domingo, 12 de janeiro de 2025

RENASCER

Por A. Galopim de Carvalho
 
No léxico geológico o vocábulo “palingénese”, radicado nos étimos gregos “palim” que quer dizer de novo, e “génesis”, que significa acto de gerar, veicula a ideia de renascer. O termo foi usado por alguns autores para referir a fase do ciclo petrogenético que conduz à geração do granito por fusão, no interior profundo de uma montanha em formação, das rochas nela envolvidas, rochas que, por sua vez, resultaram da acumulação dos sedimentos derivados da erosão de terrenos em que tinham lugar granitos de uma geração anterior.
 
Esta ideia suscitou-me a reflexão que aqui vos deixo, com votos de um bom Domingo, mesmo com chuva, que tanta falta nos faz.
 
Renascer é uma constante nas histórias do Universo, da Terra e também dos homens.

Renasce, todos os anos, plena de luz, a Primavera, pondo fim ao frio e sempre triste Inverno que, também ele, renascerá meses mais tarde.

Todos os dias, o Sol morre no longínquo Poente, para renascer na manhã seguinte, do outro lado do mundo, numa alusão da morte e do renascer da natureza.

Fénix, a ave da mitologia egípcia, ateava o fogo ao seu ninho e deixava-se consumir pelas chamas, renascendo depois, dos seus restos calcinados.

Na expressão figurativa do cristianismo, o renascer da Fénix é o símbolo da ressurreição de Cristo.

Há 14 anos, “Fénix 2” foi o nome escolhido para designar a cápsula que, numa operação prodígio da engenharia mineira, fez renascer, um a um, os 33 mineiros da mina de São José, no Chile, soterrados a cerca de 700 metros de profundidade.

No final da Idade Média, na transição para a Idade Moderna, teve início, nas cidades de Florença e Siena, um período marcado por transformações em muitas áreas da vida humana, em particular nas artes, na filosofia e nas ciências, com evidentes reflexos na sociedade, na economia, na política e na religião. Foi a ruptura com as estruturas antigas em transição gradual do feudalismo para o ideal humanista e naturalista. Deu-se-lhe o nome de Renascimento, dado que fez renascer as referências culturais da Antiguidade Clássica.

Renascem as cidades depois de destruídas por catástrofes naturais ou pelas guerras. Renascem, para a vida, as mulheres e os homens que se libertam dos agentes opressores, sejam eles outros homens ou mulheres ou as tristemente célebres substâncias psicoactivas.

Renascem os cravos vermelhos, todos os anos, em Abril e, logo a seguir, nos campos, renascem as espigas de trigo, as papoilas e, à noite, o tracejar dos pontos de luz dos pirilampos, ao mesmo tempo que, nas avenidas, praças e jardins, o chão se cobre de um tapete de pétalas lilases de jacarandás.

sábado, 11 de janeiro de 2025

Uma polémica cultural à portuguesa

Depois de uma polémica cultural à portuguesa, pouco renhida e logo esquecida, ou, pelo menos, cuidadosamente omitida no momento de pompa e circunstância, lá foram, na passada semana, os restos mortais de Eça de Queiroz parar a Santa Engrácia. 

Os amáveis votos que se dirigem a quem falece - "Descanse em Paz" - não se aplicam, por certo, ao escritor: rumou de Paris para o cemitério do Alto de São João, depois para o cemitério de Santa Cruz do Douro e, agora, voltou a Lisboa.
 
Não acompanhei a cerimónia, não me interessou. Passei os olhos por duas ou três fotografias: um  cenário dejà vu, triste, apesar de tudo estar no seu devido lugar e muito bem apresentado. Diferente seria se dedicássemos igual esforço a pensar em como levar a ler e a amar, na escola pública, as páginas que Eça escreveu.
 
Faço minhas as palavras de Eugénio Lisboa, que bem tentou que Eça ficasse, para a eternidade, onde estava: "eu acho", escreveu "que o único Panteão adequado a um grande e vital escritor é a permanência dele no coração dos seus múltiplos leitores" (aqui). E os leitores fazem-se (diria eu, sobretudo,) na escola.
 
Aqui ficam alguns dos textos que Eugénio Lisboa publicou sobre essa polémica que, a bem dizer, parece nunca ter existido:
- TRASLADAÇÃO DOS RESTOS MORTAIS DE EÇA DE QUEIROZ PARA O PANTEÃO (aqui)
- POR FAVOR, NÃO PANTEONEM O EÇA! (aqui)
- AVISO POR CAUSA DA MORAL, DO BOM SENSO E DA LEGALIDADE (aqui)
- EÇA DE QUEIRÓS NÃO ERA “PESSOA DE BEM” (aqui)
- O PANTEÃO DE UM ESCRITOR SÃO OS SEUS LEITORES (aqui)
- EÇA NO PANTEÃO NÃO TEM ADESÃO (aqui)

"A fronteira entre ciências e letras é arbitrária"

 Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião

Na Europa e na América, os sistemas de ensino públicos descartam as artes e as humanidades, fazendo prevalecer a ciência que pode "servir" a tecnologia". Isto acontece no ensino não superior e no superior: marginalizam-se ou extinguem-se disciplinas, vias de escolaridade, cursos que "não têm utilidade" no mercado de trabalho, onde cada um "vale" o preço que lhe é conferido pelas competências funcionais que adquirir e possa pôr a render nesse marcado. 
 
Sobre este e outros temas, relacionando a actualidade com o passado sempre presente, nos fala Irene Vallejo, no livro ao lado indicado e do qual extraímos a seguinte passagem:
 
“A fronteira entre ciências e letras é arbitrária. Para os gregos antigos só existia o território comum do saber e o obstáculo único da ignorância. Os primeiros filósofos foram físicos e o grande Aristóteles era biólogo. Os pitagóricos descobriram a importância oculta da matemática na música e o escritor romano Lucrécio expôs a teoria dos átomos em versos apaixonados. O antagonismo atual entre as duas culturas é irreal: precisamos de equações e de poesia. Ninguém é mais esperto por escolher o cálculo ou a história. As metas dos cientistas e dos artistas são as mesmas: compreender o mundo, derrubar preconceitos, tornar-nos livres. Por isso, devíamos deixar de levar estas divisões tão à letra ou considerá-las de ciência certa.” 
 
Irene Vallejo, O Futuro Recordado, Bertrand Editora, 2024, pág. 28.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

SOBRE A MORTE

Texto meu que saiu no livro de Paulo João Santos, Encontros com a Morte (Oficina da Escrita):

Dizer que a morte é o fim da vida é uma definição muito redutora, pois a vida – entendida não na sua dimensão individual, mas como um fenómeno colectivo – não só se prolonga para além da morte de cada ser vivo, como tem necessariamente de incluir a morte para que as espécies assegurem o seu normal desenvolvimento. A vida pressupõe a reprodução, mas tornar-se-ia rapidamente impossível a vida conjunta de todos os indivíduos se acaso não houvesse morte, até pela exaustão de recursos ambientais. Para que uns tenham a oportunidade de viver, outros têm de morrer. A evolução das espécies assenta na mudança de características de uma população ao longo de várias gerações, sendo a morte parte inextrincável desse processo.  Morrer é a coisa mais natural da vida. E, no entanto, sendo a biologia como é, nós, humanos, encaramos a morte como um mal. E temos medo dela. Talvez para exorcizar esse medo, tendemos a projectar, para além dela, uma vida não material, que não se sabe bem o que será. Somos os únicos seres vivos que imaginam e desejamos vidas para além da morte.

Como é que eu vejo a morte, em particular a minha. Morrerei como toda a gente. Mas não penso nisso. Julgo que viver o dia-a-dia é, para todos ou quase todos, esquecer a morte. Procuro não me lembrar da morte, embora tenha a certeza de que ela um dia se vai lembrar de mim. Consta que o norte-americano Richard Feynman, Prémio Nobel da Física de 1965, terá dito no leito de morte, para onde o tinha lançado uma doença fatal: «Não gostaria de morrer segunda vez. É tão aborrecido.” Sei que há quem acredite na reencarnação, mas eu acredito que a vida é única, isto é, para cada indivíduo, irrepetível. Só conto morrer uma vez. Se me pedem para pensar nesse momento, direi que, gostando de viver (costumo dizer que, se aparecer morto, investiguem bem porque não fui eu), espero que ela seja o menos má possível, isto é, tardia e, tanto quanto possível, indolor. De facto, temo mais o eventual sofrimento do que propriamente a morte.

Sei que a morte não se faz sem sofrimento, próprio e alheio. Já sofri a morte de familiares e amigos, que me fizeram passar um mau bocado. A morte não passa do fim da existência de um ser humano, o que está longe de significar o fim da existência da espécie humana, e procuro tirar consolação desse facto. Somos mortais, mas a nossa espécie terá, se tiver juízo, um longo futuro à sua frente, tal como já tem um prolongado passado. O mundo não acaba quando cada um de nós acabar: de nós ficam os genes, passados à prole (embora não seja obrigatório tê-la), assim como ficam, para usar um dito proverbial, as árvores que plantámos e os livros que escrevemos. Fica, espero, alguma memória de nós, tanto biológica como cultural. Confesso que sou um optimista: acredito que o mundo pode ser melhor. Eu, que prefiro a república à monarquia, acharia insuportável ser governado por um velhinho D. Afonso Henriques. Tal como na biologia, na sociedade a morte é também uma condição de renovação e de progresso.

Embora não tendo a certeza (um cientista não deve ter certezas!), estou em crer que não sobreviverei à minha morte, a não ser no sentido de deixar alguma memória. Olho para uma minha ficha bibliográfica na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, que já tive a honra de dirigir, e leio “1956 -  “. Sei que, um dia, um bibliotecário preencherá o espaço depois do tracinho, podendo desde já assegurar que o ano será posterior a 2022. Consegui, felizmente sem dificuldades de maior, chegar à idade que tenho. Em séculos anteriores dificilmente isso teria acontecido. Conforta-me bastante a ideia – espero que não me acusem de vaidade – de que os meus escritos me sobrevivam, devidamente catalogados e acessíveis, para memória futura. As palavras sobrevivem ao corpo. 

