segunda-feira, 14 de abril de 2025

ESQUECIMENTO E CULPA COLECTIVA

O inglês Frederick Forsyth, piloto de aviação, jornalista, escritor - sobretudo de histórias de espionagem - e, ao que confirmou na sua autobiografia, agente secreto (nunca pago) do MI6, no livro Odessa (Dossier Odessa), publicado em 1972 e dedicado a "todos os repórteres da impressa", constrói um diálogo entre a personagem principal, o jornalista Peter Miller, e a sua mãe. 
 
Nesse diálogo, de aparência despretensiosa, mostra bem a oscilação da memória, colectiva e individual, sobre acontecimentos especialmente traumáticos, no caso, a guerra e as suas inauditas iniquidades: mantê-los vivos na lembrança porque eles são uma realidade ainda que com consciência de que isso nos martiriza, ou procurar esquecê-los para continuarmos a viver com alguma vontade, pois, afinal, o mal ficou para trás e se o invocarmos muitas vezes ele torna-se banal.
- Mãe...
- Diz querido.
- Durante a guerra... essas coisas que as SS fizeram às pessoas, nos campos... Alguma vez suspeitou... alguma vez soube o que se passava?
A mãe começou a levantar a mesa com uma energia e uma actividade invulgares. Só passados momentos respondeu:
- Coisas horríveis. Coisas horríveis! Os ingleses obrigaram-nos a ver os filmes, depois da guerra. Não quero ouvir falar mais disso.
Saiu e Peter levantou-se e foi ter com ela à cozinha.
- Lembra-se de, em 1950, quando tinha 16 anos, ter ido a Paris, com um grupo da escola?
- Lembro - respondeu a mãe, enquanto enchia o lava-loiça.
- Levaram-nos a visitar uma igreja chamada Sacré Coeur. Quando chegámos, estavam a terminar um serviço religioso em memória de um homem chamado Jean Moulin. Saíram algumas pessoas e ouviram-me falar alemão com outro rapaz. Uma delas virou-se e cuspiu-me. Lembro-me de ver o cuspo a escorrer pelo casaco abaixo e lembro-me também de que, quando voltei para casa, lhe contei o sucedido. Recorda-se do que me disse, então?
A senhora Miller lavava furiosamente os pratos do jantar.
- Disse-me que os franceses eram assim, que tinham hábitos porcos.
- E têm! Nunca gostei deles.
- Ouça, mãe, sabe o que fizemos a Jean Moulin antes de ele morrer? Não foi a mãe, nem o pai, nem eu, mas, sim, nós, ao alemães... ou melhor, a Gestapo, o que para milhões de estrangeiros parece significar o mesmo.
- Não sei nem estou interessada em saber. Já chega dessa conversa.
- Bem, eu também não lho posso dizer, porque não sei, mas provavelmente, está registado em qualquer lado. O que interessa é que me cuspiram em cima, não por pertencer à Gestapo e, sim, por ser alemão.
- Devias orgulhar-te de ser alemão.
- Oh, orgulho, acreditem orgulho! Mas isso não significa que tenha de me orgulhar também dos nazis, das SS e da Gestapo.
- Ninguém se orgulha disso, mas não se ganha nada em falar do assunto. As coisas não melhoram por esse facto.
Estava irritada, como sempre que ele argumentava com ela acerca fosse do que fosse. Limpou as mãos ao pano da louça e voltou para a sala. O filho seguiu-a. (...)
- (...). Não comeces a remexer no passado, não ganharás nada com isso. Está morto, morto e enterrado. O melhor é esquecê-lo (...). Além disso, já ninguém quer esses horríveis julgamentos em que todos os pavores são trazidos a público. Ninguém te agradecerá (...). Já não querem mais julgamentos: é demasiado tarde. Abandona essa ideia, Peter, por favor! Por amor de mim.

À oscilação junta-se a simplificação e a generalização que remete para a "teoria da culpa colectiva": todos os que estão de um lado de certa fronteira, que têm esta ou aquela característica, nacionalidade ou religião são algozes... Acontece que esta "teoria" protege, precisamente, os verdadeiros algozes:

A teoria da culpa colectiva de sessenta milhões de alemães, incluindo milhões de crianças pequenas, mulheres, reformados, soldados, marinheiros e aviadores que não tiveram nada a ver com o holocausto, foi originalmente concebida pelos Aliados, mas depois agradou muito aos antigos membros das SS. A teoria é o seu melhor aliado, pois eles compreendem - e poucos são os alemães, além deles, que parecem compenetrar-se disso - que enquanto a teoria da culpa colectiva persistir, ninguém começará a procurar assassinos específicos - ou, pelo menos, não começará a procurá-los com muito empenho. Portanto, os assassinos das SS ainda hoje se continuam a esconder atrás da teoria da culpa colectiva.

Não preciso de dizer que, se nos deslocarmos da Alemanha de meados do século XX para o presente, vemos a ficção de Forsyth bem à frente dos nossos olhos.
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REFERÊNCIA
Forsyth, F. (sd). Odessa. Livros do Brasil (pp. 93-95 e 168).

1 comentário:

M. Jorge disse...

Fico sempre confuso com análises maniqueístas. Luta entre bom e mau, preto e branco sem zonas cinzentas. A natureza é bem mais florida.
Siegfried Lenz dedicou à tese da «culpa global» um extenso romance com o título «A Aula de Alemão» (Deutschstunde), onde se coloca a questão sobre os limites do dever e da responsabilidade individual (é natural que a legislação na e da Alemanha se debruce sobre a dita «Gesamtschuld»). É difícil falar de guerra, ou daquela Guerra, com pessoas que viveram em Königsberg (em Ostpreußen), Kant terá nascido e leccionado por lá, hoje Kaliningrad, vivem hoje no extremo da Alemanha, os que ainda vivos estão. Leia-se o «Tambor» de Günter Grass, historicamente exemplificativo.
Também poderemos falar de um certo professor de Inglês, Britânico e ex-piloto da RAF, que na zona de ocupação britânica, estava permanentemente a contar aos seus alunos alemães do Liceu (Gymnasium), e não só, como tinha bombardeado Hamburgo e Colónia, onde nos anos 60 e 70 ainda se viam muitos estropiados.
Culpa colectiva ou culpa de todos, há toda uma colecção de correntes políticas que se nutrem neste sentimento com moralismos duvidosos. Hannah Arendt, judia alemã, apesar de todo o sofrimento, mostrou em «Do Totalitarismo» as faces da moeda, onde o retracto, da época, dos franceses não me parece ser lisonjeiro. Leia-se Rainer Kunze, os contos «Os Anos Maravilhosos» (Die Wunderbaren Jahre), sobre a experiência na RDA (publicado na RFA após ter fugido) ou o que terá acontecido com Bertolt Brecht na RDA. Uma fronteira de arame e betão em que dos torreões se apontavam armas às crianças da RFA que ali passavam, ou «O Arquipélago Gulag», etc.
Em Portugal, pergunte-se de sentimento aos ditos «retornados», pergunte-se a outros sobre as maravilhas do Estado Novo... Lei-se «A Onda» (The Wave) de Morton Rhue, a famosa experiência — verdadeira — de um professor de História na escola secundária de Palo Alto, em 1969. O conhecimento altera o decurso dos acontecimentos, escreveu Karl Popper. A Alemanha de hoje não é o que foi, o mundo todo não é o que foi.
Vivemos num admirável mundo novo, rejeitar abordagens simplistas, não quer dizer ignorá-las, será sempre pior. Na Alemanha de hoje como no Portugal de hoje, tudo se vê «bem à frente dos nossos olhos».

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