sábado, 2 de agosto de 2025

O PARADIGMA "EDUCATIVO" A QUE CHEGÁMOS.

A palavra paradigma entrou nos discursos políticos, confere-lhes sofisticação ou, pelo menos, quem a usa julgará que sim. Tendo sido central num debate epistemológico ocorrido no passado século, adquiriu um sentido que está longe de corresponder àquele lhe é dado por parte de quem se quer referir a uma mudança que, não raramente, é declarada como profunda para que tudo fique na mesma. Assim, salvo raras excepções, a cada reforma do sistema educativo, anuncia-se, como convém, uma mudança de paradigma, que deixa o essencial como estava. Não me refiro à retórica que a anuncia, essa há muito que estabilizou naquilo que Sacuntala de Miranda designou por "ocedeísmo" (ver aqui); refiro-me à sua efectiva concretização.

Neste século vejo duas mudanças efectivas - de matriz ocedeísta - que talvez se possam designar, ainda que de modo não muito preciso, por mudanças de paradigma.

A primeira, que aconteceu num dos governos PS e pareceu, à altura, mais ou menos inocente, foi o corte com a organização curricular por conteúdos disciplinares, passando a ser por "competências": as "metas de aprendizagem" que lhe davam forma, seriam usadas a par dos programas; seguiram-se, num governo era PSD, as "metas curriculares" ainda com manutenção dos programas; de volta ao governo PS criaram-se as "aprendizagem essenciais" e revogaram-se os programas. Este, que é PSD, mantém essa opção.

A segunda mudança, em curso (ver aqui), é conduzida pela "visão" de alcançar, "valor social e económico". A escola e os seus profissionais, terão de se concentrar, acima de tudo, nisso. As aproximações neoliberais e hiperliberais têm sido regra em reformas curriculares levadas a cabo por governos mais à esquerda e mais à direita, contudo este mostra-o sem subterfúgios. De modo compatível, dá primazia à "educação" financeira e para o empreendedorismo.

O actual governo, como consta no slide acima reproduzido, sabe bem onde quer chegar: levar os alunos da escola pública a adquirirem competências úteis, funcionais no mercado de trabalho. O "paradigma tradicional" de ensino, que coloca a tónica no conhecimento escolar e no aperfeiçoamento humano, está, pois, superado. Resta saber onde chegaremos com a mudança de paradigma em que laboramos há décadas e que agora vemos consolidado.

Só falta, como diz uma articulista do Público, Ana Ferreira, que, "em nome da superação de «anacronismos» e da «eliminação de redundâncias», criar o megaministério da Economia, Educação e Inovação, onde a Educação passe a mediar Economia e Inovação” (ver aqui).

A RESISTÊNCIA DAS HUMANIDADES

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião

Carmen Soares e Douglas Cairns, respectivamente, professores de Estudos Clássicos nas Universidades de Coimbra e de Edimburgo, publicaram, no dia 29 julho, um artigo de opinião sobre "A vitalidade das Humanidades". Este é o título que lhe deram. Os "preconceitos enraizados" acerca das Humanidades, de que falam, com toda a razão, têm sido bem laborados pelos paladinos da eficácia e da eficiência ao ponto de dominarem o espaço público. Mas, como dizem, as Humanidades resistem, estão vivas e assim hão-de continuar.

(...) Muito raras são as vozes com espaço na comunicação social a conseguir passar para o grande público exemplos do melhor que se ensina e investiga em Portugal nesta área [das Humanidades]. E se isto é assim nas Humanidades em geral, o que dizer sobre as disciplinas que as integram que mais arriscam a soar a “antigo” e “fora de moda”, como os Estudos Clássicos?

De facto, o estatuto periférico a que são votadas as Humanidades acentua-se ainda mais quando elas estudam as línguas, literaturas, culturas, a filosofia ou a história da Grécia e Roma antigas. Há preconceitos enraizados que associam os Estudos Clássicos a ideias de “antiquarismo”, elitismo e estagnação, sempre com a ameaça de extinção a pairar – o que talvez ajude a explicar alguma da ausência de interesse por estas áreas no espaço público (...)

Vale a pena continuar a ler o artigo: aqui.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

"De um lado os rectos, do outro os crápulas"

Não tinha pensado voltar, nestes próximos tempos, à "educação para a cidadania" e muito menos à "educação sexual", a que ela parece estar reduzida na comunicação social

(e enquanto estamos distraídos ou não queremos saber, a "educação financeira" e a "educação para o empreendedorismo" ganham terreno), 

mas não posso deixar de dar atenção a uma sugestão de leitura deixada, em comentário, por Rui Ferreira, a quem agradeço: um artigo de Ana Cristina Leonardo com o título O novo padrão ocidental, saído hoje no Público que recorda coisas muito óbvias e põe a tónica num triste "sublinhado moralista", que se acentua nesta e noutras questões: "de um lado os rectos, do outro os crápulas".

Dou destaque a algumas das suas passagens.

Preliminarmente, julgo adivinhar uma certa candura naqueles que estão convencidos de que os jovens aprendem sobre sexo na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Depois, há que perguntar com frontalidade: se a educação sexual em Cidadania é tão indispensável e tem efeitos tão positivos, por que razão os resultados do inquérito conjunto da UMAR e da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género indicam um aumento no número de jovens que legitimam os comportamentos violentos no namoro? Ou ainda: como se explica o acréscimo de doenças sexualmente transmissíveis entre os jovens (Expresso, 6/3/2025: “Casos entre os 15 e os 24 anos aumentaram mais de dez vezes na última década”)?

Não vale dizer-se que sem educação sexual na disciplina de Cidadania a situação seria pior. O argumento perde a lógica quando, apesar da educação sexual em Cidadania, a situação tem vindo a piorar. Baralhando as premissas, seria o mesmo que concluir que a situação não tem vindo a melhorar por obra e graça da disciplina de Cidadania. Nenhuma das formulações faz sentido. O que talvez possa fazer sentido é concluir-se que a educação sexual em Cidadania não aquece muito nem arrefece pouco. Outras soluções se impõem, sem esquecer que a escola é apenas uma das múltiplas realidades dos jovens. Numa sociedade violenta e onde o acesso à violência fica à distância de um clique, será ilusório imaginar-se poder a escola substituir-se à educação… da cidadania, precisamente (...).

As posições não têm de ser alicerçadas. Na verdade, elas servem apenas para sinalizar o lugar que se ocupa ou, melhor, o lugar que o outro ocupa. É a favor da educação sexual em Cidadania e Desenvolvimento? Se sim, é um progressista dos sete costados; se não, é um reaccionário dos pés à cabeça.

Mais coisa menos coisa, eis-nos encurralados entre aulas à Monty Python — caricaturadas com genialidade e profetismo em 1983 em O Sentido da Vida, filme onde, levando a pedagogia às últimas consequências, um professor dá uma aula de sexo ao vivo, enquanto alunos entediados lançam aviõezinhos de papel uns aos outros — e as teorias educacionais dos pais de Famalicão.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

"Era tudo gente bem-educada e culta mas, pelos vistos, mal-educada sexualmente"

Em 2011, Joel Costa, autor do programa de rádio Questões de Moral, dedicou um episódio à legislação sobre a educação sexual em meio escolar, por certo, à lei de 2009 e à portaria de 2010 que a regulamenta. Podia ter sido escrito e dito hoje, os pontos da discórdia mantêm-se e os paradoxos repetem-se. Pela actualidade e pelo humor, que ajuda a viver com certo nonsense, tomo a liberdade de o reproduzir, na transcrição que dele fiz na altura (aqui), mudei apenas o título e alguns sublinhados.

"O sexo, enfim, deixou de ser aquilo que todos nós, até ao início do presente ano lectivo pensávamos que fosse um facto privado, uma questão pessoal. Não, passaria, passará… não sei… a ser um problema de saúde pública. Um problema de saúde pública tratado nas escolas normais, em aulas de educação sexual presumivelmente dadas por especialistas na matéria. Eis, portanto, o bom Portugal, sempre na vanguarda do progresso, inclusive na educação como, de resto, todos sabemos. Estamos tão avançados nos nossos níveis educacionais que, a juntar às cargas horárias dos alunos, tinha de vir outra disciplina essencial para o crescimento do estado, para a dívida, para a competitividade externa e interna.

Com a educação sexual a estes níveis, governamentalizada, ah! agora sim, as exportações vão crescer, e sem dúvida que o futuro do sexo português está garantido, será até produto de exportação, agora, por falar disso, de exportação para os mercados nórdicos, sei lá… esses coitados que não percebem nada disso, o que dá a medida da larga visão estratégica do governo.

Muitos pais recusavam a assistência dos filhos às aulas de educação sexual e, a meu ver, bem, não percebem o que terá o estado a ver com a sexualidade dos filhos. Mas se os pais não quisessem os filhos nas aulas de Educação sexual teriam de bem fundamentar a recusa, e o problema seria saber que fundamentações seriam consideradas pelos burocratas: “Não quero, porque não”, seria razão atendível pelas autoridades sexuais?

Como digo, houve pais que recusaram para os filhos o ensino sexual dado pelo estado nas escolas. Houve até uma plataforma de resistência nacional para isso, foi obra. E o problema para justificar as faltas a educação sexual é que a matéria poderia vir a ser dada não numa disciplina específica, mas de modo transversal, incluída em várias disciplinas.

Não sei como estão as coisas, claro, não sou um entendido, nem um expert nem nada, nem sequer um interessado, não sei como está a ser feito, mas estou a imaginar uma professora de Matemática, uma daquelas antipáticas, como eram no meu tempo, a ensinar sexo aos alunos, ou mesmo uma simpática professora de português a incluir no léxico expressões relacionadas com o sexo (…) e até se pode recorrer ao latim.

E professores houve que se propuseram ensinar sexo, ou sexualidades, aos próprios pais, o zelo legislativo de gabinete e a ânsia governamental de normalização burocrática e de correcção política pode ter destas… sei lá… aberrações e chegar a extremos ridículos.