A pergunta é inevitável: mas não acredita que a alma sobreviva ao corpo? Embora a palavra “alma” continue a fazer sentido para muitos, prefiro chamar “mente” ao que dantes se chamava “alma.” E, neste quadro, a minha resposta é clara: não, não acredito. Estou em crer que a minha mente precisa do meu corpo, muito em particular do meu cérebro. E não fico nada aborrecido com isso. Quando não estiver cá o meu cérebro e, portanto, a minha mente, haverá, com certeza, outras que mais do que compensarão a falta da minha. E elas, poderão, ainda que de uma forma grosseira, comunicar com a minha através do que deixei. Os livros mostram-nos que, num certo sentido, é possível “comunicar com os mortos.” Como disse o astrofísico e comunicador de ciência americano Carl Sagan, em Cosmos, ao abrir um livro, “ouve-se a voz de outra pessoa – talvez alguém que já tenha morrido há milhares de anos.”

Quem sou eu? Um ser humano nascido em 1956, quando os genes do meu pai e da minha mãe se mesclaram. Eu não me lembro desse meu big bang, mas tenho boas razões para acreditar que já fui um minúsculo óvulo fecundado. Cresci e apareci. Decerto que o meu “eu” é mais que uma colecção de células, mas não existe sem essa colecção de células, entre as quais muitos neurónios. A questão da identidade pessoal, associada à questão da consciência, é para a ciência ainda hoje um mistério. Mas não desistimos de procurar mecanismos cerebrais, isto é, neuronais, da consciência. A minha consciência foi-se fazendo, à medida que os meus neurónios se multiplicavam. Eu sou ainda a criança e o jovem que fui, mas sou, definitivamente, uma outra pessoa, moldada pela experiência da vida, resultado de inúmeros desejos e incidentes. A experiência da vida – a passagem pelo tempo em imprescindível interacção com o ambiente – causa efeitos, uns bons e outros nem tanto.

Envelhecemos, que é como quem diz desgastamo-nos. Esse é um fenómeno natural, é uma condição da matéria da vida, tal como de outra matéria. A biologia faz o que pode para contrariar esse processo de desgaste: as células, cada uma delas com o nosso ADN, vão sendo restauradas; vão-se dividindo ao longo da nossa vida; e algumas, porque defeituosas, são mesmo eliminadas para não causarem danos. Ao fim de algum tempo, a maioria das nossas células foram renovadas. Umas renovam-se mais rapidamente do que outras. O curioso é que as células do cérebro são das mais estáveis, em suporte da ideia de que esse órgão é um bastião da nossa identidade (em menor escala, o mesmo se passa com o coração, em suporte da ideia antiga que o coração é o nosso centro). À medida que o tempo passa, o processo de renovação celular torna-se, porém, cada vez mais difícil. O médico francês Jacques Ruffié, autor de O Sexo e a Morte (Dom Quixote, 1987) diz que “o envelhecimento é um fenómeno banal, constante”, isto é, em qualquer idade estamos a envelhecer e não apenas quando somos velhos. A morte, quando não sucede por um azar de qualquer tipo, é um resultado natural do envelhecimento. Como disse o sociólogo francês Edgar Morin, que já tem mais de cem anos, o envelhecimento é “a vanguarda da morte.” A morte é inevitável porque não podemos evitar envelhecer.

Embora possa parecer estranha a quem nunca ouviu falar dela, vale a pena acentuar a relação profunda que há entre o sexo e a morte. O sexo é aquilo que permite aos seres vivos como nós ultrapassar a morte, ao prolongar a espécie no futuro, continuando a “árvore da vida”. Nos seres sexuados é maior a miscigenação dos genes (uma bela “invenção” da evolução!) e com isso as possibilidades de êxito evolutivo. Mas a morte é a contrapartida obrigatória. Ruffié abordou essa dicotomia no referido livro: “A morte é um fenómeno biologicamente necessário, sem o qual a sexualidade estaria sem objectivo”. E, noutro passo: “O sexo e a morte são dois tributos que pagamos ao progresso evolutivo. São dois fenómenos complementares, mas surpreendentemente contrastados. O primeiro ocorre na alegria, no prazer, e na esperança; o segundo no sofrimento, no horror e no vazio”. Na mitologia grega já coexistiam Eros e Tanatos, os deuses da vida e da morte. Pareciam radicalmente opostos, mas a biologia moderna veio relacioná-los.

Na mesma linha de Ruffié, escreveu o geneticista francês Albert Jacquard, em A Herança da Liberdade: da animalidade à humanitude (Dom Quixote, 1988), sobre a morte: “Esse desaparecimento é necessário: é a contrapartida da capacidade de procriar. (…) Os seres que dispõem do poder singular de fazer um a partir de dois, de dar existência ao imprevisível, de criar, têm o privilégio de serem únicos, o que implica que um dia desapareçam. O procriador tem de dar lugar ao procriado. Todos os seres ditos ‘sexuados’ partilham este poder e pagam o preço do desaparecimento: mas só o homem tem consciência disso.” A permanente consciência da perenidade é o nosso drama.

Com o avanço da tecnologia, temos tentado uma miríade de possibilidades para prolongar cada vez mais a nossa vida, atenuando o drama, sem o eliminar: a moderna medicina, fundada no conhecimento da biologia, tem conseguido com sucesso adiar a morte, mas sem nunca a vencer. Há quem acalente o ingénuo sonho de descobrir o elixir da imortalidade, ou, pelo menos, o elixir da longa vida, que permita viver mais do que viveu a francesa Jeanne Calment, falecida aos 122 anos, a mais longeva de todos os humanos, pelo menos nos tempos mais recentes. Mas, como diz Ruffié, “a imortalidade biológica continuará para sempre a ser um mito fora do nosso alcance.” A morte nunca será vencida, porque não o pode ser.

Embora sabendo que a Natureza impõe a morte, sei bem que o homem quer resistir tanto quanto pode ao seu destino. Resiste fisicamente e resiste mentalmente. Também sei que não somos só um conjunto de células e que a ciência não explica todas as dimensões do humano. Somos seres espirituais e essa nossa espiritualidade sobressai especialmente no confronto com a morte. Temos a capacidade de acreditar na transcendência e longe de mim a ideia de apoucar a crença no divino e a esperança de vida eterna que tantos partilham. O facto de eu não precisar de me agarrar à ideia de vida eterna não implica que não entenda que outros precisem dela. De facto, a maioria dos seres humanos não podem passar sem Deus. Somos todos iguais, todos membros da espécie Homo sapiens, mas também todos diferentes. Possuímos uma estrutura biológica semelhante, mas temos experiências sociais e culturais bastante distintas. E necessidades diversas.

Repito, para que a ideia se instale: Do ponto de vista científico, a morte não é um problema, é uma solução. Mas, do ponto de vista filosófico e, obviamente, também teológico, é mesmo um problema: a morte é vista como um mal. Por que razão é considerada um mal? Porque será a ausência de eternidade individual um mal? Não poderia o contrário da morte, a eternidade, ser um mal maior, uma vez que acabaria por se tornar um tédio infinito? Há, na história das ideias, alguns argumentos sobre a morte que gostaria aqui de invocar. Os dois são muito antigos. Um deles é de Epicuro, o famoso filósofo grego dos séculos IV e III a.C., que, na sua Carta a Meneceu, nos sossega: “Portanto, o mais atemorizador dos males, a morte, nada é para nós, porque, quando existimos, a morte não está presente e, quando a morte está presente, não existimos. Deste modo, ela nada é nem para os vivos nem para os mortos, porque os primeiros não a têm e os últimos já não existem.” E o outro é de Lucrécio, o filósofo romano do século I a.C., autor no poema latino De Rerum Natura, em português “Da Natureza das Coisas” (também o nome do blogue que mantenho, com outras pessoas, há muitos anos): “Vê, olhando para trás, como nada significou para nós toda a porção de eternidade que se passou antes do nascer. Eis o espelho que a Natureza nos apresenta do tempo futuro, do que virá depois da nossa morte. Surge nisto algum horror, alguma tristeza? Não é tudo muito mais seguro do que o sono?”

Termino, voltando a Jacquard: “Que eu nasci, é um facto; que morrerei, é uma certeza, mas não é ainda um facto. Entre estes dois acontecimentos – um real, perfeitamente situado no tempo, o outro virtual, com data imprevisível – envelheço. A minha idade é a medida do esgotamento progressivo do tempo que os separa.”  O  meu pai, que não tinha uma grande instrução e que infelizmente já faleceu, dizia, na velhice: “Quem já muito andou não tem muito para andar.” Ser temporalmente limitado é uma condição de cada ente humano e a consciência disso é uma manifestação de sabedoria.

sábado, 4 de janeiro de 2025

O FENÓMENO DA CONSCIÊNCIA É COMO O DA EXISTÊNCIA DO UNIVERSO - DAVID LODGE

Faleceu David Lodge, o polifacetado escritor britânico que manteve na ficção uma ironia finíssima e absolutamente corrosiva. A diversidade humana é irmanada nas fraquezas e nas safadezas, no que esconde e no que revela, nos pensamentos inconfessáveis e nos comportamentos desconcertantes. A sua vasta galeria de retratos que desenhou oferece-nos possibilidades inesperadas para encaixarmos as nossas pequenas e grandes misérias.

E isso só nos faz bem! Põe-nos na linha! Ou, pelo menos, devia...

Sobretudo se formos do tipo de nos levarmos muito a sério, de nos acharmos criaturas bem sucedidas, de nos vermos no topo do mundo. A passagem pela universidade, como professor, ajudou Lodge a "captar" este tipo e a dissecá-lo.

Pessoas que, como ele, remexem na consciência humana, trazendo à luz o que queremos enfiar à força na cave escura, são muito precisas para, através de uma substancial irracionalidade, dar alguma racionalidade ao real.

Sobre a consciência, disse Lodge a Luís Faria, jornalista do Expresso em 2016 (ver aqui):

"Escreveu um romance inteiro sobre a questão da consciência. Na altura, estava a estudar o assunto. 

Sim, a inteligência artificial. Pareceu-me bom material para ficção. Usei-o de modo a que houvesse um debate, entre um romancista e um cientista cognitivo, sobre se era possível descrever a consciência. Foi muito instrutivo para mim. Quando comecei, não sabia nada sobre inteligência artificial. Aprendi um pouco. Mas não acho que a ciência cognitiva alguma vez explique por completo o fenómeno da consciência. Há filósofos que dizem taxativamente que não. É como a existência do Universo".

