores essenciais do progresso, da liberdade, do respeito pelo outro, da solidariedade, da cordialidade, da partilha, que tornam o humano mais humano e ajudam a melhorar a vida de todos. Ao mesmo tempo, elas alimentam os princípios fulcrais da democracia, bem como, palavras da filósofa Martha C. Nussbaum, «o valor da imaginação, da criatividade, da empatia e do pensamento crítico».
Daí não ser de estranhar o desinvestimento nas humanidades em escolhas de política educativa, a sua acentuada simplificação ou o seu apagamento nos curricula escolares, a sua subalternização na imprensa e na televisão generalistas, levados a cabo por todo o lado, mesmo sob regimes democráticos regulados pelo utilitarismo, insistindo nas competências técnicas em detrimento dos saberes substantivos, e provocando o referido recuo.
"A partir dos anos noventa passou a falar-se bastante, sobretudo entre quem as tenha no eixo das suas vidas, do recuo, ou da crise, das humanidades. Isto é, de uma rápida e acentuada desconsideração pública dos saberes e das práticas que estudam e transmitem a experiência humana, incluindo-se neles a literatura, as ciências da linguagem, a história, a filosofia, os estudos culturais e as artes.
Todos procuram compreender e partilhar as formas usadas pelos seres humanos para se expressarem, interagirem e criarem significados nos planos pessoal e coletivo, combinando diferentes modos de estar no mundo, de o entender, de o representar e de o transformar.
São-lhe muitas vezes associa das outras disciplinas, como a sociologia, a antropologia, a ciência política, o direito, a psicologia social ou a geografia humana, que se interessam também pela vida em sociedade.
Todavia, estas detêm junto do poder político e económico um referente de objetividade e de «utilidade» mais explícito, enquanto as humanidades são frequentes vezes relacionadas com formas de subjetividade e escolhas diletantes julgadas sem préstimo material.
Foi esta uma das razões pelas quais as políticas educativas do neoliberalismo passaram a encará-las como formas de despesismo, com um peso dispensável nas contas públicas. Salvo quando a sua presença possa servir para legitimar certas escolhas. Em particular a história local e a dos «grandes feitos» tem cumprido esta função, passando a ser olhada com desinteresse logo que revele um passado silenciado ou diverso das leituras dominantes.
Todavia, as humanidades têm sido essenciais para produzir sociedades melhores e para propagar sensibilidades que favoreçam a afirmação do humano.
O conhecimento que oferecem, as experiências que comunicam, a diversidade que mostram, os trajetos dos indivíduos e das sociedades que veiculam, têm sido, ao longo dos séculos, vitais para ampliar e transmitir a variedade do mundo, tornando-o melhor. E também para destacar, como exemplo e legado coletivo, os valores essenciais do progresso, da liberdade, do respeito pelo outro, da solidariedade, da cordialidade, da partilha, que tornam o humano mais humano e ajudam a melhorar a vida de todos. Ao mesmo tempo, elas alimentam os princípios fulcrais da democracia, bem como, palavras da filósofa Martha C. Nussbaum, «o valor da imaginação, da criatividade, da empatia e do pensamento crítico».
Daí não ser de estranhar o desinvestimento nas humanidades em escolhas de política educativa, a sua acentuada simplificação ou o seu apagamento nos curricula escolares, a sua subalternização na imprensa e na televisão generalistas, levados a cabo por todo o lado, mesmo sob regimes democráticos regulados pelo utilitarismo, insistindo nas competências técnicas em detrimento dos saberes substantivos, e provocando o referido recuo.
Não pode, por isso, causar estranheza a atual afirmação em diferentes setores do espetro partidário de uma cultura política, segundo Teresa de Sousa, «sem alma e sem valores». Capaz de conviver, por falta de memória e de conhecimento, com um «novo normal» feito de ódio social, de deturpação da verdade, de menosprezo dos direitos humanos e de retrocesso das conquistas sociais.
Cego pela ignorância da experiência acumulada e dos erros do passado, ou por uma ligeireza «ultratecnicista» que o sistema educativo tem propagado, um número crescente de pessoas – em particular entre as mais jovens, como mostram inquéritos recentes – torna-se presa fácil de discursos sem fundamento, apresentados como novidade e capazes de devolver a história humana à estaca zero, dos quais se servem os populismos e a extrema-direita, empurrando sociedades razoavelmente equilibradas e pacíficas para um novo estado de barbárie.
Cego pela ignorância da experiência acumulada e dos erros do passado, ou por uma ligeireza «ultratecnicista» que o sistema educativo tem propagado, um número crescente de pessoas – em particular entre as mais jovens, como mostram inquéritos recentes – torna-se presa fácil de discursos sem fundamento, apresentados como novidade e capazes de devolver a história humana à estaca zero, dos quais se servem os populismos e a extrema-direita, empurrando sociedades razoavelmente equilibradas e pacíficas para um novo estado de barbárie.
Por isso, por demorado e difícil que seja o caminho, é tão importante pôr no centro do combate político diário a recuperação das humanidades."
4 comentários:
O lapsus scribendi que Helena Damião comete no título do seu texto ao confundir desvirtuação com desvirtualização é insignificante quando comparado com a urgência do seu apelo dramático contra estes tempos, de depreciação da educação, da escola, das humanidades, das artes e das ciências, que estamos penosamente a atravessar. Efetivamente, neste mundo sujeito ao poder do dinheiro e das armas de destruição maciça, a poesia está a ser expulsa da escola e de toda a parte. Os professores que aceitaram, num espírito de camaradagem democrática, a desvirtuação dos seus graus académicos, perderam a sua autoridade profissional para ensinar e agora são uns proletários como outros quaisquer.
Tem toda a razão, prezado Leitor. Foi... um lapso! E nada bom! Obrigada. MHDamião
O neoliberalismo tem as costas largas. Assacar-lhe as culpas pela menorização das humanidades - História sobretudo, arte e literatura clássicas - respira teoria da conspiração pot todos os poros. É um neo-marxismo também, atribuindo ao modelo social a capacidade, o poder, a intenção, de provocar danos morais e culturais e condicionar es escolhas educativas e de política mediática. Não. Quem faz a História são pessoas, indivíduos, instituições, e por isso é que as 'modas' (neste caso educativas) são passageiras.
O liberalismo, neo ou não, o laissez faire laissez passer, , deixa escancaradas as portas para os regimes e as instituições fazerem as opções que quiserem, via decisões democráticas. Se a decisão democrática é menosprezar as humanidades em favor de criar "recursos humanos", a culpa é de políticos incultos que querem um povo inculto. Não processem o liberalismo, que está inocente. Acham que na Rússia, Cuba, Coreia do Norte, Laos, etc, as humanidades mais nobres são promovidas? Pelo contrário, é nesses países sem liberalismo que se define compulsivamente que a educação estatal visa criar recursos humanos obedientes, disciplinados, e anular o espírito crítico. As Universidades mais promotoras das Humanidades são 1. Privadas 2. Liberalmente geridas.
A má vontade persecutória contra o liberalismo fica tão mal aos autores como as vis intenções de que acusam o modelo liberal.
Só mais uma nota: escrever "setores do espetro partidário" não abona nada em favor das Humanidades. Essa ortografia reles decidida por agentes estúpidos inimigos do Humanismo clássico mostra quanto o/a /os/as autores do artigo são incoerentes e , talvez sem intenção, avessas às Humanidades. Lamentável.
Prezado Leitor, tal como o modernismo não é a mesma coisa que pós-modernismo, também o liberalismo não é o pós-liberalismo. Cordialmente, MHDamião
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