As dúvidas dos pais quanto à propriedade destas aulas eram perfilhadas por alguns professores. O assunto apresentava logo à partida em dificuldades e espinhosas ambiguidades, a abordagem para começar. Mas alguém resolvera tranquilamente a questão… não, não, não, não se vai ensinar sexo não se falará do acto sexual, vai-se educar sexualmente, que é uma coisa muito diferente e que deve dispensar muito bem qualquer referência ao acto sexual.

A educação sexual seria não dirigida para o sexo em si, mas para os afectos. Podiam ter-lhe dado outro nome, mas fiquei a saber que, por directiva ministerial, os afectos do meu filho não serão livres e espontâneos terão de ser educados pelo Estado, orientados pelo Estado, a espontaneidade afectiva com quem os alunos sentirem afinidades, não será, pelos vistos, recomendável, nem politicamente correcta sem exame prévio, pode até ser obrigatório um certificado oficial.

Os professores, alguns, admitiam aulas sobre o aparelho reprodutor, que não é sexo, evidentemente, é biologia, é medicina, é enfermagem, ciências da natureza (…). Sexo julgava eu que era outra coisa, julgo…, mas também, como nunca tive aulas, saber a matéria, e nunca ninguém me ensinou sexualidade, admito que não percebo muito do assunto.

Um "profe" perguntava como iriam os profes ocupar as muitas horas (…), com trabalhos práticos? E eu pergunto o que são trabalhos práticos em sexo. O "profe" em questão também aventava a possibilidade dos trabalhos de grupo, seria sexo em grupo? Lá sofisticado era, se fosse… e avançado. O "profe" citado, certamente por escorreito exercício de humor, perguntava se nas muitas horas de aulas… cabiam os trabalhos manuais. Bem, quanto a trabalhos manuais em educação sexual, naquelas idades, digo eu, que não tenho dúvidas nenhumas, que os alunos se mostrarão estudiosos e diligentes. E como somos um país tecnologicamente em dia, avança ainda aquele profe com a possibilidade de utilização de meios audiovisuais que explicassem visualmente como se praticavam os diferentes tipos de sexo, que ele discrimina, incluindo sexo sado-masoquista (…). Uma grande pouca vergonha, digo eu… maliciosamente.

Outro "profe" infere da obrigatoriedade da educação sexual a matriz ideológica que se contém na sexualidade. Por mim, não percebo lá muito bem porque é que um "profe" fascista não há-de perceber mais de sexo do que um comunista ou vice-versa, ou porque não um professor liberal mais sexualmente expressivo e didáctico do que um professor socialista, ou vice-versa, claro está.

Ou essa ideologia a que o profe se referia seria ideologia sexual? O que será ideologia sexual? Sei lá, não sei. Mas palpito que, como na política, seja uns inclinarem-se mais para a esquerda, outros inclinarem-se mais para a direita, uns a inclinarem-se mais umas práticas e outros mais para outras (…).

Também não sabia, mas lendo umas coisas na internet fiquei a saber que somos o país com maior taxa de infectados (…) por doenças sexualmente transmissíveis e que continuamos a ter uma taxa altíssima de mães adolescentes e daqui pode decorrer forçadamente, admito, que os nossos jovens não percebem nada de sexo, que os adolescentes não fazem ideia do que seja educação sexual.

Bem, pelo que precisamente se invoca, eles percebem até muito, e se não sabem a teoria, sabem a prática e os resultados estão à vista, tristemente, mas estão: as infecções, as mães adolescentes. Isto significa que as adolescentes mães e os adolescentes pais não sabem o que estão a fazer? (…). Sexo mal gerido, sexo mal dirigido, dir-me-ão. Então, quando um jovem e uma jovem estão juntos, livres, cheios de amor, exaustos de carícias e beijos e com uma cama por perto, na melhor das hipóteses, para onde haverão eles de dirigir os respectivos ímpetos (…) como saberão gerir melhor a tensão que têm no corpo e, atenção, no espírito?

Leio e aprendo coisas assombrosas sobre este tema da educação sexual, a auto-estima que nestas idades é fundamental para os alunos se iniciarem no sexo. E eu sem querer “bancar” o subversivo, peço imensa desculpa de me rir destas coisas e poder ofender quem leva isto a sério, e não como iniciativa de governo para ficar bem na fotografia da modernidade, para efeitos, obviamente, eleitorais
 
Auto-estima, é claro que ela é precisa seja para o que for e não vejo que seja especialmente necessária para se iniciar no sexo. Mas o que é trazido a terreiro por este professor que leio, é que a auto-estima permite um sexo por opção própria e não influenciado por parceiros (…). Mas desde quando é que o impulso sexual não foi induzido também pelo parceiro? E desde quando, ainda que induzido pelo parceiro, o ser-se desejado para fazer sexo com o parceiro indutor não é um elemento a favorecer a auto-estima, desde quando, por essa causa, o sexo não foi uma opção própria?

Mas o governo não poupou alunos, professores e pais às suas burocráticas directivas orientadoras, até em matéria sexual. E aqui está um caso em que sou um empedernido liberal, porque aprovo o estado social e desaprovo de todo o estado sexual, ou o sexo estatalmente instituído.

Só me perguntei na altura como se iriam ver os jovens de hoje na realidade adulta do sexo de amanhã depois de terem beneficiado das orientações do governo na matéria. Teremos no futuro também uma burocratização da vida sexual?

Os pais temiam os catecismos, os moralismos, logo a hipocrisia, os tabus, as abstinências, os recalcamentos, e pronto, as consequentes taras. Sexo, pergunta-se, educação sexual, ou auto-didactismo tradicional? Os serviços do Ministério da Educação tinham certezas absolutas: era preciso esclarecer tudo sobre a educação sexual, a vida sexual e coisas assim. Os serviços do Ministério andavam apreensivos com os fantasmas, queriam uma juventude a viver a sua sexualidade e os seus afectos de modo lúcido, explicável, saudável, incluindo aqueles afectos que se inclinam para pessoas do mesmo sexo. Ora, sobre isto alguns profes, ainda que favoráveis à educação sexual, achavam que as políticas governamentais haviam sido, nesta matéria, influenciadas por lobbiesnão me custa nada a crer.

Educação sexual, pensando no caso: fazer sexo deve ser o cúmulo da má educação, é má educação até aludir a ele em sociedade: sexo não pode ser feito em público, pois não, à vista de toda a gente, pois não; é uma prática que não admite transparências, onde tudo pode ser proibido ou permitido, é coisa que se faz às escondidas de todos, em privado (…) ou então pode ser feito onde calhar, arriscando-se sanções, maus olhados, má fama… Neste mundo do politicamente correcto, do socialmente correcto, o sexo deve ser a maior das incorrecções, sim, porque como digo, só se faz às escondidas. E, então, como ensinar a correcção e a educação do sexo se a própria prática dele é uma incorrecção, uma pequena violência confortável, o sexo é uma indecência, ou pelo menos assim a sociedade o julgou. O sexo é interdito nos cinemas, quer na plateia, quer nos intervalos, quer no ecrã, e, quando é permito no ecrã, os filmes (identificados, são para adultos) e taxados pelo estado. Educando o sexo, vai educar o que ele mesmo proíbe, ou que simplesmente condena como imoral (…).

Mas, pelos vistos os governos entendem que há uma correcção para o cúmulo da incorrecção que é o sexo; que há uma educação para o cúmulo da má educação que é o sexo, ao ponto de o quererem ensinar e educar nas escolas. Não, não será o sexo que se pretende ensinar e educar nas escolas: é educação sexual, educação… mas para quê, se eu não posso mostrar à sociedade os refinamentos da minha educação sexual? (…) Sempre ouvi dizer, embora como eufemismo, que praticar o sexo é fazer amor, mas então como se pode administrar boa educação sexual se não se explicar muito bem, por miúdos, aos alunos, em que consiste realmente o amor e os respectivos nobres sentimentos?

Mas ninguém soube explicar como deve ser o amor, não sei se o governo ou o ministério têm algumas directivas sobre o assunto, sobre o sentimento amoroso. Só me admira que não tenham, que não legislem sobre o amor. É grave lacuna na fachada do furor legislativo nacional, porque haveria alguma correcção a ensinar respeitante ao amor, ao amar correctamente, educadamente… caso de saúde pública, quanto mais não seja porque muitas tragédias pessoais já aconteceram por causa do amor.

Sexo: causa ou consequência (…) do amor? Mas se ao dar educação sexual ao povo adolescente, o ministério não ensinar o que é verdadeiramente o amor, do qual o sexo, de uma maneira geral, correcta, educada, deve ser a consequência, se o ministério não ensinar o que é amor e como se vive educadamente um grande amor irão ensinar bem a consequência disso ou seja, fazer bom sexo? Então vai ensinar o quê?

O ministério através dos seus doutos professores, seguramente especializados em matéria sexual, vai ensinar os jovens a pôr um preservativo, bom, senhores, isso não é educação sexual isso serão primeiros socorros, quando o jovem tiver de se desembaraçar numa emergência (…). Ensinar a jovem a tomar a pílula, educação sexual, não me parece, será farmacologia, educação cívica, higiene, ou outra coisa parecida.

Mas depois, em vez de amor e de magníficos sentimentos a serem complementados com o sexo, vem a burocracia ministerial e lê-se no normativo sobre a (…) educação sexual, a impor umas quantas coisas (…): “o aumento e a consolidação de conhecimentos sobre”, por exemplo, “as dimensões anatomo-fisiologicas”… não esperava indecências destas numa norma governamental (…). “É preciso aumentar e consolidar conhecimentos acerca de regras de higiene corporal”, tem a ver com sexo e tem a ver com a condução de camiões TIR, sei lá… tem ver com tudo. “Da diversidade dos comportamentos sexuais ao longo da vida” (…), pois é: é o “ao longo da vida” que dá cabo de nós, aí é que está, e nos ensina melhor… acerca dos mecanismos de reprodução.