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

NÃO VALE A PENA CONTINUAR COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL

O jornal Ensino Magazine fez menção ao último postal de Natal de Jorge Paiva (que reproduzimos aqui), terminando com uma declaração constante nesse postal: “não vale a pena continuar com a atividade cívica de educação ambiental”. 

É uma declaração absoluta, definitiva, última, que sei ter sido pensada durante largo tempo, penosamente. E escrita em consciência, com os pés assentes na terra.

É, portanto, de tê-la em devida conta. De facto, Jorge Paiva dedicou (dedica) a sua vida, como investigador e professor, à educação ambiental: na universidade e nas escolas; junto de alunos, de professores, de políticos, da sociedade; em trabalhos académicos e na comunicação social; no país e fora dele; nos laboratórios, nas salas de aula e de conferência e nos muitos terrenos que conhece ao milímetro.

Sabe, portanto! Quem estiver ao seu nível que o desdiga.

domingo, 29 de dezembro de 2024

DOZE LIVROS DE CIÊNCIA DE 2024

Meu artigo na imprensa regional:

Esta é a minha escolha dos doze melhores livros de ciência publicados em Portugal em 2024. Cinco deles são de autores portugueses. A ordem é a alfabética do apelido do primeiro autor.

1 - Acemoglu, Daron e Johnson, Simon. Poder e Progresso. A nossa luta milenar pela tecnologia e prosperidade. Temas & Debates.
Os dois autores, professores de Economia no MIT, receberam o Prémio Nobel da Economia em 2024. O primeiro autor já tinha sido autor, com James Robinson, de O Equilíbrio do Poder e do best-seller Porque Falham as Nações, ambos publicados pela Temas e Debates. O tema do livro é a evolução da ciência e tecnologia e o seu impacto na economia e na vida.

2 - Alves, Miriam e Kono, Yara. As Peças Mais Pequenas. Tudo o que vemos é feito do que não vemos. Planeta Tangerina.
Uma jornalista portuguesa e uma ilustradora brasileira fizeram um belo livro para crianças que explica que «tudo o que vemos é feito do que não vemos».  Na ciência, o essencial é invisível aos olhos: os átomos formam tudo à nossa volta e dentro de nós. Mas, mais do que descrever a ciência, a primeira autora fala do processo de descoberta. E a segunda ilustra o texto esplendidamente.

3 - Cardoso, Vítor. O Eclipse do Tempo. Guia para entrar em buracos negros. Oficina do Livro.
Um astrofísico português com grande currículo no estudo de buracos negros, professor no Instituto Superior Técnico e no Instituto Niels Bohr em Copenhaga, escreveu uma obra de divulgação sobre o tempo e esses «monstros cósmicos» que engolem tudo. O prefácio é do Nobel da Física Reinhard Genzel, o astrofísico alemão que ajudou a determinar a massa do superburaco negro que está no centro da nossa galáxia, e o posfácio de Emanuele Berti, presidente da Sociedade Internacional de Relatividade Geral e Gravitação.

4 - Carvalho, António Galopim de. Ao Romper da Aurora. Âncora.
O professor jubilado de Ciências da Terra da Universidade de Lisboa, autor de muitos outros livros, reúne aqui muitos dos textos, à volta da sua vida, que escreveu para as redes sociais. O título explica-se porque o professor gosta de escrever de madrugada. O resultado é um longo depoimento pessoal de um dos nossos maires divulgadores de ciência. No final do ano, Galopim de Carvalho publicou ainda, na mesma editora, Aprender a Gostar de Saber.

4 - Conway, Ed. Mundo Material. Uma história substancial do nosso passado e futuro. Temas e Debates.
Um premiado jornalista de economia inglês realizou uma viagem pelo mundo para nos contar os materiais que se extraem dom interior do nosso planeta e o modo como são transformados para formarem os objetos de que precisamos. Por exemplo, de onde vem o silício dos nossos chips de computadores? Vem da areia...

5 - Kissinger, Henry; Mundie, Craige; e Schmidt, Eric. Génesis.  Inteligência artificial, esperança e o espírito humano. Dom Quixote.
Um ensaio que fornece uma ampla matéria de reflexão sobre os prementes desafios da Inteligência Artificial, da autoria do político e estadista norte-americano falecido em 2023 com cem anos, de um ex-diretor da Microsot e de um ex-CEO da Google. O primeiro e o terceiro autores já tinham analisado o assunto no seu livro, com Daniel Huttenlocher, A Era da Inteligência Artificial e o Nosso Futuro Humano (também na Dom Quixote).

7 - Levitt, Dan. De Que Somos Feitos? A história dos átomos do seu corpo, desde o Big Bang até ao jantar de ontem, Lua de Papel.
Este livro de um realizador norte-americano de documentários científicos conta-nos como temos dentro de nós quer partículas do Big Bang quer átomos cozinhados nas estrelas. Somos essencialmente água e, na molécula de água, o hidrogénio veio do Big Bang e o oxigénio das estrelas. Escrevi o prefácio.

8 - Marçal, David. Como Perder Amigos Rapidamente e Aborrecer Pessoas com Factos e Ciência. Gradiva.
O bioquímico e comunicador de ciência que escreve regularmente no Público disseca o mundo de hoje, largamente irracional, numa perspectiva  racional, baseada em factos e na ciência, neste livro com um título irónico.  No mundo polarizado em que vivemos, é natural que alguns dos seus textos, bem escritos e documentados, sejam polémicos. Escrevi o prefácio.

9 - Osório, Luís. A Última Lição de Manuel Sobrinho Simões. Contraponto.
O conhecido jornalista e escritor fez uma longa entrevista a um dos cientistas portugueses mais conhecidos, Manuel Sobrinho Simões, médico patologista da Universidade do Porto, especialista em cancro da tiroide e fundador do IPATIMUP.

10 - Reich, David. Quem Somos e Como Chegámos até Aqui. O ADN antigo e os novos avanços científicos acerca do passado. Gradiva.
Um especialista norte-americano em genoma antigo conta como a decifração do genoma está a revelar a nossa ancestralidade. As diferenças biológicas entre as populações actuais pode ser compreendida pode ser mais bem compreendida à luz dos mais recentes desenvolvimentos.

11 - Rovelli, Carlo. Há lugares no mundo onde a gentileza é mais importante do que as regras. Objectiva.
O físico italiano Rovelli é um dos nomes cimeiros da divulgação da Física. Este livro, que surge na sequência de outros sucessos do mesmo autor, contém um conjunto de crónicas originalmente saídas na imprensa italiana. Na sua diversidade, exibem os dotes de escrita do autor, para além claro do seu conhecimento da ciência e da história e da sua sensibilidade para ligar a ciência à arte.

12 - Tyson, Neil de Grasse e Walker, Lindsay. Para o Infinito e Mais Além. Uma viagem de descoberta cósmica. Gradiva
O norte-americano Tyson, autor de Astrofísica para Gente com Pressa (também na Gradiva), é um dos divulgadores de ciência mais brilhantes da era pós Carl Sagan, com quem aliás se encontrou em jovem. Walker, por sua vez, é uma comunicadora de ciência na área do audiovisual. Juntos fizeram um belo volume ilustrado que nos conduz aos mistérios do cosmos, dos quais os maiores estão bem longe da Terra. A tradução é minha.

Ficaria mal comigo se não juntasse em nota final os meus dois livros deste ano, o primeiro para pré-adultos e adultos e o segundo para os mais pequenos: Toda a Física Divertida, Gradiva, com desenhos de José Bandeira, e, com Luísa Ducla Soares e Daniel Completo, No Mundo dos Porquês. A ciência cantada e contada, Canto das Cores, com desenhos de Cristina Completo.

Boas Festas com boas leituras!

sábado, 28 de dezembro de 2024

ROBERT HOOKE E A FORÇA ELÁSTICA

Meu prefácio ao livro Lições de Potentia Restitutiva ou da Mola, de Robert Hooke, com introdução, tradução e notas de Isadora Monteiro, Instituto de Estudos Filosóficos, 2024: 

O físico inglês Robert Hooke, contemporâneo de Isaac Newton, é uma das maiores figuras da Revolução Científica, isto é, da criação da ciência moderna que ocorreu nos séculos XVI e XVII. Entre as suas principais contribuições para a ciência está a descoberta da lei da força elástica, que hoje tem o seu nome: a força de deformação de uma mola é directamente proporcional ao deslocamento da sua posição de equilíbrio. Esta lei – descoberta segundo o próprio em 1660, anunciada em 1676 sob a forma de u m anagrama em latim e publicada em 1678 no livro Lições de Potentia Restitutiva ou Da Mola, escrito no original em inglês  e publicado pela Royal Society de Londres, cuja primeira parte está aqui traduzida - é de enorme relevância não só para a física, mas também para a ciência de materiais, que só haveria de surgir no século XIX. Foi encontrada por Hooke por via experimental, sendo por isso um dos primeiros resultados obtidos por aplicação do método científico. De facto, muitas outras forças têm, para além da elástica, comportamento perto do equilíbrio que é descrito pela lei de Hooke.

Experimentalista exímio, Hooke notabilizou-se para além das experiências com molas, por ter observado ao microscópio a estrutura da cortiça, tendo sido o descobridor das células da vida. O seu livro Micrographia (1665), também publicado pela Royal Society, é um dos monumentos maiores da edição científica. Hooke estudou óptica, aprimorando o microscópio e defendendo uma teoria ondulatória da luz. Outros instrumentos passaram pelas mãos de Hooke, que foi curador de experiências na Royal Society: o relógio portátil de corda (que pode ser visto como uma aplicação prática da lei de Hooke), o barómetro (que ele inventou de raiz), o higrómetro e o anemómetro (sem os quais não haveria meteorologia), etc. Aperfeiçoou a bomba de vácuo, usada pelo seu colega Robert Boyle, também activo na referida sociedade, para estudar gases, e o telescópio, que usou para descobrir a primeira estrela binária e para se aperceber das rotações de Marte e de Júpiter. Foi, pode dizer-se, um homem dos «sete instrumentos», consciente de que os instrumentos eram absolutamente essenciais para a «nova ciência». Dotado de uma curiosidade excepcional, gostava de saber tudo e mais alguma coisa. O seu biógrafo Stephen Inwood, chamou-lhe o «homem que sabia demais» (The Man who new too much. The inventive life of Robert Hooke, 1635 – 1703, Macmillan, 2003).

Para além de experimentalista, foi um especulador. A ele se deve a ideia da força da gravitação universal, mais tarde matematizada de forma  exacta por Newton na lapidar fórmula da gravitação universal que ele apresentou nos Princípios Matemáticos de Filosofia Natural (1687). H oke f oi pioneiro na descrição quantitativa desta força que não só nos prende ao solo como liga os planetas, prioridade que Newton ignorou. A aversão entre os dois sábios era profunda, o que não admira já que o autor dos Princípios não ficou conhecido por cultivar as relações com os seus colegas. A disputa mais acesa entre os dois teve a ver precisamente com a precedência a respeito da lei da gravitação universal. Mas já se tinham oposto em questões de óptica: Newton defendia uma teoria corpuscular da luz, oposta à ondulatória. Há uma frase famosa atribuída a Newton - «Se vi mais longe é porque estava aos ombros de gigantes» - que está, segundo alguns historiadores de ciência, directamente relacionada com o autor da lei da força elástica de uma maneira nada lisonjeira para Newton. Não havendo retratos de Hooke, conta quem conviveu com ele que era atarracado. Ora, Newton, numa disputa sobre a luz, com aquela frase estava a chamar-lhe anão. Não podia estar aos «ombros» dele…

Esta primeira tradução em português de Hooke é uma bem-vinda contribuição para a cultura científica portuguesa. Devíamos ter na nossa língua versões dos textos mais importantes da história da ciência e esta tardou. Quem estiver de fora da história da ciência desta época, ao ler esta tradução de Isadora Monteiro, muito bem prefaciada e anotada, poderá aprender dois factos pouco conhecidos.

Primeiro, que a elasticidade das molas foi aproveitada por Hooke, pendurando pesos em molas, para tentar medir a diminuição da força da gravidade com o afastamento da Terra, embora sem resultados inequívocos. Segundo, e mais espantoso, Hooke ensaiou nesta obra uma teoria microscópica da elasticidade, baseada na ideia de partículas constituintes da matéria em perpétuo movimento. No fundo, apresentou aqui a primeira teoria cinética da matéria. A teoria cinética dos gases é, tal como a ciência dos materiais, do século XIX, estando associado a nomes da termodinâmica e mecânica estatística como Ludwig Boltzmann e James Clerk Maxwell. Porém, a ideia de calor como forma de energia, associada ao movimento de partículas, é de Hooke, muito antes de haver termodinâmica!

Sendo um polímata, o sábio inglês contribuiu também para a geologia e para a biologia. A Terra, segundo ele, era um planeta muito mais antigo do que a Bíblia dava a entender, tendo sofrido transformações lentas (por exemplo, as montanhas tinham-se elevado em processos naturais) e tinha havido extinção de algumas espécie, no longo percurso da evolução biológica. E ele foi ainda um exímio colaborador do arquitecto Christopher Wren, um dos sócios fundadores da Royal Society em 1660, na reconstrução de Londres depois do grande incêndio de 16 66.

Vivia-se no tempo em que a física, sob o nome de filosofia natural, se emancipava da filosofia. E desde logo se percebeu (o filósofo Francis Bacon terá sido o primeiro, no início do século XVII) que a filosofia natural ia ter um tremendo impacto na vida humana. Conhecendo a Natureza era possível minimizar alguns dos seus perigos. 

Hooke foi, portanto, um génio. É um pequeno texto de um grande génio que o leitor encontrará a seguir. Vai ler um texto genial, onde a observação, a experimentação e o raciocínio se cruzam, guiados por uma intuição criativa. O autor não via as partículas, que Demócrito na Grécia Antiga tinha imaginado, mas não hesitou em usá-las no seu modelo do mundo material. Ao ler este ensaio o leitor estará a assistir a um «passo de gigante» na história da física, ainda que o seu autor tivesse fisicamente uma pequena estatura.

Coimbra, 28 de Agosto de 2 024

O 25 DE ABRIL DE 1974 E A CIÊNCIA EM PORTUGAL

 Meu capítulo do livro "Revoluções em Flor. 50 anos depois do 25 de Abril de 1974," Coord. Michela Graziani e Annabela Rita, Edifir, Edizione Firenze, 2024:

A Revolução de 25 de Abril de 1974 fez florescer a ciência em Portugal. De facto, o Estado Novo – o regime autoritário que durou desde 1933 até 1974, sob a liderança primeiro de António de Oliveira Salazar (1889-1970) e depois, a partir de 1968, de Marcello Caetano (1906-1980) – não foi grande defensor da ciência. Esse facto é comprovado não apenas pelo reduzido investimento realizado nessa área, mas também pela demissão compulsiva e nalguns casos mesmo a obrigação de exílio de vários cientistas opositores ao regime. De facto, embora a indústria que presidiu ao desenvolvimento do século XX se tenha baseado inteiramente na ciência, Salazar ansiava apenas que Portugal fosse «o magnífico pomar e a esplêndida horta da Europa» e defendia que, «se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à indústria» (Fiolhais 2018: 997).

Não admira, por isso, que a industrialização portuguesa tenha sido tardia: só no ano de 1963, depois dos outros países industriais europeus, o valor do produto industrial português ultrapassou o da agricultura. Alberto Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, afirmou num dos seus discursos: «A ciência e a técnica […] são monopólio dos povos ricos e altamente desenvolvidos». Caetano, que entre outros cargos foi ministro das Colónias num dos governos presididos por Salazar, afirmou que a investigação científica teria relevância no «Ultramar», onde era preciso explorar os importantes recursos locais, mas não teria mais do um papel subalterno na denominada Metrópole, o Portugal europeu. A ciência devia ser criada pelos países ricos e, apenas quando necessário, aproveitada pelos países pobres.

No entanto, apesar desse clima político avesso à ciência no regime deposto em 1974, sempre se ensinou ciência em Portugal nos vários níveis de ensino, em particular as universidades, destinadas a formar as elites, e que eram por isso ideologicamente vigiadas. Os professores com ideias contrárias ao regime de partido único eram afastados se as expressassem (cf. Fiolhais; Marçal 2017). Não importava a qualidade ou a relevância do ensino ou da ciência que faziam, mas a sua fidelidade política. Durante a Segunda Guerra Mundial (Portugal permaneceu neutro durante esse conflito), temendo uma influência estrangeira, Salazar não permitiu mais do que vistos de trânsito a cientistas e a outros intelectuais que fugiam os horrores da guerra na Europa. Por outro lado, se é certo que os governos do Estado Novo envidaram alguns esforços de desenvolvimento com base na ciência e na tecnologia, não é menos verdade que esses esforços foram tardios e insuficientes para proporcionar o progresso do país, que permaneceu ao longo de largas épocas economicamente na cauda da Europa. Esses esforços incidiram mais na ciência aplicada do que na fundamental. 

Assim, por exemplo, em 1946, foi inaugurado em Lisboa o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), que ajudou na construção de numerosas obras públicas, e, em 1961, foi inaugurado em Sacavém, perto de Lisboa, o Laboratório de Física e Engenharia Nucleares (LFEN), que incluía um reactor nuclear de investigação, destinado a formar cientistas e técnicos que ajudassem o funcionamento de projectadas centrais nucleares (estas nunca vieram a ser construídas, tendo o reactor de Sacavém sido desactivado em 2019, quando já estava obsoleto). Na medicina, área na qual havia uma longa tradição em Portugal, o governo não valorizou devidamente o até agora único Nobel português nas áreas das ciências – o neurologista António Egas Moniz (1874- 1955), que ganhou o prémio na área da Fisiologia ou Medicina no ano de 1949 «pela sua descoberta do valor terapêutico da leucotomia em certas psicoses» (ele já antes tinha sido proposto para o Nobel por outra técnica que desenvolveu, a arteriografia cerebral). Um alto« funcionário do governo português chegou a chamar-lhe depreciativamente «meio-prémio Nobel», só porque o prémio foi dividido por outro médico, o suíço Walter Rudolf Hess, por trabalho feito de forma independente noutro campo da neurologia (cf. Fiolhais 2005). O Estado procurava nos maiores hospitais do país acompanhar os grandes progressos que se desenrolaram na medicina ao longo do século XX, mas tratava-se, excepto em casos raros, da aplicação de ciência vinda do estrangeiro.

Um forte condicionante do desenvolvimento da ciência era o défice de educação por parte da população em geral. De facto, a educação para além da elementar era apenas acessível a uma reduzida fatia da população. E, por isso, a taxa de analfabetismo foi, ao longo do século XX, uma das maiores da Europa. Este estado de coisas só começou a mudar significativamente no início dos anos de 1970 com a reforma educativa do então ministro da Educação José Veiga Simão (1929-2014), professor de Física da Universidade de Coimbra que tinha sido o primeiro Reitor da Universidade de Lourenço Marques, em Moçambique, onde deixou obra notável. Ele pugnou pela democratização do ensino, incluindo o superior, tendo criado durante o seu mandato outras universidades para além da de Coimbra, fundada em 1290 (originalmente em Lisboa), e das de Lisboa e Porto, criadas em 1911, logo após a implantação da República, que durou escassos 16 anos, derrubada que foi pelo golpe militar de 28 de Maio de 1926, o início de um longo tempo ditatorial.

No dia 25 de Abril de 1974 eclodiu a liberdade (curiosamente, o dia 25 de Abril em Itália é também celebrado como o dia da libertação, mas a liberdade italiana é 29 anos mais antiga). O golpe militar português, agora democrático, perpetrado por jovens oficiais descontentes com a guerra que travavam em três colónias africanas (Guiné, Angola e Moçambique, na altura chamadas «províncias ultramarinas»), redundou numa explosão libertária celebrada com alegria nas ruas (cf. Léonard 2024). Acabou a polícia política e a censura. Começaram a ser preparadas eleições livres para uma Assembleia Constituinte, que tiveram lugar em 25 de Abril de 1975. A noiva Constituição, que conferia aos cidadãos de forma equalitária direitos, liberdades e garantias foi promulgada em 1976. Os propósitos da Revolução podiam ser resumidos a três verbos, apregoados nesses tempos que foram naturalmente de algum caos político: Descolonizar, Democratizar e Desenvolver.