Acerca do planeamento familiar, dos métodos contraceptivos, das infecções, sua prevenção e tratamento. Acho que hoje já ninguém ignora com quem é arriscado fazer sexo, e não será caso para dar uma aula… bom… aumentar e consolidar conhecimentos, também acerca das ideias e dos valores com que as diferentes sociedades encaram a sexualidade (…). “Aumentar e consolidar conhecimentos sobre os vários tipos de abuso sexual e das estratégias do agressor” uff!... Abuso e estratégias do agressor, enfim… educação sexual num país e numa sociedade em que nos últimos anos, como o caso Casa Pia acabava de tomar conhecimento de uma infinidade sórdida de pormenores acerca de pedofilia e de agressões e em que os alegados acusados e já condenados era tudo gente bem-educada e culta ou, pelos vistos, mal-educada sexualmente (…). Valha-me Deus!

As normas ministeriais impõem ainda o desenvolvimento de competência para uma data de coisas, eu sei lá: “expressar sentimentos e opiniões” (…). É verdade, há muita gente incompetente a expressar sentimentos e opiniões e também há os demasiado competentes quando expressam, e bem, sentimentos falsos, para tomar decisões e aceitar decisões dos outros, ora uma lição de democracia, em suma, não de sexualidade, mas, está bem, passo… Não me apetece ler mais normas governativas, parecem-me mais burocracias jurídico-institucional do que regra para lidar com assuntos humanos complexos.

Porque depois será preciso competência para reconhecer situações de abuso sexual. Ensinar a reconhecer rapazes e raparigas (…) o que é um abuso sexual!? Estas normas puseram-me a alma num inferno, ao fazerem dos alunos perfeitos atrasados mentais a quem têm de ser ensinadas matérias com que eles contactam todos os dias, ou pessoalmente ou por meio dos média.

Houve professores a pensar que no campo da educação sexual deve ser deixado espaço aos pais, os pais deveriam falar com os filhos… sim… em princípio acharia mais natural que assim fosse, mas depois somos esmagados pelo argumento da indisponibilidade de tempo dos pais e pelo eventual talento dos pais no ensino de matéria tão delicada e tão mal-educada, mas mesmo que os pais tivessem tempo e talento coloquemo-nos, por um momento, no lugar deles (…). A preparação sexual dos pais seria aquela de toda a gente: a que a vida lhes dera (…). “Mas eu sei lá o que hei-de dizer ao rapaz? E, tu sabes o que vais dizer à miúda? Vês? A mim nem pai, nem mãe, nem avô, nem avó, nem tio, nem tia me explicou coisas que eram consideradas poucas-vergonhas e que não eram para falar diante dos gaiatos, não é?”. “Mas, os tempos são outros, diria a mãe”. “Pois, mas é com essa que me entalas (…) se tudo isso estivesse informatizado…”

ASSIM TRIUNFAM AS "EDUCAÇÕES" FINANCEIRA E PARA O EMPREENDEDORISMO

As coisas estão assim estabelecidas no pensar social e, mesmo, no pensar académico e escolar, que deviam ser mais lúcidos: quem alinha à direita partidária é, ferrenhamente, contra a educação para a cidadania; quem alinha à esquerda partidária é, ferrenhamente, a favor da educação para a cidadania

Por "educação para a cidadania" deverá entender-se "educação sexual", isto a avaliar pelas centenas de artigos nos jornais e comentários nas televisões, que nas últimas semanas têm feito uma ligação directa entre ambas. Tudo vai dar à "educação sexual"! Uma obsessão! A psicanálise clássica talvez consiga explicar o que a pedagogia não é capaz.
 
Se a educação para a cidadania/educação sexual for suprimida, dizem os primeiros, a escola voltará a ser o que deve ser, um lugar de instrução, ponto! Além disso, as famílias reencontrarão a paz e o sossego que os progressistas ateus teimam em lhes retirar.
Se a educação para a cidadania/educação sexual for suprimida, dizem os segundos será um retrocesso no tempo e nas mentalidades até não sei onde... muitos males cairão sobre as pobres crianças, será um cataclismo para a sociedade. E tudo provocado pelos conservadores religiosos.
 
Neste puxar para cá e para lá, as vozes sobem de tom e os argumentos degradam-se, de modo muito pouco compatível, note-se, com a empatia, o respeito, a tolerância, a coesão social, o respeito mútuo, a capacidades de diálogo... e mais uma infinidade de soft skills que constam na "cartilha" política para a cidadania e que tanto os de esquerda como os de direita estão prontos a admitir que são de gente educada.

Mas não é só nisso em que estão alinhados, as educações financeira e para o empreendedorismo também os une. Estas são vistas como neutras e necessárias! Nada têm a ver com "ideologia de género", nem com religião e, evidentemente, ajudam os miúdos a orientar-se na vida, a alcançar bem-estar, sucesso, que é o que importa. Imagino o contentamento da gente da banca e dos seguros, das empresas e das fundações com o caminho agora ainda mais livre do que antes para deitar a mão às "almas" que, a partir dos três anos de idade, entram no sistema de ensino. 
 
Entretida que está a esquerda com a educação sexual, passa-lhe ao lado o protagonismo que estes "agentes educativos", alcançaram; o poder efectivo que têm para impor o seu modelo (único) de funcionamento do mundo, de vender os seus produtos. Também neste caso, a união faz a força: juntos conseguiram chegar ao primeiro plano na "educação para a cidadania" na escola pública. Que a direita não veja ou não se queira pronunciar sobre estas "educações", até entendo, pode ser uma questão de estratégia; mas a esquerda teria essa obrigação, que é uma obrigação moral, de defender essa escola de ideologias, seja elas quais forem. Porque não o faz? É um enigma!
 
Sim, eu sei: não se pode generalizar... nem toda a esquerda está alinhada pela mesma bitola e talvez até seja melhor retirar as tendências políticas da conversa. A verdade é que no espaço mediático tem havido pessoas - poucas, é certo - que mostram que formar para a cidadania é mais complicado do que estabelecer uma regra do tipo "se... então", ou "se for a favor disto, é contra aquilo". O assunto não se pode encarar com superficialidade, nem reduzir a banalidades ou dicotomias e muito menos traduzir-se na imposição de pseudo-valores pela força, seja ela qual for. O texto da historiadora Raquel Varela, publicado há alguns dias, explica bem o que pretendo dizer:
 
"A disciplina de Cidadania é um erro. Faz parte da descolarização. Como é um absurdo não ensinar e ou falar sobre sexo. Ou reduzir o sexo a como evitar doenças, como quer a direita. Sexualidade não se ensina em Cidadania, que sequer devia existir. A escola não deve dar missas, mesmo que missas progressistas – num dia ensina-se no governo de esquerda sexualidade, no outro, no de direita, empreendedorismo (...).

Sexualidade, desejo, amor ensina-se em primeiro lugar numa escola onde haja um ambiente bom, de cooperação, diversão e alegria entre os jovens no recreio, coisa que não existe (estão a olhar os telemóveis), também se ensina sexualidade na literatura, na biologia, na história.

Se a escola for um lugar onde se ensina com muita qualidade as disciplinas científicas (e a escola só deve ter estas), com professores e ambiente científico bom e, ao mesmo tempo, existirem disciplinas de artes, teatro, trabalhos de grupo, visitas de estudo, recreios lindos, cheios de árvores e tempo e respeito, será certamente um espaço de encontros e de aprendizagem de relações sãs.

Em vez disso, a escola é em geral um lugar feio, cinzento, parece uma prisão, onde não há democracia nos docentes, onde já não se fazem jornais nem rádios entre alunos, onde cada aluno está isolado a consumir doses massivas (dentro da sala de aula!) de tecnologia e power points, fazendo dos professores vendedores de softwares e plataformas, e cá fora estão os alunos a ver pornografia (em geral de violência extrema), tudo sozinhos. E depois, o Ministério quer colocar os professores a dar uma missa, “meninos, respeitem-se, na selva que criámos, uns aos outros”, quando o formato da escola e das avaliações é a competição máxima. Missa que varia consoante o Governo, agora é o empreendedorismo, uma fantochada, um tarot, que nem economia é.

Ensinemos a interpretar a Madame Bovary, a conhecer a biologia, a conhecer e debater a psicologia, a saber história da família e do modo de vida, e criemos um ambiente de cooperação e amizade na escola e acabemos com estas disciplinas que fazem dos docentes padres laicos. Um professor de história ensina história das relações, não dá missas.

Entre a geringonça de direita e extrema direita (...) puritana, agarrada a uma Igreja que tem o sexo e o desejo como tabus; e uma esquerda pós moderna que aceita fazer da escola tudo menos um lugar de ensino há uma outra esquerda, que tem que defender que a escola é o espaço para “ensinar aquele aluno o melhor conhecimento da humanidade” nas ciências, humanidades, literaturas e artes. Isso é que é criar cidadãos, que conhecem e podem pensar por si próprios, porque CONHECEM! (desculpem não sou de maiúsculas mas estou farta de ouvir dizer barbaridades de quem nada sabe de educação, a começar pelos Ministérios e a acabar nos deputados...)".

sábado, 26 de julho de 2025

INDIGNAÇÃO E REACÇÃO — ASSIM VAI A EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA

Anteontem foi publicada na página oficial do Governo uma Nota explicativa: Educação Sexual na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e no currículo do Ensino Básico e Secundário

Que sentido tem esta nota do Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI)? 

Nenhum, absolutamente nenhum! A não ser reagir à indignação de muitos que têm vindo a terreiro contestar a perda de protagonismo, no currículo escolar, da dita "educação sexual". O que nela se diz de novo devia ter sido dito antes.

Que sentido faz a indignação que precipitou a nota explicativa?

Nenhum, absolutamente nenhum! A não ser reagir à medida do MECI no respeitante à dita "educação sexual". Não, não vou defender o MECI, contudo não posso deixar de notar a ausência da mesma indignação quando se trata de outras medidas da tutela, nomeadamente:

1) supressão de áreas e conteúdos disciplinares fundamentais, redução de tempo lectivo dedicado a disciplinas estruturantes, confundir aprendizagem com manifestação de competências (que cada vez mais se aproximam de habilidades), avaliação dessas competências ou habilidades (os tais domínios?) destituída de adequação pedagógica e razoabilidade.

2) prioridade dada à educação financeira e para o empreendedorismo, no quadro daquilo que impropriamente se designa por "educação para a cidadania", o que, de resto, já havia acontecido nas mudanças curriculares iniciadas em finais de 2011, mas não com esta pujança e estratégia. O doutrinamento está nestas duas "educações para..." como está na educação sexual, só que mais refinado.

3) desaparecimento de outras "educações para...". Recordo que de dezassete (ou dezoito ou mais) restaram oito. E com isto não estou a defender a sua manutenção.

Fica, então, a pergunta: porquê a suprema indignação com o desaparecimento, subalternização, redução (não entendi bem) da educação sexual (seja isso o que for)?

Esta "educação para..." parece ter o dom de polarizar todas as atenções, à esquerda e à direita, das religiões e de fora delas, de conservadores e progressistas, sem contar com a gente da saúde familiar e reprodutiva, da psiquiatria e da psicologia, das muitas terapias e intervenções, das não menos associações, organizações e outras agremiações, algumas de boa-vontade, reconheço... Sim, porque tal "educação para..." está (e não devia) alocada a tudo isto (como outras "educações para..." estão alocadas a outras coisas). Diz-me o meu colega e amigo Andrés Palma Valenzuela que em Espanha é o mesmo, talvez um pouco pior (ver, por exemplo, aqui), porém com o mal dos outros não nos damos propriamente bem.

Mas, o que diz a nota do MECI?

Começa por afirmar ser falso que a sexualidade tenha sido eliminada da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (CeD), afirma que está inserida nas Aprendizagens Essenciais (AE), nomeadamente na Dimensão “Saúde”. Educação sexual é saúde? Bem, deve ser... Tudo tem a ver com a saúde, não é? Fica a dúvida: tem "apenas" ou "principalmente" a ver com a saúde?

Para tentar perceber, detenho-me no exemplo dado. Li a primeira AE para os 2.º e 3.º ciclos: "Relacionar-se consigo e com as outras pessoas com empatia e respeito, numa perspetiva de bem-estar". Educação sexual é relacionar-se consigo e com as outras pessoas com empatia e respeito, numa perspetiva de bem-estar? O que é que esta formulação rebuscada tem a ver com sexualidade? E com a saúde? Também deve ter...

Os exemplos para os 1.º 2.º e 3.º ciclos não esclarecem a minha dúvida, eventualmente, para este último ciclo, a referência a abusos sexuais, a violência de género e contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas... Mas isto é educação sexual?

Passei à frente e fui até ao ponto 4 que é da mesma natureza, apresenta uma explicação a que se seguem AE. Na explicação é dito que nas AE está inserida a "rejeição da discriminação e a promoção da inclusão de todas as pessoas (...), nomeadamente na dimensão 'Direitos Humanos' (...) obrigatória em todos os anos de escolaridade, precisamente por se tratar de um tema fundamental no quadro de uma sociedade democrática". Sim... mas pergunto mais uma vez o que é que esta formulação, que se entende no quadro dos Direitos humanos, tem a ver, de modo mais ou menos directo, com sexualidade?

No ponto 2 diz-se que CeD tem natureza interdisciplinar, devendo ser tratada no quadro das outras disciplinas. Tirando o chavão "interdisciplinar", é o que defendo. Talvez os alunos percebam melhor o valor da liberdade se na História, na Literatura, nas Artes e até nas Ciências ele for "naturalmente" destacado. 

Já tenho dúvidas acerca das acrobacias curriculares previstas e que se referem nesse ponto: "a revisão (...) em curso, fará ligações nas Aprendizagens Essenciais das várias disciplinas às Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento". O Ministério faz isto porquê? Porque supõe que os professores não são capazes de fazer tais ligações?!

No ponto 3 surge a sacrossanta avaliação: a CeD nada seria sem estar ligada a um programa internacional que pudesse comparar os níveis de cidadania alcançados numa infinidade de sistemas de ensino, de escolas... No caso, não é o PISA da OCDE; é o International Civic and Citizenship Education Study (ICCS), da IEA (International Association for the Evaluation of Educational Achievement). 

E é aqui que ficamos a saber algo de grande importância, que as AE de CeD foram elaboradas em função do molde da IEA. Diz o MECI na sua nota: "respeitando o histórico da disciplina, razão pela qual os 17 domínios que vigoraram até agora na disciplina foram incorporados nas novas 8 Dimensões da disciplina revista". Agora entendi, mas podia ter entendido antes se esta informação constasse, como devia, nos novos documentos de CeD e logo à cabeça. A redacção de um documento curricular exige, entendo eu, a referência às fontes.

Neste ponto esclarece-se também que a "lista de 13 objetivos da Educação para a Cidadania cobertos pelo ICCS 2022 (última edição) não contempla a Sexualidade", e que isso foi validado por "peritos internacionais e representantes dos centros nacionais dos países participantes". Aqui temos um argumento de autoridade a que se segue um argumento de actualidade, ambos irrelevantes para fazer escolhas curriculares: "a lista incorpora temas contemporâneos como a cidadania global, a sustentabilidade, a participação política e o combate ao racismo, refletindo uma atualização face aos desafios atuais das sociedades".

No ponto 5 vejo esclarecida uma dúvida que levantei em texto anterior: a Lei n.º 60/2009, de 6 de agosto e a Portaria 196-A/2010 relativas à educação sexual não estão esquecidas. É neste ponto que se dão exemplos do óbvio: a sobreposição de conteúdos patentes nestes normativos e os que fazem parte de programas de disciplinas como Estudo do Meio, Ciências Naturais, e Biologia. É nestas disciplinas que conhecimentos de fisiologia e biologia relacionados com a sexualidade têm pertinência e podem ser ensinados com propriedade pelos professores preparados para tal. Contudo, o que quer que seja a educação sexual não pode ser circunscrita à fisiologia e à biologia...

Nos pontos 6, 7 e 8 o MECI recorda que a escola tem autonomia para fazer e/ou escolher os seus próprios projectos. E dá exemplos daqueles que o Ministério acolhe. Também informa que está a trabalhar afincadamente no Programa Nacional de Saúde Escolar... No conjunto, o texto resvala para uma concepção de educação sexual ligada à saúde (mais uma vez a saúde, a "saúde escolar", a saúde sexual e reprodutiva"...).

O que devemos pensar tanto da indignação como da reacção num campo onde tudo se confunde, e a cada mexida mais confuso fica? Na verdade, não sei, o que sei é que em Setembro os miúdos voltam à escola e hão-de continuar a ser piões nesta embrulhada criada e mantida por adultos cuja obrigação é educá-los.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

500 CARACTERES PARA COMENTAR O QUÊ?!

Estava, de facto, inoperacional o acesso aos formulários constantes no sítio da Direção-Geral da Educação para recolha de contribuições relativas aos novos documentos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento no processo de consulta pública que abriu há poucos dias.

Tal como pensei (ver aqui), o espaço disponibilizado pela tutela é incompatível com a infindável tarefa que será comentar devidamente tais documentos. Se alguém a levar a sério e quiser explicar o que diz com base em conhecimento não é capaz. Eu não sou. E não é pelo número de páginas, é pelo seu conteúdo, que não faz qualquer sentido. Isto se se adoptar, como se deve, uma perspectiva realmente educativa, ou seja, não doutrinal nem pedagógica "de trazer por casa" (expressão usada por Gusdorf para se referir a um certo tipo de pseudo-pedagogia como a que está em causa). 

Comentar aqueles dois documentos em 500 caracteres é uma tarefa mesmo impossível. O título do artigo da jornalista Ana Margarida Alves está certo. Só não percebo que apenas os pais/encarregados de educação se queixem...

terça-feira, 22 de julho de 2025

DE VOLTA AO DESCONCERTO QUE É A "EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA"

O Ministério da Educação, tem em consulta pública, até ao dia 1 de Agosto, os novos documentos curriculares destinados à Educação para a Cidadania na escolaridade obrigatória, a saber:
 
 
Integrados os contributos dessa consulta, passam a ser os documentos oficiais para essa área curricular e, portanto, de cumprimento obrigatório. Além deles há os referenciais de várias "educações para...", que serão orientações, talvez... Gostaria de cruzar o que consta nestas "Aprendizagens essenciais" e nesses referenciais, produzidos em tempos diferentes, por stakeholders diferentes, mas isso seria um trabalho demorado, impossível de realizar neste momento pelo que o meu objectivo é bem mais modesto: reproduzir o que está no site da Direção-Geral da Educação (DGE), a que acrescento breves comentários.
 
Lê-se no texto-síntese aí apresentado:
 
O documento Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC) adota uma abordagem integrada e articulada, centrando-se na interdependência entre “Direitos Humanos”, “Democracia e Instituições Políticas”, “Desenvolvimento Sustentável”, e “Literacia Financeira e Empreendedorismo”, enquanto dimensões fulcrais para uma cidadania ativa e participativa num Estado de Direito e em sociedades justas e sustentáveis. 
 
Comentários, ou seja, perguntas, ou seja, perplexidades: O que será "uma abordagem integrada e articulada"? Não sei. Continuo a leitura... interdependência entre “Direitos Humanos” e “Literacia Financeira e Empreendedorismo”?! Entenda-se: esta área, agora do tipo "dois em um", tal como está, nega direitos humanos básicos. Sobre isto tenho escrito neste blogue.

A educação sexual desapareceu. Não dei conta, porém, de a Lei n.º 60/2009, de 6 de Agosto (regulamentada pela Portaria n.º 196-A/2010 de 9 de Abril de 2010) que tornou obrigatória esta "educação para..." ter sido revogada. Para uma lei deixar de ter efeito, não tem de ser revogada?

Critiquei essa "educação" e essa lei, nomeadamente pelo seu carácter doutrinal, mas, atenção, a educação financeira e para o empreendedorismo tem exactamente o mesmo carácter... O objecto de doutrinamento é diferente, mas o espírito doutrinal é o mesmo. O que pensar? Que há uma doutrina má (como a sexual) e uma doutrina boa (como a financeira e empreendedora)? Doutrina é doutrina. E a escola pública não pode ser doutrinal. Se quisermos invocar a lei, está na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo.