Com o novo regime, não só se resolveu rapidamente a questão colonial em favor da autodeterminação dos povos africanos (declararam a sua independência em 1975), como se estabeleceu um ambiente de liberdade, indispensável à criação intelectual, tanto nas artes como nas ciências (em particular, nas ciências sociais e humanas, que se encontravam bastante limitadas no regime anterior), e de igualdade, bem patente no alargamento do acesso dos jovens à escolaridade (o ensino superior aumentou drasticamente com a criação de novas escolas, tanto universidades como institutos politécnicos). Também se percebeu que o desenvolvimento do país exigia uma maior aposta na investigação científica, que não tinha de privilegiar a investigação aplicada, mas antes de imitar o que faziam outros países mais desenvolvidos. A ciência e tecnologia foram particularmente impulsionadas pela entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, antecessora da actual União Europeia (UE), logo no início de 1986, quando Mário Soares (1924-2017) era primeiro ministro. Uma parte, ainda que relativamente pequena, dos fundos de coesão que Portugal passou a receber da UE foi aproveitada para proporcionar maior formação de pessoas e para a criação de algumas infraestruturas académicas, científicas e tecnológicas.

Um ano decisivo na história recente da ciência em Portugal foi o de 1995, ano em que foi criado, no primeiro governo do primeiro-ministro António Guterres (n. 1949, hoje secretário geral das Nações Unidas), o Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta atribuída a José Mariano Gago (1948-2015), professor de Física do Instituto Superior Técnico, em Lisboa (cf. Fiolhais 2011). Mariano Gago, ministro em dois governos de Guterres e em dois de José Sócrates (nestes últimos, juntando o Ensino Superior à Ciência e Tecnologia, por serem áreas directamente relacionadas), foi, sem dúvida, a figura de mais relevo na ciência em Portugal nos últimos 50 anos. Ele pôs em prática com notável sucesso um plano de modernização e internacionalização da ciência portuguesa, anunciado no seu Manifesto para a Ciência em Portugal (cf. Gago 2023) de 1990. Criou em 1996 a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), herdeira de organismos como a Junta Nacional para a Investigação Científica e Tecnológica (JNICT) e o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), e de outros mais antigos, que se destinava a apoiar financeiramente a formação académica, a prossecução de projectos de investigação e o equipamento de laboratórios e institutos científicos. Montou o sistema de ciência e tecnologia que basicamente continua hoje vigente, com uma rede de mais de 300 centros de investigação que cobrem praticamente todas as áreas do conhecimento, não esquecendo a promoção da cultura científica de modo a consciencializar a sociedade da necessidade da ciência (criou, para este efeito, a Agência Ciência Viva, que foi nos seus primeiros tempos inovadora, mas que ultimamente tem estado quase parada). 

Foi criado um procedimento de avaliação internacional da actividade desses centros. No ano de 2000 surgiram os primeiros Laboratórios Associados, centros de investigação de maior escala cuja missão era ajudar o Estado em áreas específicas de desenvolvimento, acrescendo aos Laboratórios do Estado como o LNEC que já existiam. Foi procurada a internacionalização da ciência portuguesa. Portugal, que tinha entrado para a Organização Europeia de Investigação Nuclear (CERN) em 1985, entrou para a Agência Espacial Europeia (ESA) em 2000 e para o Observatório Europeu do Sul (ESO) em 2001, juntando-se nessas áreas à maioria dos países europeus (cf. Fiolhais 2013). No lado do sector privado, pontificaram a Fundação Calouste Gulbenkian, criada em 1956 na sequência do testamento de um filantropo arménio, que em 1961 instalou o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, e a Fundação Champalimaud, surgida em 2004 por vontade de um filantropo português, que instalou o Centro de Investigação para o Desconhecido (CID), em Lisboa. Tanto o IGC como o CID desenvolvem investigação avançada nas áreas da biologia e da medicina, procurando o seu cruzamento.

Para verificar a enorme transformação que o país realizou na ciência no regime democrático instaurado em Abril de 1974, basta olhar para a PORDATA, uma vasta base de dados sobre Portugal e a Europa que foi criada por uma outra fundação mais recente, a Fundação Francisco Manuel dos Santos (cf. PORDATA). Pode-se aí ver que, em 2022 (último ano para o qual existem dados oficiais), havia em Portugal quase 60.000 investigadores, medidos pela unidade de «equivalente a tempo inteiro», dos quais 26.500 no sector privado, ao passo que em 1982 (quando, com uma mudança constitucional, acabou o Conselho da Revolução, formado apenas por militares, que era um resquício da Revolução de 1974), eles não chegavam a 5000: portanto, o número de investigadores aumentou de mais de dez vezes em 40 anos.

Três medidas da produtividade científico-tecnológica reconhecidas internacionalmente são a formação de novos doutores, a publicação de artigos científicos e o registo de patentes:

1. Em 2022 foram concluídos em Portugal 2317 doutoramentos: portanto, nos 40 anos que mediaram entre 1982 e 2022, o número de novos doutorados aumentou quase 20 vezes. É de destacar o facto de a maior parte dos novos graus doutorais estarem desde há anos a ser atribuídos a mulheres, reflectindo a extraordinária ascensão social das mulheres que a Revolução de Abril proporcionou. O país atingiu o máximo na formação anual de doutores em 2014, tendo ocorrido depois disso um ligeiro declínio.

2. Quanto à publicação de artigos o progresso português foi ainda mais notável. Se no ano de 1982 os investigadores a trabalhar em Portugal (alguns deles estrangeiros, dada a internacionalização da ciência portuguesa) publicaram apenas 388 artigos, em 2022 esses investigadores (agora com maior proporção de estrangeiros) publicaram 30.078 artigos, quase 80 vezes mais. A maior parte desses artigos referem-se às áreas das ciências exactas e naturais – com 11.557 publicações – seguindo-se a área das ciências médicas e da saúde, em crescimento rápido nos últimos tempos – com 11.692 publicações. As áreas das humanidades e artes e das ciências sociais, esta última muito forte no número de novos doutoramentos, podem não estar convenientemente representadas nestas estatísticas, por haver numerosos artigos saídos em revistas nacionais, muitos deles escritos em português, que não estão indexadas nas bases de dados internacionais.

3. Por último, considerando as patentes, tendo o país partido de um patamar muito baixo, houve algum crescimento, ainda que claramente insatisfatório: se, no início dos anos de 1980, não havia pedidos de patentes na chamada Via Europeia (mais exigente que a Via Nacional), em 2022 já houve 312 pedidos, dos quais foram concedidas 67 patentes. Estes números são pequenos, considerados os padrões internacionais.

O crescimento da ciência e da tecnologia, inequivocamente medidos com essas métricas, só foi possível graças a enorme aumento da escolaridade da população, designadamente na habilitação com o ensino superior (hoje existem mais de 400.000 estudantes no ensino superior, numa população de cerca de dez milhões de habitantes), e obviamente, a um grande salto no financiamento das actividades de investigação, realizadas quer por entidades públicas quer por entidades privadas. Em 1982 só se investiu na ciência e tecnologia 0,3% do PIB – Produto Interno Bruto (dos quais 0,1% do lado das empresas), mas em 2022 o valor desse investimento já foi de 1,7% (dos quais 1,1% do lado das empresas), portanto quase seis vezes maior. É difícil, devido à inexistência de estatísticas oficiais, indicar a percentagem de investimento em ciência e tecnologia em 1974, o ano da «Revolução dos Cravos», mas algumas estimativas indicam que ele deve ter sido aproximadamente de 0,1%, o que significa o crescimento de 17 vezes nos últimos 50 anos (cf. Fiolhais 2023). O crescimento foi maior em valores absolutos porque o PIB nesse mesmo período cresceu (o PIB per capita passou de 9,5 mil euros em 1974 para 23,6 mil euros em 2022).

A Revolução de Abril iniciou, portanto, um boom da ciência e da tecnologia em Portugal. Mas não nos devemos impressionar pelo crescimento relativamente ao passado (Portugal estava, de facto, muito atrasado em 1974 relativamente aos outros países europeus): os valores portugueses atrás indicados devem ser lidos à luz de comparações internacionais, em especial com os outros países europeus. O valor mais recente do investimento de Portugal em ciência e tecnologia, 1,7% do PIB, está claramente aquém da média europeia de 2,2% (um conjunto de cinco países – a Bélgica, a Suécia, a Áustria, a Alemanha e a Dinamarca – estão na liderança, todos eles com valores superiores a 3%). Mas alguns dados são bem menos abonatórios para Portugal: os fundos do Orçamento de Estado português para a ciência representam apenas 0,4% do PIB, um número semelhante ao do início dos anos 1990, em nítido contraste com a média europeia desse índice, que é de 0,7% (cf. Fiolhais 2023). 

No número de investigadores Portugal compara bem com a média europeia, após a necessária divisão pelo número de pessoas activas (pessoas entre os 25 e os 64 anos), estando a participação feminina bem acima da média europeia: em Portugal as mulheres são maioritárias em muitos ramos da ciência. No número de novos doutores em cada ano, apesar do esforço realizado, Portugal está ainda abaixo dessa média; não existem, por isso, doutores a mais. Na proporção do número total de doutores pelo número de pessoas em idade activa, o país ainda permanece abaixo da média europeia. E, no número de artigos científicos por habitante, Portugal está um pouco acima da média europeia, o que já não acontece se considerarmos os artigos que estão no top 10% dos mais citados, um índice de relevância científica em que o país se situa abaixo daquela média: estes dados mostram que os investigadores portugueses aproveitam bem o investimento que recebem. Onde Portugal tem, porém, um problema maior nas comparações internacionais é no registo de patentes: a posição nacional ainda é na cauda da Europa. 

E o mesmo se aplica a outros índices que traduzem o impacto da ciência na economia, como, por exemplo, o capital de risco em percentagem do PIB (normalmente esse capital serve para comercializar bens ou serviços de base científico-tecnológica) ou a exportação e produtos de média e alta tecnologia relativamente ao total de exportações (cf. European Commission 2022). O Global Innovation Index de 2021, que aglomera um conjunto diverso de índices de inovação, dá a Portugal o 31.º lugar no mundo, que corresponde ao 18.º lugar da EU (cf. WIPO 2021). Há muito caminho para percorrer. Para isso, é absolutamente necessário aumentar o investimento português em ciência e tecnologia aproximando-o da média europeia. Ora esta média é móvel: a UE ambiciona investir em média 3,0% do PIB nesse sector no ano de 2030 e será muito difícil para Portugal cumprir esse objectivo.

A ciência, embora tendo crescido significativamente em Portugal desde 1974,« conheceu um abrandamento, designadamente na última década e meia. A intervenção de resgate financeiro em 2011 realizada por três entidades – a troika, constituída pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE) – foi um duro golpe para a ciência portuguesa do qual tem custado a recuperar, apesar de ter havido uma saída do controlo da troika logo em 2014. A ciência portuguesa poderia, de facto, estar melhor. Indicam-se aqui alguns dos possíveis caminhos de melhoria:

– A ligação entre as instituições de ensino superior tem de melhorar (nunca descurando evidentemente a ciência fundamental), uma vez que ela ainda não é suficientemente fluida. Por sua vez, as empresas têm de dinamizar mais as actividades de investigação e desenvolvimento no seu seio, multiplicando alguns bons exemplos que já existem, como a Bial e a Hovione, na área farmacêutica, ou a Critical Software, na área da informática.

Nos países mais avançados da Europa cerca de dois terços do investimento em ciência e tecnologia é da responsabilidade do sector privado, mas em Portugal essa proporção é de pouco mais de metade, a acreditar nos valores das estatísticas oficiais (há razões para crer que algumas empresas estarão a inflacionar esses valores, devido à existência de benefícios fiscais que premeiam esse tipo de investimento). Acontece que a rede de empresas portuguesas é constituída maioritariamente por Pequenas e Médias Empresas (PME), não sendo óbvia para muitos gestores de empresas desse tipo a necessidade de investir em ciência e tecnologia: concentrando-se no curto prazo, preferem muitas vezes procurar no mercado soluções «chave na mão», em vez de desenvolverem as suas próprias soluções, em processos de inovação.

– Além disso, o Estado tem de investir mais no sistema de ensino superior público, que está largamente subfinanciado se considerarmos os padrões internacionais. Mediante a celebração de contratos-programa o governo poderia encorajar a actividade científica dentro das universidades e institutos politécnicos. De facto, o sistema científico nacional montado por Mariano Gago privilegiou a criação de instituições privadas sem fins lucrativos para a execução rápida dos fundos provenientes da UE, quando o conhecimento científico estava maioritariamente localizado no corpo docente universitário. A razão invocada foi a existência de estruturas administrativas pesadas, integradas com a máquina da administração pública.

Um dos destinos do reforço de investimento devia, nos dias de hoje, ser a contratação de um número considerável de jovens doutores para as instituições públicas de ensino superior, seja como professores seja como investigadores. De facto, muitos jovens doutores portugueses em várias áreas têm vivido situações precárias, sujeitos a sucessivos contratos a termo, vendo-se alguns na contingência de emigrar para países onde o seu talento é mais reconhecido.

As escolas superiores públicas em Portugal têm sido financiadas segundo critérios assentes essencialmente no número de estudantes, não sendo premiada a produtividade científico-tecnológica, medida pelo número de novos doutores, pelo número e qualidade dos artigos científicos e pelo número e utilidade das patentes. Se acaso o fosse, elas não hesitariam em empregar mais membros da que já foi chamada «geração mais qualificada de sempre».

– Para além das universidades e institutos politécnicos, Portugal não dispõe, como a Espanha, a França e a Alemanha, de uma rede pública, espalhada pelo país, de instituições capazes de fornecer saber especializado para diferentes assuntos. Os Laboratórios de Estado, os Laboratórios Associados e, depois destes, os Laboratórios Colaborativos, que visam uma maior colaboração com empresas, não parecem ser capazes de satisfazer todas as necessidades que se colocam. Por isso terá de aumentar o apoio a esses laboratórios, em particular os Laboratórios de Estado, mais antigos, mas que têm sido preteridos nas políticas recentes em favor dos Laboratórios Associados e Colaborativos. É nítido desde há décadas o desinvestimento em instituições como o já referido LNEC, na área da engenharia civil, e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), na área da saúde pública, que podem e devem ajudar o Estado na formulação e concretização de algumas das suas políticas. Se tivesse mais gente e mais meios, o INSA, com sede em Lisboa e uma delegação no Porto, poderia ter desempenhado um papel mais activo durante a crise da COVID-19.

Note-se que a distribuição de instituições científicas no território nacional é muito desigual, registando-se uma enorme concentração em Lisboa e Porto, maior em Lisboa do que no Porto. Os processos de regionalização e de descentralização têm conhecido sucessivos obstáculos.

Vale a pena comparar, ainda que de forma resumida, o panorama da ciência e tecnologia em Portugal e na Itália. São ambos países do Sul da Europa, mas a Itália tem maior tradição científica, podendo dizer-se que foi lá que, com Galileu, no século XVII, se iniciou a Revolução Científica e foi lá também que a Revolução Industrial, no século XIX, encontrou um terreno fértil. Conclui-se dos dados internacionais publicados na PORDATA pela Fundação Francisco Manuel dos Santos que a Itália tinha, em 2022, 6,6 investigadores por mil activos, ao passo que Portugal tinha 11,8 (cf. PORDATA). Dos investigadores portugueses 41,9% eram mulheres, ao passo que dos italianos elas representavam 36,1%. Conclui-se também desses dados:

1. Portugal tem, nos últimos tempos, formado comparativamente mais novos doutores do que a Itália. Em 2021 finalizaram o doutoramento 20,1 pessoas por mil habitantes, ao passo que em Itália foram 13,7 por mil. Mas um facto curioso é que a Itália desceu ligeiramente do valor que tinha em 2004 (14,7 por mil), ao passo que Portugal subiu muito relativamente a esse ano (8,5 por mil). Os dois países são modelares na quota feminina desses doutoramentos, estando Portugal um pouco à frente: em 2021 tinha 50,9% enquanto a Itália tinha 48,9%.

2. Em 2020, os investigadores em Itália publicaram 85.419 artigos científicos e técnicos, o que dividido pelos 58,9 milhões de habitantes dá 145 artigos por cem mil habitantes, ao passo que Portugal produziu 281 por cem mil habitantes. No entanto, se olharmos apenas para a fatia de 10% de publicações mais citadas, concluímos que a Itália bate Portugal.

3. Portugal tinha, em 2017, 142 pedidos de patentes a Organização Europeia de Patentes (EPO), ao passo que a Itália tinha 4148 pedidos. Para uma comparação justa, é necessário dividir estes valores pelo número de habitantes, um factor de seis a favor de Itália. É claro que Itália tem um considerável avanço.

Em 2022, a Itália apresentava um investimento em ciência e tecnologia, inferior ao português, medido em percentagem do PIB, é de 1,3% (do qual 0,8% de empresas), portanto abaixo do investimento português. Deve acrescentar-se que a Itália é um país com maior riqueza do que Portugal: o seu PIB per capita mais recente, em 2023, foi cerca de 1,4 vezes o português. A favor da Itália está o facto de ter investido, em ciência e tecnologia, no ano de 2021, 0,65% do Orçamento do Estado, um valor nitidamente superior ao português. E também o facto de ultrapassar Portugal no capital de risco, em percentagem do PIB, e na exportação de produtos de média e alta tecnologia em percentagem do total de produtos exportados (cf. European Commission 2022). O Global Innovation Index de 2021 (cf. WIPO 2021) coloca a Itália no 29.º lugar do mundo, pouco acima de Portugal (curiosamente, no lugar 30, entre a Itália e Portugal está a Espanha, um país latino e do Sul como os seus vizinhos do ranking).

Resumindo: no sector da ciência e tecnologia, tirando as questões das patentes, do capital de risco e da exportação de produtos de média e alta tecnologia, isto é, das aplicações da ciência, Portugal está hoje acima da Itália, levando em conta a diferença das respectivas populações. A ascensão portuguesa nesse sector foi mais rápida e também mais recente do que a italiana. A Itália teve muito mais prémios Nobel em ciências que Portugal: Camillo Colgi (Medicina, 1906), Guglielmo Marconi (Física, 1909), Enrico Fermi (Física, 1938), Daniel Bovet (Medicina, 1957), Emilio Segrè (Física, 1959), Giulio Natta (Química, 1963), Salvador Luria (Medicina, 1969), Renato Dulbecco (Medicina, 1975), Carlo Rubbia (Física, 1984), Rita Levi-Montalcini (Medicina, 1986), Riccardo Giacconi (Física, 2002), Mario Capechi (Medicina, 2007), e, recentemente, Giorgio Parisi (Física, 2021). São treze nomes (seis na Medicina, seis na Física e um na Química) em contraste com um único português, mais do dobro do factor de seis esperado a partir da diferença de população. O 25 de Abril português foi, de facto, muito posterior ao 25 de Abril italiano, e isso ajudou decerto ao desenvolvimento. E a Itália esteve, noutra data de Abril, 18 de Abril de 1951, na génese da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), que haveria de dar origem primeiro à CEE (Tratado de Roma, em 1957) e depois à UE (Tratado de Maastricht, em 1993).

Tudo somado, apesar de ser ainda insatisfatório, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia é uma das marcas maiores que ficaram no processo de democratização iniciado em Portugal a 25 de Abril de 1974. Continuar, com determinação, o caminho encetado até agora significa cumprir uma das esperanças que se abriram há meio século: a esperança de um futuro mais prospero para o maior número de pessoas. Com efeito, hoje, no tempo da chamada «economia do conhecimento», sabemos, em Portugal como no resto da Europa e do mundo, que o bem-estar social provém do melhor conhecimento da Natureza, através de processos de descoberta científica e de inovação tecnológica.

Na Revolução portuguesa, que agora faz 50 anos, feita a Descolonização e assegurada a Democratização, permanece em larga medida por concretizar o anseio associado ao terceiro dos famosos D: o do Desenvolvimento.

BIBLIOGRAFIA

European Commission (2022). European Innovation Scoreboard 2022 Annex B Performance per indicator. Brussels. Disponível em “https://research-and-innovation.ec.europa.eu/system/ files/2022-09/ec_rtd_eis-2022-annex-b.pdf”https://research-and-innovation.ec.europa.eu/system/files/2022-09/ec_rtd_eis-2022-annex-b.pdf (consultado em maio de 2024).

Fiolhais, Carlos (2005). Curiosidade apaixonada. Lisboa: Gradiva.