A ENEC integra, ainda, temáticas prioritárias, tais como a “Saúde”, o “Risco e Segurança Rodoviária”, os “Media” e o “Pluralismo e Diversidade Cultural”, de forma a adotar uma visão mais abrangente e completa do exercício pleno de cidadania.
 
Comentários, ou seja, perguntas, ou seja, perplexidades: Portanto, fazendo as contas, as áreas de cidadania passaram de dezassete para oito? Ou talvez nove, tendo em conta essa que é "dois em um". E que ligação se pode estabelecer entre "Direitos humanos"... que são evidentemente universais, e “Pluralismo e Diversidade Cultural”? Espreitei as Aprendizagens essenciais de ambas as áreas e o que vi foi a referência a "valores constitucionais" misturada com os estafados equívocos "culturais".
 
Por seu turno, as Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento, no que se refere a “Conhecimentos, Capacidades, Atitudes e Valores”, bem como às “Ações Estratégicas”, estão organizadas em oito dimensões de Educação para a Cidadania, as quais se dividem em dois grupos. 
 
Comentários, ou seja, perguntas, ou seja, perplexidades: Mantém-se o inexplicável quarteto ocedeísta (“Conhecimentos, Capacidades, Atitudes e Valores”). E ainda falta a palavra "competência"...

Passo ao documento actualizado da ENEC: a mesma narrativa, as mesmas frases, as mesmas expressões do anterior e do anterior ao anterior e de muitos outros paralelos... Não importa a ordem pela qual surgem as expressões e as frases, a retórica é circular. Parece que se entende, sendo incompreensível; parece evidente, sendo obscura.

Detenho-me apenas e só na participação dos chamados "agentes educativos":

- pais/encarregados de educação, que devem participar activamente no início do ano escolar, no plano de turma relativo à Educação para a Cidadania. O Plano deverá ser aprovado em reunião de conselho de turma, no qual também devem participar. Após aprovação do Plano, deverão ser informados de todas as actividades a desenvolver no âmbito da concretização dos projectos que envolvam Educação para a Cidadania. 

Terei lido bem?! Não há diferença entre a educação que a família deve proporcionar e aquela que deve ser proporcionada pela escola? Os pais são o que são, e, uma coisa é certa, fazem parte de uma sociedade que não é bonita de se ver... Insisto: a escola tem o dever de procurar mudar a sociedade para melhor, não de acolher todas as "sensibilidades", "tendências", "interesses", seja o que for. Por isso, tem de manter uma distância estratégica da sociedade, dos seus membros, dos pais.

- comunidade, com a qual as escolas podem estabelecer parcerias, em concreto, com entidades externas desde que em estreita colaboração com as famílias (pais e encarregados de educação). 

Estas entidades serão as empresas, fundações, instituições, organizações que há muito gravitam em redor da educação para a cidadania com o fito de chegar aos alunos e de os influenciar desta ou daquela maneira. O seu poder tem aumentado ao ponto de, em alguns casos, substituírem os professores e assumirem a sua formação. E os professores consentem, aderem... Mas parece que agora, para manterem o seu lugar, tais entidades têm de agradar às famílias. Como as irão convencer de que são bons parceiros? Não deve ser difícil com as estratégias que algumas foram aperfeiçoando.

- alunos declarados "autores", sendo que, em tal qualidade, participam também na elaboração e aprovação desse Plano.

Se o aluno é autor, tem autoridade. E desde o primeiro ciclo. É interessante perceber que ao professor não é conferido, no documento, semelhante estatuto e atributo. Por outro lado, se o aluno já sabe elaborar um plano para se educar a si mesmo, e tem discernimento para o aprovar, por que se insiste em educá-lo para a cidadania? Só quem já é educado é que pode saber o que é importante para educar, não é?

Pelas Aprendizagens essenciais, só passei os olhos. Um suplício! Primeira coluna "Organizador/dimensão": o que é isso?! Segunda coluna "Conhecimentos, capacidades e atitudes": onde ficou o último elemento do quarteto, os "valores"? Terceira coluna "Ações estratégicas de ensino orientadas para o perfil dos alunos": julgo que se quer dizer "métodos"... e que métodos!

Não, Senhor Ministro, não vou contribuir para a consulta pública.

Deveria? Sim, pois estudo há décadas o currículo escolar (com interesse pela educação para a cidadania) e ensino nessa área, incluindo na formação de professores, mas, a verdade, é que, parafraseando o físico Ernest Pauli, os documentos agora apresentados não apenas não estão certos como nem, ao menos, estão errados. São uma amálgama de pseudo-ideias, que nem a filosofia nem as ciências que se dedicam à educação podem corroborar. 

E mais do que isso, tentam responder a solicitações, conveniências, compromissos, pressões... de grupos, agentes, entidades... a quem o poder político tem dado, e continua a dar, acolhimento e expressão. Mantendo o essencial da dita retórica, governos mais à esquerda puxam para um lado e os mais à direita puxam para outro lado. Ora, a educação para a cidadania não pode ter orientação partidária. A neutralidade neste aspecto tem de ser escrupulosamente respeitada, porque isso é o correcto e porque está nas duas leis-mestras acima invocadas. 

Isto não significa, bem entendido, que a neutralidade deva abranger os valores éticos. Isso nunca pode acontecer. Educar para a cidadania é educar para os valores éticos, que são universais. E isso faz-se no quadro das disciplinas, na História, na Literatura, na Música, na Física, na Geografia, na Filosofia, na Economia... Fora das disciplinas, à margem do conhecimento que veiculam, a educação para a cidadania é vazia de conteúdo, resvala para a doutrina.

Enfim, comentar esses documentos, em sede de consulta pública, seria uma tarefa infinita e assaz difícil, tantos são os aspectos críticos a indicar e, pior, a explicar com base em argumentos reconhecidos como válidos, que não se podem confundir com declarações inconsequentes, as quais mesmo repetidas ad infinitum, não se tornam verdadeiras... Uma tarefa incompatível com o espaço limitado do formulário disponibilizado pela DGE para recolha de contributos (não consegui confirmar isto pois os links indicados no site não abrem). 

E de nada resultaria essa tarefa, não é? Por regra, os documentos curriculares de educação para a cidadania são publicados tal como se apresentam na versão provisória. Não falo de cor, tenho feito o exercício de comparação entre uns e outros.

Uma última nota: estes documentos são piores do que os de outros governos? Não. Nem piores nem melhores. São iguais, na  matriz, na retórica, na ligeireza, no desconcerto com que se encara a formação cidadã, ou seja, a formação ética dos nossos alunos.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

A CORAGEM DE EDUCAR CONTRA OS BRUTOS

Por Maria Helena Damião e Isaltina Martins


No jornal Público do passado dia 19 saiu um artigo do sociólogo José Pacheco Pereira com o título "O mundo é dos brutos: a ascensão da violência e a queda da empatia. Não é por optimismo superficial que  destacamos a frase final - se os justos não respondem aos brutos e à suas manifestações de violência ainda vai ser pior - mas porque queremos acreditar - é, reconhecemos, uma questão de crença - que os brutos não podem ter a última palavra, não podem ter a última acção.

É claro que, sob o ponto de vista racional, a nossa observação coincide com a de José Pacheco Pereira: o mundo - nos seus mais diversos lugares, nas suas mais diversas instâncias e instituições, incluindo a escola e a universidade - está a ser tomado de assalto pelos brutos. E quando não querem ou não lhes interessa dar a cara, arranjam uns quantos "flexíveis" para tanto.

Os educadores, os directores, os professores dignos destes nomes, não podem pactuar com brutos, têm de ficar do lado dos justos e, como noutros tempos perigosos, defender a justiça. Isso implica, naturalmente, coragem.

Foi nesta perspectiva que lemos o artigo em causa, de que nos permitimos reproduzir uma parte substancial e introduzir destaques:

"Qualquer pessoa que conheça história sabe que aquilo a que chamamos “civilização” é muito mais frágil do que a crueldade, a violência, a prepotência, a vingança, o poder absoluto e brutal. Não é preciso sequer escolher grandes períodos da história, a “civilização” é uma raridade, acontece por pequenos períodos, torna a vida dos que vivem nesses tempos melhor e depois esgota-se e acaba. 

Não me interessa fazer grandes exercícios analíticos sobre qualquer das palavras que estou a usar, seja civilização, seja barbárie, toda a gente sabe a diferença entre um mundo, imperfeito que seja, desigual, muitas vezes injusto, mas onde as pessoas são senhoras do seu destino pelo voto, vivem no primado da lei, têm liberdade religiosa, acedem a condições mínimas de existência. Para contrariar o meu argumento podem vir com mil exemplos de imperfeição, de injustiça, de exclusão, mas o que sobra é melhor do que um mundo com pena de morte, tortura, censura, ausência de direitos, em que todos são indefesos face aos mais fortes.

A “civilização” como a conhecemos no mundo democrático ocidental está a acabar, diante dos nossos olhos, pela ascensão da brutalidade, da educação dos jovens pela distracção, da ignorância e do valor da força, do individualismo agressivo, do culto da ignorância e do pseudo-igualitarismo das redes sociais. A violência torna-se a regra nas relações como “outro” (...).

Não adianta virem-me dar lições de que este catastrofismo civilizacional é recorrente em certos momentos da história cultural, o que é verdade. Mas também é verdade que a catástrofe já ocorreu várias vezes, uma das quais nos anos 20-30 do século passado. O mundo que filósofos como Comte entendiam ter entrado numa senda de “progresso”, com a revolução técnico-científica do final do século XIX, entrou na barbárie da I e da II Guerra com milhões de mortos e anos de brutalidade em vários países “civilizados” da Europa e na URSS. 

Há muitas explicações socioeconómicas para esta crise civilizacional, muito sérias, mas a guerra cultural dos nossos dias tem um papel fundamental. O culto imberbe pela modernidade, assente num deslumbramento tecnológico que oculta muita preguiça e manipulação, em que meia dúzia de gestos num telemóvel, explorando três ou quatro funções simples, passam por um saber semelhante ao falar português sem um erro ortográfico a cada palavra, a arrogância de dar opiniões sobre coisas que não se viram, ouviram e leram - tudo isto ajuda a erodir a frágil democracia porque “molda” a cabeça. É o que já cá está e o que vem aí.|

Basta ver o X para se perceber o impacto em quem vive dependurado nas redes do que lá encontra: cenas de violência em que velhos, mulheres e brancos são atacados por imigrantes, em que mulheres de burka reclamam a conversão da Europa ao Islão, cenas de pancadaria para “punir” um ladrão ou um molestador apanhado em flagrante por “cidadãos verdadeiros”, acidentes de automóvel com pancadaria, uma sucessão elogiosa de enormes explosões na Síria, no Líbano, em Gaza, com origem nos “amigos de Israel”, a generalização da palavra “traidor” para designar quem não participa da fúria anti-imigrante e não quer participar na chamada “remigração” (e porque não organizar uns pogroms?), etc., etc. No Instagram e no TikTok, um bom exemplo da platitude intelectual dos nossos dias é a classificação de “influenciadores”. Uma pequena multidão compete por essa “influência” nas redes sociais, alguns/algumas com alguma imaginação e esperteza, mas, por regra, com uma absoluta indigência intelectual, gigantesca ignorância, muito mau carácter, e truques de ganância que é, nos nossos dias, o principal motivador dinâmico do comportamento (...). Alguns/algumas já cometeram crimes (...), gabaram-se destes feitos, porque tudo é bom para terem os célebres 15 minutos de fama (...). O facto de terem feito estas violências sem qualquer hesitação moral significa que olharam para elas como olham milhares de pessoas cuja principal preocupação, quando assistem a uma qualquer violência sobre os mais fracos, é puxar do telemóvel e filmar, para terem “material” para colocar nas redes sociais, e não ajudar (...). 

Este submundo é hoje o mundo. Sem princípios, sem saber, sem mediação, com apologia da força, elogio da violência e hostilidade aos mais fracos. Já estão a ganhar e, se os justos não lhes respondem alto e bom som, ainda vai ser pior.

Tentemos pois tudo fazer para que a “civilização, como a conhecemos no mundo democrático ocidental", se mantenha, ainda que debilitada pelas suas muitas feridas.

domingo, 20 de julho de 2025

PARA EVITAR A CIÊNCIA E A TÉCNICA NÃO PODEMOS LER NEM EXISTIR

[Este texto tem cerca de um ano, mas por razões várias razões ficou inédito. Partilho-o agora.]

O que é que Colleen Hoover e Richard Powers têm em comum? São escritores que não pertencem à mesma divisão, claro, mas que não estão fora da realidade. Assim, as suas narrativas cruzam-se com a realidade e esta com a Ciência e a Técnica, as quais envolvem e moldam o nosso mundo. 

Os autores de ficção atuais em que tenho notado maior visibilidade da Ciência e da Técnica são Michel Houellebecq e Richard Powers. Do primeiro, em Partículas Elementares (Alfaguara, 2022), um cientista da área da Biologia Molecular é uma das personagens centrais, e, em Serotonina (Alfaguara, 2019), a personagem principal, graduada em Agronomia, discute vários assuntos científicos. De Richard Powers, parecem-me especialmente interessantes Eco da Memória (Casa das Letras, 2008) e Assombro (Presença, 2022), sendo que, neste último, a personagem principal é um cientista. Ambos os autores têm sido traduzidos para português, mas de Powers não foi ainda, que eu saiba, traduzido Gain, no qual uma personagem refere que a Química lhe deu muitas coisas e portanto não assina uma petição contra um produto químico. Bernadette Bensaude-Vincent e Jonathan Simon, em Chemistry: The Impure Science, referem que esta atitude é demasiado racional para ser plausível. Não é, no entanto, necessário que a ficção seja fiel à realidade, como é óbvio. Isso é até, segundo a formulação elegante de Azar Nafisi, em Ler Lolita em Teerão (Gótica, 2004), diminui-la, pois o que procuramos na literatura não é tanto a realidade mas a epifânia da verdade [entretanto foi feito deste livro um filme].

Vem isto a propósito da Ciência, e em particular a Química, que está presente na Literatura. Se aparecesse como um catálogo não seria provavelmente boa literatura, e nem tem de ser real ou plausível - o medicamento que a personagem principal de Serotonina toma não existe, por exemplo. É um espelho ou um ambiente envolvente que nos interroga e nos permite refletir sobre a realidade. 

Como defendi em Jardins de Cristais (Gradiva, 2014), a Ciência, e a Química em particular, está presente, direta ou indiretamente, em todas as obras literárias. E foi à conta da procura de novos exemplos que comecei a notar que os jovens “afinal liam”. A afirmação de os jovens não lerem é comum, e eu também acreditava nela. Bastava perguntar num grupo de jovens e o silêncio das respostas confirmava o meu preconceito. Mas com um estudo experimental acabei por mudar de ideias [Esse estudo foi, entretanto, publicado aqui (pp. 205-209)]. E, têm aparecido notícias sobre a vendas de livros em Portugal, que confirmam essa realidade.  

Mas, antes de mais, é preciso perceber o que se entende com a ideia de que os jovens “não leem”. Não leem o que achamos que poderá ser “boa literatura”, mas leem outras coisas. Com cerca de quatrocentos estudantes, de cinco escolas de todo o país, do Ensino Básico e Secundário, verifiquei isso na prática. Não porque os questionei de viva voz, mas porque lhes dei papéis para escreverem de forma anónima o que estavam a ler. E fiquei surpreso. Muitos dos livros que estes liam eu nem sequer conhecia. Muito do que liam era influenciado pelos colegas e pelo mercado; eram livros para jovens e com jovens personagens, mas também era influenciado pelos professores. Numa escola que visitei, por exemplo, vários alunos referiam o Diário de Anne Frank (Livros do Brasil, 2022). 

Ao contrário de Michel Houellebecq e Richard Powers, Colleen Hoover é uma autora muito lida pelos jovens. Que as narrativas desta autora sejam limitadas parece-me normal, pois esta tem pouca experiência de vida e objetivos curtos. Em, por exemplo, Isto acaba aqui (Topseller, 2017, de que foi feito um filme recentemente), ou Confesso (Topseller 2016), embora possa existir alguma complexidade nas narrativas, estas andam quase só à volta de amores românticos bastante vulgares, não envolvendo visões do mundo abrangentes nem desafiantes. São livros que não parecem interrogar-nos. Mas é aqui que encontro o paradoxo. Estes livros podem ser mais abrangentes ou podem interrogar-nos, não pelos seus conteúdos, mas pelas ramificações inesperadas que podem originar. Nomeadamente as referências a objetos que se relacionam com a Ciência e a Técnica.

Dou outros exemplos: A culpa é das estrelas (Asa, 2012) de John Green ou A distância entre nós (Presença, 2019) de Rachel Lippincott, Mikki Daughtry e Tobias Iaconis são também livros (de que foram feitos filmes) que nos levam a aspetos inesperados da contribuição da Ciência e da Técnica para o nosso mundo. São também “dramas” românticos como os livros de Colleen Hoover, mas podem ser mais do que isso. No primeiro livro, temos dois jovens apaixonados com cancro em que um acaba por morrer e, no outro, temos, de novo, dois jovens apaixonados, mas é ainda mais dramático. Têm ambos fibrose cística e não se podem aproximar. Mas, ao analisar a linha temporal destas doenças, verificamos que o final feliz não está na relação amorosa, mas nas possibilidades que oferece a narrativa. O cancro de que morreu a personagem do primeiro livro tem uma esperança de cura de quase 100%. E na doença do segundo livro, até aos anos 1940, a esperança de vida era mínima, mas atualmente os doentes têm esperanças de vida da ordem dos sessenta anos, devido à recente descoberta de medicamentos modeladores das proteínas e outros avanços. A tragédia continua a existir, mas pode não ser tão dramática.  

Além dos temas, gostaria também chamar a atenção para as experiências de vida dos autores e leitores. Em Lições de Química (Asa, 2022), de Bonnie Rosmus, acompanhamos as desventuras de uma jovem química que procura fazer doutoramento no mundo machista dos anos 1950. Por outro lado, A Hipótese do Amor (Desrotina, 2022) de Ali Hazelwood é uma história romântica muito menos complexa, mas que se passa nos dias de hoje, em que uma jovem a fazer doutoramento é normal. A autora, ela própria a fazer investigação, refere que este livro se baseia no seu mundo. Enquanto Rosmus, mais experiente, estudou o assunto e pediu a colaboração de cientistas, Hazelwood usa a sua biografia para compor a história. Em A Química do Amor (Quinta Essência, 2017, título original, How not to Fall) de Emily Foster, pseudónimo de uma investigadora que não é identificada, mas é doutorada e autora de um ensaio sobre sexo (diz a sinopse) parece ser também a experiência da vida que se conhece que condiciona a narrativa.   

Há jovens autores com uma profundidade inesperada como Lolita Pille, em Hell (não detetei que fosse lido pelos estudantes portugueses, nem que tenha sido editado em Portugal) que foi publicado quando esta tinha vinte anos. Mas, como é bem conhecido, toda a literatura é de certa forma autobiográfica e esta escreveu sobre as vidas de jovens parisienses, as quais conhecia bem. Podemos também lembrar Françoise Sagan que, com dezanove anos, publicou, em 1954, um livro de uma profundidade também inesperada: Bom dia, Tristeza (A Casa dos Ceifeiros, 2017). Mas, vejamos as entrevistas desta última: escreveu sobre o mundo que conhecia, melhorado pelas leituras de Proust, Dostoievski e Wilde, entre outros. Um mundo, ainda traumatizado pela segunda guerra mundial, que acabou quando Sagan tinha cerca de dez anos, em que começava a haver liberdade sexual, mas não havia pílula anticoncecional e o fantasma do aborto assombrava as mulheres.