Fiolhais, Carlos (2011). A ciência em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Fiolhais, Carlos (2013). História da ciência em Portugal: da Universidade Medieval à entrada na União Europeia, passando pelos Descobrimentos e pelo Iluminismo. Lisboa: Arranha-Céus.

Fiolhais, Carlos; Marçal, David (2017). A Ciência e os seus inimigos. Lisboa: Gradiva.

Fiolhais, Carlos (2018). “Anti-industrialismo”. In Dicionário dos Antis, coord. José Eduardo Franco. Lisboa: Imprensa Nacional: 995-998.

Fiolhais, Carlos (2023). “Prefácio”. In O Futuro da Ciência e da Universidade, coords. Maria de Lurdes Rodrigues, Jorge Rodrigues da Costa. Coimbra: Almedina: 13-19.

Gago, José Mariano (2023). Manifesto para a Ciência em Portugal. Lisboa: Gradiva [1ª edição 1990].

Léonard, Yves (2024). Breve História do 25 de Abril. Lisboa: Edições 70.

PORDATA. Estatísticas sobre Portugal e Europa. Disponível em “https://www.pordata.pt/”https:// www.pordata.pt/ (consultado em maio de 2024).

WIPO – World Intellectual Property Organization (2021). Global Innovation Index, Disponível em https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/en/wipo_pub_gii_2021.pdf  (consultado em maio de 2024).

BOAS FESTAS COM O PINGUIM E O OVO

 

Com os votos de Boas Festas e Bom Ano, envio uma imagem do Telescópio Espacial James Webb da NASA, divulgada em Julho passado, para assinalar os dois anosde recepção de  imagens daquele instrumento. O Pinguim e o Ovo são duas galáxias em interacção a cem mil anos luz de distância de nós (não é muito, a Andrómeda está a 2,5 milhões de anos-luz). 

O olho do Pinguim é o centro de uma galáxia em espiral muito deformada pelas forças gravitacionais. O Ovo é uma galáxia elíptica com estrelas mais antigas. A interacção do Ovo com o Pinguim fas acender novas estrelas neste último, provavelmente com novos planetas. O fundo está polvilhado de galáxias,  também eles com sistemas planetários.

Como disse o Padre Teilhard de Chardin, paleontólogo e filósofo, «À escala do cósmico só o fantástico pode ser verdadeiro.» Desejo a todos um novo ano cheio de descobertas fantásticas! Abraço cósmico do

Carlos Fiolhais

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

UM CRIME OITOCENTISTA

Artigo meu num recente JL:

Um dos crimes mais famosos do século XIX português foi o envenenamento de três crianças, com origem na ingestão de amêndoas e de um bolo recebidos pelo correio na sua casa da Rua das Flores, no Porto, na Páscoa de 1870. Uma delas, Mário Sampaio, de treze anos, veio a falecer. As crianças foram logo assistidas pelo seu tio, o lente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto Vicente Urbino de Freitas (1849-1913), que lhes mandou administrar clisteres. As últimas palavras de Mário foram: «O clister do tio matou-me e eu não quero morrer.» O médico não tardou a ser preso, sendo as suspeitas agravadas por um alibi falso sobre a autoria da expedição da encomenda (pretendeu estar em casa do escritor Adolfo Coelho em Lisboa).

Ao fim de um processo muito publicitado foi, em 1893, condenado a oito anos de prisão celular, seguidos de 20 anos de degredo. O apelo feito pela defesa não resultou: levou até ao agravamento da pena para nove anos. O professor Urbino de Freitas ficou preso na Penitenciária de Lisboa até 1901, quando uma amnistia parcial lhe permitiu iniciar o degredo em Angola, onde gozou de alguma liberdade, voltando a exercer a sua profissão. Um perdão do rei D. Carlos concedeu-lhe em 1905 total liberdade, ainda que no exílio: rumou ao Brasil, onde também exerceu medicina. Finalmente, em 1913, já depois da instauração da República, regressou a Portugal. Visitou então o Porto, onde já não ia há duas décadas, mas morreu repentinamente passadas escassas semanas de pneumonia.

Decisivo no desfecho do processo foi o aparecimento de uma testemunha credível que afirmou que Urbino tinha sido o mandante do envio da encomenda fatal. A acusação também se serviu do facto de ele poder lucrar com o crime, uma vez que a sua mulher, Maria das Dores, filha de um rico negociante de linhos, ficaria a única herdeira. De facto, já tinha havido um outro envenenamento na família: José António de Sampaio Júnior, irmão de Maria das Dores, morrera em circunstâncias estranhas no início de 1890, com a assistência de Urbino, tendo mais tarde surgido a acusação, não provada após os exames dos restos do cadáver, de que ele seria responsável por mais essa morte. A sogra de Urbino foi veemente em tribunal: «Foi este homem o envenenador do meu querido Mário. Como foi o do nosso José. Juro-o, Sr. Juiz! Juro-o, Srs. Jurados!»

Urbino de Freitas, formado em Medicina na Universidade de Coimbra, era um conceituado clínico antes do processo, com consultório montado no centro do Porto. Era, tal como o seu irmão, João António de Freitas Fortuna, amigo de Camilo Castelo Branco, que se suicidou em 1890 dois meses depois do crime da rua das Flores (o irmão era muito próximo do escritor, a ponto de os três estarem sepultados no mesmo jazido no cemitério da Lapa no Porto). Camilo expressou o desejo de que Urbino fosse inocentado. Outros escritores, como Raul Brandão e Júlio Dantas, também escreveram sobre o assunto. Alguns médicos e químicos de Coimbra defenderam Urbino, assim como peritos estrangeiros consultados pela defesa, ao contrário de um grupo de médicos e químicos do Porto que examinaram as provas toxicológicas no corpo de Mário Sampaio: havia, de facto, substâncias tóxicas. 

Nessa altura a química forense estava a dar os seus primeiros passos entre nós, inaugurando um frutuoso caminho de colaboração entre justiça e ciência. Os jornais da época contaram o drama. Foram escritos vários livros, uns contra e outros a favor de Urbino, mais contra do que a favor. E ainda hoje o processo faz correr rios de tinta. Será Urbino inocente (ele, a sua mulher e o irmão sempre sustentaram essa inocência) ou culpado (como as provas apresentadas em tribunal indiciaram)?

Dois livros muito esclarecedores sobre o caso foram escritos pelo professor de Engenharia José Manuel Martins Ferreira, que ensinou na Universidade do Porto e hoje ensina na Universitet i Sorost Norge, na Noruega. Num processo de «arqueologia literária» levado a cabo nos alfarrabistas portuenses, coleccionou tudo o que achou sobre o crime e consultou o processo nos arquivos judiciais. O minucioso resultado encontra-se nos livros Urbino de Freitas. Um médico ou um monstro? (Húmus, 2020) e Urbano de Freitas. As manobras de bastidores, este acabado de sair na mesma editora. 

Se o primeiro livro trazia na capa o retrato de Urbino em vestes doutorais, o segundo traz o jovem Urbino com capa de estudante, acabado de se formar na Lusa-Atenas. Os dois têm muitas fotografias e um design muito cuidado da responsabilidade da editora de Vila Nova de Famalicão, que tantas boas obras tem produzido. O segundo livro, que, como é explicado pelo autor, pode ser lido independentemente do primeiro, traz novas e importantes achegas. Há sempre coisas a descobrir sobre crimes, mesmo que antigos. Um conjunto de cerca de 200 cartas que estiveram na posse do irmão de Urbino, Freitas Fortuna, falecido em 1899. Graças à família, o autor pôde aceder a essa documentação que ele expõe com rigor, incluindo cuidadas transcrições dos documentos mais relevantes. 

Há cartas de vários tipos: algumas são relativamente banais por documentarem a estratégia da defesa que é bem conhecida (o irmão foi o grande mentor dessa defesa, tendo nisso gastado parte da sua fortuna: curioso o nome dele), outras são cartas que o autor chama confidenciais porque mostram relações corruptas com jornalistas que pediam dinheiro em troca de notícias favoráveis, e ainda outras são secretas, porque tratam do arrolamento de testemunhas falsas, o que é incriminado por lei. O desenrolar do processo é apresentado de modo a ir aumentando o suspense nos leitores, tal como num bom livro policial. No final, fiquei com a ideia de que Urbino não pode ser considerado inocente. Tem demasiados rabos de palha.

Saber-se-á agora tudo sobre este «crime do século»? Sabe-se mais, mas não se sabe tudo. Por que razão um homem inteligente como Urbino se enredou nesta trama que tantas dores lhe trouxe assim como à sua família (curioso o nome da mulher)? Teria tido cúmplices? Esta história dava um bom filme da Netflix se houvesse por aí um produtor atento.

A MONUMENTAL OBRA POMBALINA


Meu artigo recente no As Artes entre as Letras:

Acaba de sair do prelo da Imprensa da Universidade de Coimbra a segunda edição, em capa mole, do primeiro tomo do primeiro volume da Obra Pombalina, que vai reunir não só a obra escrita pelo punho de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), que se tornou marquês de Pombal em 1769, como as várias obras que ele directamente inspirou e para a qual teve a colaboração de diversos coautores. Os directores da Obra são o historiador José Eduardo Franco e os filósofos Pedro Calafate e Viriato Soromenho Marques, o primeiro da Universidade Aberta e os segundos da Universidade de Lisboa. O livro vindo a lume, que é a primeira parte dos Escritos de Inglaterra (1738-1739), foi coordenado pela historiadora Ana Leal Faria, também da Universidade de Lisboa. O plano geral das Obras Completas, que são resultado do projeto «Pombal Global», prevê 14 tomos e 50 volumes, um monumental empreendimento que só será possível graças ao esforço de uma enorme equipa se tiver suficiente apoio mecenático.