E, finalmente, podemos relembrar Fernando Namora que, em 1938, com cerca de vinte anos, publicou As sete partidas do mundo (Europa-América, 1990), livro que mais tarde, em 1958, sentiu necessidade de alterar. Quando Namora escreveu a primeira versão do livro não havia antibióticos, mas, em 1958, já havia, e isso reflete-se na reescrita da obra. 

Na minha opinião, os contextos e os pormenores dão interesse acrescido às obras literárias, mesmo as consideradas menos interessantes. E, se estou agora mais convencido de que os jovens afinal leem, continuo com a convicção de que todos os livros se relacionam com a Ciência e a Técnica, as quais direta ou indiretamente envolvem e moldam o nosso mundo e nos fazem humanos.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

TERRAS RARAS EM PORTUGAL E O PARADOXO DA ABUNDÂNCIA

  Por A. Galopim de Carvalho

Já por diversas vezes falei das “terras raras” e, ao falar hoje sobre o que se sabe acerca deste problema, ocorreu-me, não sei porquê (ou talvez saiba) o chamado Paradoxo da Abundância, também conhecido como “maldição dos recursos naturais”, uma ideia desenvolvida em 1993, pelo economista britânico Richard Auty, Professor Emeritus de Economia e Geografia, da Lancaster University. 

Uma ideia segundo a qual, países ricos em recursos naturais (como petróleo, gás ou minérios) revelam, frequentemente, índices de pobreza, incompatíveis com uma tal riqueza. Uma realidade que anda de mãos dadas com um crescimento económico mais lento, instabilidade política, elevados níveis de corrupção e menor desenvolvimento institucional. Ao contrário do que seria de esperar, a abundância de recursos naturais prejudica o desenvolvimento sustentável de um país, em vez de o impulsionar.

A Nigéria, um exemplo entre vários (Venezuela, Angola, Iraque, Chade), um dos maiores produtores de petróleo da África, sofre de má gestão, vive uma gritante falta de infraestruturas básicas, enfrenta constantes conflitos armados e afunda-se numa corrupção endémica. Em contraste, países com poucos recursos, como Japão, prosperaram por meio de inovação e industrialização.

Portugal não tem nem sabe quando terá exploração comercial de “terras raras”, mas consta, com relativa certeza, que possui diversas áreas promissoras, que poderão vir a tornar-se estratégicas e fonte de desenvolvimento. Notícias que têm vindo a público, apontam como principais ocorrências: Vale de Cavalos (Portalegre) e Monfortinho (Castelo Branco) e quatro jazidas geologicamente confirmadas, no Alentejo, que, sabe-se, já têm quem “ande com o olho nelas”.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

AINDA AS TERRAS RARAS

 Por. A. Galopim de Carvalho

Em finais do século XVIII, quer para os químicos como para os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais constituíam um grupo então designado por “terras”, jorden, para os suecos, Erde, para os alemães, earth, para os ingleses, e terre, para os franceses. Face ao qualificativo raras, qualquer pessoa será levada a pensar que se trata de substâncias que ocorrem em quantidades ínfimas, mas não é o caso.

Por serem de difícil separação e por serem apenas conhecidos em minerais oriundos da Escandinávia, foram então (estamos a falar de finais do século XVIII, nos alvores da Química e da Mineralogia) considerados "raros", qualificação ainda hoje utilizada, apesar de alguns deles serem relativamente abundantes na crosta terreste. Todos eles são mais abundantes do que metais como a prata e o mercúrio, por exemplo. 

Os metais destas “terras”, ou seja, destes óxidos, são, de acordo com o que a Química nos ensina, um grupo de 17 elementos, da “Tabela Periódica dos Elementos Químicos”, dos quais, 15 pertencem ao grupo dos chamados lantanídeos, isto é, os que ali vão do lantânio ao lutécio, aos quais se juntam o escândio e o ítrio, todos eles elementos que ocorrem nos mesmos minérios e apresentam propriedades físico-químicas semelhantes. 

Os 15 lantanídeos são: lantânio, cério, praseodímio, neodímio, promécio, samário, európio, gadolínio, térbio, disprósio, hólmio, érbio, túlio, itérbio e lutécio. Cada elemento tem propriedades únicas que os tornam valiosos para diferentes aplicações nas tecnologias mais avançadas, “do futuro”, daí o seu grande interesse estratégico. 

Todos estes minerais são mais difíceis de explorar do que os minerais de metais como o ferro, o cobre, o chumbo, o zinco e muitos outros. Esta dificuldade torna os metais das “terras-raras” relativamente caros, pelo que o seu uso industrial foi limitado até serem desenvolvidas técnicas de separação de alto rendimento, em meados do século XX, tais como, cristalização fraccionada, troca iónica. As terras-raras têm aplicação em grande variedade de modernas tecnologias de ponta, de grande interesse estratégico e económico. 

Para os geólogos, as “terras-raras” ajudam a conhecer as fontes magmáticas de certas rochas, permitem datar alguns minerais, entre os quais, certas granadas, através da abundância relativa do par neodímio/samário. Mas o seu interesse científico não fica por aqui. Alarga-se a determinados campos da Física e da Química, da Biologia, da Medicina e outros.

Principais minerais com elementos da terras-raras:

Bastnaesite - (La, Ce, Y)CO₃F, fluorocarbonato de lantânio, cério e ítrio.
Eritrite (Co₃(AsO₄)₂·8H₂O, arsenato hidratado de cobalto.
Euxenite ((Y, Ca, Ce, U, Th)(Nb, Ta, Ti)₂O₆), óxido de titânio, tântalo e nióbio, com ítrio, cálcio, cério, urânio e tório.
Gadolinite ((Ce,La,Nd,Y)₂FeBe₂Si₂O₁₀), silicato de berílio e ferro, com cério, lantânio, neodímio e ítrio.
Loparite - (Na,Ce,Ca)(Ti,Nb)O₃, óxido de titânio e nióbio, com sódio, cálcio cério.
Monazite-cério - (Ce, La, Nd, Th, Y)PO4, fosfato de cério, lantânio, neodímio, tório e ítrio.
Monazite-lantânio - (La, Ce, Nd)PO4, fosfato de lantânio, cério e neodímio.
Monazite-neodímio - (Nd, La, Ce)PO4, fosfato de neodímio, lantânio e cério.
Monazite-samário - (Sm, Gd, Ce, Th)PO4, fosfato de samário, gadolínio, cério e tório.
Xenótima - YPO₄, fosfato de ítrio.

O de todos conhecido grande interesse estratégico das “terras raras” assenta, por um lado, na sua importância no que se refere às modernas tecnologias e indústrias de ponta, e, por outro, na concentração geográfica (na China) da sua produção, principal causa de vulnerabilidades geopolíticas e económicas.  

As “terras raras” são essenciais em tecnologia militar, nomeadamente na produção de mísseis teleguiados, radares, lasers, sistemas de comunicação, motores de aviões e submarinos nucleares. Estão na ordem do dia em equipamentos electrónicos de uso público, como smartphones, monitores de LEDs (Light Emitting Diodes), baterias recarregáveis, alto-falantes e auriculares. 

No que diz respeito às energias renováveis lembram-se os motores e baterias de veículos automóveis, os ímanes de neodímio nas turbinas eólicas. Em tecnologia médica, sobressaem os lasers cirúrgicos e os tomógrafos, como tomografia computorizada (TAC), ressonância magnética (RN) e outros. Têm, ainda, grande importância como catalisadores industriais na refinação do crude (petróleo bruto) e na redução da poluição automóvel.

A China domina mais de 60% da produção mundial de “terras raras” e lidera a respectiva refinação, o que lhe dá reconhecida hegemonia geopolítica, no que concerne a capacidade de restringir ou não as exportações com base em motivos políticos ou comerciais.  

Os países que dependem de “terras raras” importadas para as suas indústrias de defesa tornam-se vulneráveis. A corrida tecnológica de acesso garantido a esses minerais é crucial para liderar em inteligência artificial, energia limpa e armamentos avançados. A transição energética, com o crescimento da energia limpa e o número em crescimento de veículos elétricos aumenta exponencialmente a procura.

Resumidamente é este o cerne da situação.

sábado, 12 de julho de 2025

A DESVIRTUAÇÃO DA ESCOLA COMO PROBLEMA COLECTIVO

Rui Bebiano, historiador e professor na Universidade de Coimbra, publicou hoje no diário As Beiras um texto que devia ser lido por todos aqueles que têm responsabilidades em matéria de educação escolar pública, desde ministros da tutela, formadores de professores, directores, professores... E relido tantas vezes quantas as necessárias até ser devidamente compreendido, pois tenho a certeza de que, não obstante a clareza da redacção, o seu conteúdo se afigura estranho, anacrónico, pouco aceitável face às "exigências da sociedade" e aos "interesses e necessidades" que se dizem ser as dos clientes, ou seja dos alunos e das famílias.

A finalidade educativa da educação escolar não está, efectivamente, no nosso horizonte, o que queremos da escola é que produza "capital humano", "recursos humanos". Isto significa a médio e longo prazo condenar a humanidade à degradação.

O título do texto, O recuo das humanidades como problema coletivo, é verdadeiro, mas o que nele se diz para as humanidades pode ser dito para uma parte significativa das ciências e, sem dúvida, para as artes e, mesmo, para a expressão corporal. Todas as áreas do currículo foram, há muito capturadas pelas exigências neoliberais e tomadas de assalto pelos seus gurus, que, com uma inenarrável arrogância, conquistam a comunicação social e a academia, sem deixar a escola de fora.

É preciso que se percebam os efeitos devastadores deste caminho, legitimado politicamente, por partidos mais à esquerda e mais à direita: é a dignidade humana que, antes de mais, está em causa e, de modo bem visível, a democracia, mas também outros valores que devem ser estimados como a verdade e a liberdade.

Por isso, subscrevo inteiramente o último parágrafo do texto de Rui Bebiano: como educadores temos de tomar consciência profunda de várias coisas:
1) de que o problema é bem real e de enormes proporções, como diz Nussbaum, que cita;
2) da coragem que é precisa para o enfrentar, porquanto isso gera incompreensões, quando não antagonismos, que se fazem acompanhar de consequências;
3) da dificuldade de oferecer "conhecimento poderoso" às crianças e aos jovens, e estimular as suas capacidades num mundo que insiste em atrofiá-las;
4) da morosidade que isso implica e da paciência que é preciso ter para não desistir.
 
Eis o texto de que falo, com destaques que me permiti fazer:

"A partir dos anos noventa passou a falar-se bastante, sobretudo entre quem as tenha no eixo das suas vidas, do recuo, ou da crise, das humanidades. Isto é, de uma rápida e acentuada desconsideração pública dos saberes e das práticas que estudam e transmitem a experiência humana, incluindo-se neles a literatura, as ciências da linguagem, a história, a filosofia, os estudos culturais e as artes. 

Todos procuram compreender e partilhar as formas usadas pelos seres humanos para se expressarem, interagirem e criarem significados nos planos pessoal e coletivo, combinando diferentes modos de estar no mundo, de o entender, de o representar e de o transformar.

São-lhe muitas vezes associa das outras disciplinas, como a sociologia, a antropologia, a ciência política, o direito, a psicologia social ou a geografia humana, que se interessam também pela vida em sociedade.

Todavia, estas detêm junto do poder político e económico um referente de objetividade e de «utilidade» mais explícito, enquanto as humanidades são frequentes vezes relacionadas com formas de subjetividade e escolhas diletantes julgadas sem préstimo material.

Foi esta uma das razões pelas quais as políticas educativas do neoliberalismo passaram a encará-las como formas de despesismo, com um peso dispensável nas contas públicas. Salvo quando a sua presença possa servir para legitimar certas escolhas. Em particular a história local e a dos «grandes feitos» tem cumprido esta função, passando a ser olhada com desinteresse logo que revele um passado silenciado ou diverso das leituras dominantes.

Todavia, as humanidades têm sido essenciais para produzir sociedades melhores e para propagar sensibilidades que favoreçam a afirmação do humano.

O conhecimento que oferecem, as experiências que comunicam, a diversidade que mostram, os trajetos dos indivíduos e das sociedades que veiculam, têm sido, ao longo dos séculos, vitais para ampliar e transmitir a variedade do mundo, tornando-o melhor. E também para destacar, como exemplo e legado coletivo, os valores essenciais do progresso, da liberdade, do respeito pelo outro, da solidariedade, da cordialidade, da partilha, que tornam o humano mais humano e ajudam a melhorar a vida de todos. Ao mesmo tempo, elas alimentam os princípios fulcrais da democracia, bem como, palavras da filósofa Martha C. Nussbaum, «o valor da imaginação, da criatividade, da empatia e do pensamento crítico».

Daí não ser de estranhar o desinvestimento nas humanidades em escolhas de política educativa, a sua acentuada simplificação ou o seu apagamento nos curricula escolares, a sua subalternização na imprensa e na televisão generalistas, levados a cabo por todo o lado, mesmo sob regimes democráticos regulados pelo utilitarismo, insistindo nas competências técnicas em detrimento dos saberes substantivos, e provocando o referido recuo. 
 
Não pode, por isso, causar estranheza a atual afirmação em diferentes setores do espetro partidário de uma cultura política, segundo Teresa de Sousa, «sem alma e sem valores». Capaz de conviver, por falta de memória e de conhecimento, com um «novo normal» feito de ódio social, de deturpação da verdade, de menosprezo dos direitos humanos e de retrocesso das conquistas sociais.

Cego pela ignorância da experiência acumulada e dos erros do passado, ou por uma ligeireza «ultratecnicista» que o sistema educativo tem propagado, um número crescente de pessoas – em particular entre as mais jovens, como mostram inquéritos recentes – torna-se presa fácil de discursos sem fundamento, apresentados como novidade e capazes de devolver a história humana à estaca zero, dos quais se servem os populismos e a extrema-direita, empurrando sociedades razoavelmente equilibradas e pacíficas para um novo estado de barbárie
 
Por isso, por demorado e difícil que seja o caminho, é tão importante pôr no centro do combate político diário a recuperação das humanidades."

quinta-feira, 10 de julho de 2025

HIDROCARBONETOS

Por A. Galopim de Carvalho
 
A palavra "hidrocarboneto" surgiu como um termo descritivo da composição química de compostos formados apenas por átomos de carbono e de hidrogénio, podendo apresentar uma grande diversidade de estruturas, isto é, de arranjos entre os átomos de cada um destes dois elementos. Os átomos de carbono são relativamente grandes e tetravalentes negativos (C4-) e os de hidrogénio são pequenos e monovalentes positivos(H+). Assim, um átomo de carbono coordena à sua volta quatro átomos de hidrogénio, gerando a estrutura mais simples e menos pesada, que é a do gás metano (CH4). 
 
 
Acontece que, à semelhança do silício, o carbono tem capacidade para formar ligações com outros átomos de carbono, quer com apenas um (ligação simples), quer com dois (ligação dupla), quer com três (ligação tripla). Assim, podem edificar-se polímeros (moléculas compostas pela repetição do mesmo motivo) representados por longas cadeias lineares, ramificadas ou cíclicas (em anel), mais ou menos complexas. Tais características determinam uma grande diversidade de hidrocarbonetos. Os mais simples e leves são gasosos, os mais complexos e pesados são muito viscosos e aparentemente sólidos, situando-se os líquidos a meio termo. 
 
Asfalto

Também referido por betume, tem cor castanha a negra, com a aparência do alcatrão, essencialmente constituído por hidrocarbonetos de elevado peso molecular, é coeso, com a aparência de um sólido às temperaturas e pressões normais na superfície. Conhecido na Antiguidade como “betume da Judeia” é, em grande parte, resíduo resultante da volatilização natural de hidrocarbonetos líquidos e gasosos no seio de um depósito petrolífero. Contem, ainda, à mistura, compostos sulfurados, azotados e oxigenados em maior percentagem do que os petróleos brutos. Muitas vezes resulta da oxidação parcial de misturas de hidrocarbonetos líquidos empobrecidos nos componentes mais leves e, daí, ser considerado um oxibetume. Todavia, alguns asfaltos podem resultar directamente de matéria orgânica, sob certas condições de origem e de evolução. Deve acrescentar-se que os termos asfalto e betume são igual e vulgarmente usados como nomes dos produtos artificiais de composição semelhante e idêntico aspecto. Por asfaltito, termo petrográfico, entende-se um asfalto com ponto de fusão acima de 110ºC, e por gilsonito, uma variedade de asfalto muito dura.

O asfalto tem sido usado na: pavimentação de rodovias, ciclovias, arruamentos, pistas de aeroportos e outros pisos, como aglomerante em misturas com brita, gravilha e areia; impermeabilização de coberturas e lajes, em construções civis, barreiras contra humidade e fundos de reservatórios e canais; produção de tintas, vernizes e outros.

O petróleo bruto

crude oil ou crude (do latim crudus, “cru”, “bruto”, “não refinado”), para o qual também se conhecem a designação ramas de petróleo ou, simplesmente, ramas, é uma mistura de hidrocarbonetos líquidos à temperatura e pressão da superfície, com maiores ou menores percentagens de outros hidrocarbonetos, sólidos e gasosos, em solução. Pode incluir, ainda, ceras, resinas e compostos azotados, sulfurados e oxigenados. Em termos de composição química média, contêm 85% de hidrogénio, 13% de carbono, sendo a parte restante essencialmente constituída por enxofre, azoto e oxigénio. A densidade das ramas oscila entre 0,83 e 0,96. O conhecimento destes parâmetros tem grande interesse, pois a gama de produtos possíveis de extrair do petróleo bruto pode ser prevista a partir daqueles valores. A viscosidade (variável que depende, entre outras, da composição e da temperatura) é outro factor importante na avaliação da qualidade das ramas. O aspecto do petróleo bruto pode variar entre o de um líquido como o conhecido petróleo de iluminação, comercial, e o de um óleo negro e viscoso, tanto mais pastoso quanto mais deficiente for em componentes leves. Via de regra, os hidrocarbonetos líquidos são tanto mais escuros quanto mais elevado for o número de átomos de carbono nas respectivas moléculas.

Da mesma maneira que o carvão substituiu a lenha e alimentou a Revolução Industrial, o petróleo veio substituir, em grande parte, o carvão durante o século XX, estando o seu declínio já à vista, enquanto o gás natural tem ganho terreno entre os combustíveis tradicionais, e os xistos betuminosos foram e têm sido encarados como uma perspectiva futura. Uma visão que entra em confronto com a necessidade e urgência de estancar o aquecimento global.

O petróleo, em oposição aos óleos vegetais e animais, começou por substituí-los em muitos dos seus tradicionais usos, em especial a iluminação. Das candeias de azeite dos nossos avós passou-se aos candeeiros a petróleo iluminante (querosene) dos nossos pais e da nossa infância.

Uma outra utilidade do petróleo, da maior importância, é a sua aplicação como matéria-prima da Petroquímica, a indústria que criou e utiliza os derivados do petróleo e do gás natural como base na produção de uma vasta panóplia de materiais objectos e equipamentos que caracterizam o nosso viver individual e colectivo.

O gás natural é composto, essencialmente, por hidrocarbonetos gasosos às temperaturas e pressões normais à superfície do globo, dos quais o metano é o mais comum e abundante (e também o mais estável) com cerca de 85%. Entre os outros hidrocarbonetos, menos frequentes e geralmente subordinados, distinguem-se o etano, o propano e o butano. A estes componentes essenciais estão sempre associados, embora em pequena quantidade, outros gases, como azoto, dióxido de carbono e gás sulfídrico.

O gás natural pode ocorrer isoladamente ou em associações com concentrações de petróleo bruto e, neste caso, quer dissolvido no líquido (subsaturado), quer separado dele (saturado) e cativo acima da camada petrolífera.

O PARADIGMA "EDUCATIVO" A QUE CHEGÁMOS.

A palavra paradigma entrou nos discursos políticos, confere-lhes sofisticação ou, pelo menos, quem a usa julgará que sim. Tendo sido central...