O tomo I, Escritos de Inglaterra (1738-1743), inclui a correspondência diplomática quando o futuro marquês de Pombal (doravante só Pombal) era «enviado» (hoje diríamos «embaixador»), do rei D. João V (1689-1750, rei 1706) em Londres, na corte de Jorge II. Faltam ainda três volumes para completar o tomo, o que significa que a compilação de manuscritos redundou praticamente num volume por ano. O tomo II, em 6 volumes, intitular-se-á Escritos de Áustria (1745-1747), referindo-se ao período em que Pombal foi «enviado» do rei português à corte de Maria Teresa em Viena de Áustria. Em 1750, quando D. João V morreu e o seu filho D. José I (1714-1777) foi entronizado, ele tornou-se Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra (1700-1755). Esse período será coberto pelo tomo III, Negócios Estrangeiros, em dois volumes. Após o Terramoto de 1755, Pombal padrou a ser Secretário de Estados dos Negócios Interiores do Reino, lugar em que permaneceu até o rei morrer, em 1777, quando ocorreu a chamado «Viradeira», isto é o repúdio das ideias e métodos de Pombal. Perante a retirada do rei da cena pública, assustado com o grande desastre natural, Pombal tornou-se um homem de Estado, diríamos hoje «primeiro-ministro», com amplos poderes. As Obras Completas Pombalinas preveem para esse período dez tomos, do IV ao XIV, com um total de 32 volumes, agrupados por temas: Administração Colonial, Arquitectura, Política e Práticas Sociais, Perseguição dos Jesuítas e da Nobreza, Igreja Católica, Assistência, Economia. Justiça e Ordem Pública, Aparelho Militar, Educação e Epistolografia Diplomática). O tomo XV apresentará a Apologia de Pombal, escrita no seu retiro perto da vila com o mesmo nome, em que se defende das acusações que lhe foram movidas, e, finalmente, o tomo XVII será uma Biografia, contendo documentação mais pessoal. Louvando a visão deste grande projeto, só espero que ele atinja bom porto.

O livro já publicado contém, para além da uma introdução geral em que Pombal e as Obras Completas Pombalinas são apresentadas pelos directores, uma introdução às Cartas de Inglaterra, da autoria da coordenadora do primeiro tomo. Depois dos critérios da educação, surge o grosso do volume contendo cartas de ofício redigidas pelo enviado e dirigidas a António Guedes Pereira (?-1747), que era Ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos e que interinamente ocupava o cargo de Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, enquanto o titular Marco António de Azevedo Coutinho (1688-1750) estava ausente em Inglaterra (Coutinho, que era primo afastado de Pombal, foi o seu antecessor nas funções diplomáticas em Londres), e ao próprio Azevedo Coutinho, quando ele reocupou as suas funções em Lisboa. Depois há um conjunto de cartas a D. Luís da Cunha (1662 –1749), que na altura era enviado do rei português a Paris depois de o ter sido em Londres, Madrid e Haia (este diplomata é um dos homens mais notáveis do reinado joanino) e outro conjunto de cartas a João da Mota e Silva ou Cardeal da Mota (1685–1747), o poderoso conselheiro de D. José, o homem forte do regime, embora não ocupasse nenhuma secretaria de Estado. Finalmente, há algumas cartas diversas, algumas delas dirigidas a outros enviados portugueses na Europa. Conclui-se que havia uma rede de contactos entre os enviados joaninos em várias capitais da Europa, que não passava necessariamente por Lisboa. De facto, no reinado de D. João V existiu um notável conjunto de diplomatas, que representavam um reino que, sendo rico na altura graças ao ouro do Brasil, queria ombrear com as maiores potências europeias.

 Pombal não tinha o brilho retórico nem o poder de concisão de D. Luís da Cunha, sendo os seus escritos por vezes repetitivos, para não dizer confusos, e enfadonhos (D. João V não queria, por vezes, ouvir as suas cartas!). Apesar de ter sido um bom organizador, não se pode dizer que Pombal tenha tido grande êxito como diplomata: a Inglaterra era uma velha aliada, desde o tempo do tratado de Windsor, mas pouco ligava às pretensões de Portugal, colocando os seus interesses acima de tudo. Mas foi em Londres que Pombal começou a sua formação de homem de Estado, aprendendo a ser diplomata – ninguém nasce diplomata - e conhecendo um outro tipo de regime, a monarquia constitucional (implantada com a Revolução Gloriosa de 1688), e outros tipos de negócios (como os da Companhia das Índias), para não falar dos avanços científicos e filosóficos que ocorriam na Inglaterra (basta pensar em Newton e Locke). Foi em Londres que Pombal começou a recolher os ensinamentos que o iriam tornar um governante esclarecido. Pombal foi um «estrangeirado» que aprendeu primeiro em Londres e depois em Viena como se fazia na Europa desenvolvida antes de tentar fazer cá dentro.

 

VASCO DA GAMA NOS 500 ANOS DA SUA MORTE


Meu artigo no mais recente As Artes entre as Letras:

Se não se sabe ao certo quando nasceu Luís de Camões, apontando-se para 1524, já se sabe bem quando morreu Vasco da Gama, o comandante da armada que descobriu o caminho marítimo para a Índia em 1498: foi a 24 de Dezembro de 1524, vai agora fazer 500 anos, em Cochim, na Índia. É uma coincidência curiosa que entre o poeta e o navegador celebrado por ele no seu poema maior exista esta coincidência de datas. O poema Os Lusíadas, publicado em 1572, canta essa viagem e Camões não se poupa a encómios quando refere Gama: «nobre Gama» (o que era literal, pois Gama veio da pequena nobreza alentejana), «forte Gama», «ilustre Gama», «sublime Gama», «felice Gama», «forte capitão», «valeroso capitão», «capitão ilustre», «nosso capitão esclarecido», «sábio capitão», «facundo capitão», «grande capitão», etc. A Gama, após ter consumado a sua proeza com a chegada a Calecut, é dada por Camões a glória, no canto X, de contemplar, na utópica Ilha dos Amores, a «máquina do mundo», mostrada pela ninfa Tétis: «Vês aqui a grande máquina do Mundo,/ Etérea e elemental, que fabricada/ Assim foi do Saber, alto e profundo,/ Que é sem princípio e meta limitada.»

Camões não foi o único poeta a celebrar Gama. Logo em 1580 o italiano Torquato Tasso fez um soneto onde não só enaltece Gama como fala de Camões. O romântico alemão Friedrich Hölderlin fala de Gama num poema em anda em torno de Colombo. O mesmo se passou com o francês Stéphane Mallarmé, um precursor da modernidade poética. Entre os portugueses, Fernando Pessoa enaltece Gama na Mensagem, o seu único livro publicado em vida, Camilo Pessanha fala das naus de Gama que realizaram a viagem à Índia, e Miguel Torga tem um poema intitulado «Vasco da Gama». Nos nossos dias, Os Lusíadas foi uma inspiração para Gonçalo M. Tavares escrever a sua epopeia Uma Viagem à Índia, onde não há deuses e o viajante é um homem comum.

No reportório de música erudita, encontra-se uma ópera em cinco actos intitulada L'Africaine, composta em 1865 pelo alemão Giacomo Meyerbeer sobre libreto do francês Eugène Scribe, que tem como personagem Vasco da Gama. O famoso tenor Plácido Domingo interpretou esse papel em 1989 na San Francisco Opera. Por sua vez, outro compositor do século XIX, o francês Louis-Alberta Bourgault-Ducoudray, compôs em 1872 uma ópera também baseada na vida e viagens de Gama.

A viagem da primeira chegada dos europeus por mar à Índia, protagonizada por Vasco da Gama entre 1477 e 1479, foi a primeira das três viagens que ele fez àquela região. Foi uma aventura temerária em que só regressaram duas das quatro embarcações que partiram e onde pereceram cerca de dois terços dos tripulantes (o próprio irmão mais velho de Vasco da Gama, Paulo da Gama, que comandava uma das naus, morreu no regresso, tendo ficado sepultado na ilha Terceira, nos Açores). Como prémio pelo seu sucesso, Vasco da Gama recebeu do rei D. Manuel I, que tinha ordenado a expedição, o título de «almirante-mor dos Mares das Índia», o título de Dom, duas vilas (Sines e Vila Nova de Milfontes), e uma renda de 300 mil réis anuais. Não foi longo o seu repouso, pois em 1502 voltaria a partir, por ordem do mesmo rei, para a Índia, agora à frente de uma armada maior, a fim de reforçar a presença lusa no Oriente. Instalou uma feitoria portuguesa em Cochim, cidade onde mais tarde viria a morrer. Foi nessa segunda viagem que cometeu o acto bárbaro de incendiar um navio de peregrinos muçulmanos.

Finalmente, após um longo período de descanso e após ter sido, em 1919, nomeado Conde da Vidigueira, fez uma terceira viagem à Índia em 1524, na condição agora de vice-rei (o terceiro) e governador (o sexto). O seu filho Estêvão da Gama (tinha o mesmo nome do pai de Vasco da Gama) haveria de ser também governador. Pouco depois de chegar à Índia, o vice-rei Vasco da Gama foi apanhado pela malária, que o vitimou em poucos dias. Não teve tempo para desenvolver a sua acção política. Sepultado na Igreja de São Francisco em Cochim, foi transladado para a Vidigueira em 1539 e, em 1880, para o Mosteiro dos Jerónimos, onde hoje está.

Para assinalar os 500 anos da morte de Vasco da Gama, o Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta organizou em Sines em 16 de Dezembro, em colaboração com o município local o simpósio «Vasco da Gama. Construtor da Globalização». O título tem cabimento. A primeira viagem de Gama permitiu iniciar a «carreira da Índia», que assegurou o comércio de especiarias do Oriente para Ocidente por mar. Até então existia já um comércio de especiarias, mas ele pelo menos em parte tinha de ser feito por via terrestre (o canal de Suez só foi aberto no final do século XIX). A presença muçulmana no Médio Oriente e na Ásia Menor dificultava ou impedia mesmo a ligação entre a Europa, a Índia e o Extremo Oriente. Vasco da Gama mudou as rotas do comércio global, afirmando-se como um dos protagonistas maiores do que se chama «primeira globalização» (outros são Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, o segundo a chegar à Índia por mar). 

Basta ler Os Lusíadas (o canto V em particular) para se perceber que a observação, a experimentação e o raciocínio, que são ingredientes essenciais do moderno método cientifico, já estavam presentes nos navegadores portugueses. Leia-se, por exemplo, esta estância: «Os casos vi que os rudos marinheiros,/ Que têm por mestra a longa experiência,/ Contam por certos sempre e verdadeiros,/ Julgando as cousas só pola aparência,/ E que os que têm juízos mais inteiros,/ Que só por puro engenho e por ciência,/ Vêem do mundo os segredos escondidos,/ Julgam por falsos ou mal entendidos.»

 

RENASCER

Por A. Galopim de Carvalho   No léxico geológico o vocábulo “palingénese”, radicado nos étimos gregos “palim” que quer dizer de novo, e “gén...