quinta-feira, 11 de setembro de 2025

EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o seguinte: “os biólogos não acreditam na teoria da evolução”. 

É, como se percebe, uma declaração desafiante cujo objectivo foi o de distinguir "crença" de "ciência", para, de seguida, explicar que a teoria da evolução não decorre de "acreditarmos" nela, porque ela está assente em factos validados pela comunidade científica. Não é uma questão de crença, mas de ciência.

Talvez, à altura, ele já tivesse percebido (eu ainda não tinha) que as palavras "acreditar, "acredito", "acreditamos", "acredita-se", haviam saído da linguagem religiosa (onde têm todo o sentido) para entrarem em força na linguagem comum e, pior, na linguagem política, jornalística e, também na linguagem académica.

Estas palavras são tão frequentemente usadas pelos meus estudantes que rara é a aula em que não tenho de retomar a explicação do Professor Alexandre Quintanilha, acrescentando que o pensamento e a acção educativa dependem do conhecimento filosófico e do conhecimento científico. Por esta ordem. E que o conhecimento filosófico também não depende de "crenças".

Se pensarmos a partir de crenças, não poderá haver escrutínio de ideias, não poderá haver crítica com vista a um entendimento comum, nem sequer ligação à realidade: cada um acredita no que acredita, segue o caminho que a sua crença lhe dita e ninguém tem nada a ver com isso.

Presumo que o Senhor Ministro da Educação, Ciência e Inovação, nunca terá ponderado este aspecto (que é, afinal, de ordem epistemológica, e manifesto na linguagem). Será por isso que usa tantas vezes as ditas palavras nas cartas que escreve aos directores e aos professores. 

Nas duas cartas que agora lhe dirige, com data de ontem, explica no que ele e a sua equipa acreditam. A saber:

- "Acredito que durante este ano daremos mais um passo para que o País tenha uma Escola Pública mais forte, mais inclusiva e mais inovadora."

- [Ser professor] "é acreditar no potencial de cada aluno, mesmo perante desafios."

- "É na sala de aula que (...) todos os alunos podem acreditar na igualdade de oportunidades".

- "Acreditamos, também, que receber bem os novos professores (...) é essencial para que se sintam parte da comunidade escolar desde o primeiro dia."

- "Porque acreditamos no poder transformador da Educação (...)"

Sendo crenças, não sou capaz de as discutir e, portanto, fico-me pela sua reprodução.

domingo, 7 de setembro de 2025

SOBRE O GRANITO E A SUA ORIGEM, NUMA CONVERSA TERRA-A-TERRA.

Por A. Galopim de Carvalho

Paisagem granítica na Serra da Gardunha.
Já dissemos que não há um, mas sim, vários tipos de rochas a que o vulgo dá o nome de granito.

Deixando este tema para outras conversas, comecemos agora por dizer que o termo granito,Na imagem: paisagem granítica na Serra da Gardunha. em sentido restrito, designa uma rocha plutónica (gerada em profundidade, na crosta), granular, rica em sílica (mais de 70%), com quartzo essencial, expresso e abundante (20 a 40%), e feldspato alcalino (ortoclase, microclina, albite). Como mineral ferromagnesiano contém, geralmente, biotite, sendo raros os granitos com anfíbolas ou piroxenas. Entre os seus minerais acessórios, destacam-se moscovite, apatite, zircão e magnetite. Esta rocha corresponde ao que, numa linguagem mais rigorosa, se designa por “granito alcalino”. O termo granito, atribuído ao italiano Andrea Caesalpino, surgiu em 1596, e radica no latim granum, que significa grão.

Imagine o leitor uma paisagem como a do norte de Portugal, essencialmente formada por granitos, xistos argilosos e grauvaques, na margem ocidental da placa litosférica euroasiática, à beira de um oceano (o Atlântico) que a separa de uma outra placa (a Americana). Como é sabido, os agentes atmosféricos (a humidade, a água da chuva, o oxigénio e o dióxido de carbono do ar e as variações de temperatura) alteram (“apodrecem”) as rochas e é essa alteração, ou meteorização, que gera a capa superficial (rególito) que dá origem ao solo.

- E quais são os materiais desta capa de alteração e do respectivo solo? – Pergunta-se.

Restringindo a resposta ao local em questão, aos principais minerais destas rochas, e à situação climática que aqui exerce a sua influência, diremos que, no granito, o feldspato altera-se, transformando-se parcial e, de início, superficialmente, em argila. Alterando-se o feldspato, os restantes grãos minerais descolam-se uns dos outros e a rocha perde coesão (esboroa-se entre os dedos). Os grãos de biotite (uma mica contendo ferro) também se alteram e dessa alteração resulta o seu aspecto “enferrujado”, o que confere à rocha exposta as cores de castanho-amarelado, que contrasta com a cor da rocha sã, acabada de cortar. O quartzo não sofre qualquer alteração, o mesmo sucedendo à mica branca (moscovite) que apenas se divide em palhetas cada vez mais pequenas e delgadas. No xisto argiloso, que além de argila tem quartzo em grãos finíssimos, microscópicos (ao nível de poeiras), tem lugar a perda de coesão destes materiais. No grauvaque acontece outro tanto, com a libertação dos seus componentes arenosos (os mesmos do granito, mas muito mais finos).

Podemos agora dizer que os rególitos e os solos desta região de Portugal têm uma fracção arenosa com quartzo abundante, algum feldspato, micas e um fracção argilosa ou barrenta que faz o pó dos caminhos, em tempo seco, e a lama, em tempo de chuva. Podemos igualmente dizer que, quando chove com certa intensidade, as águas de escorrência arrastam estes materiais, com suficiente visibilidade na componente argilosa em suspensão. Isso vê-se frequentemente nas enxurradas, nas águas barrentas dos rios e, até, no mar, frente às fozes desses rios.

As pedras (cascalho) vão ficando, em parte, pelo caminho, outras atingem o litoral e não passam daí. As areias enchem as praias, as dunas e o fundo rochoso da plataforma continental. As areias mais finas e as argilas, incapazes de se depositarem em mar de pequena profundidade, constantemente agitado pela ondulação, progridem no sentido do largo, indo depositar-se na vertente continental (onde ficam em situação instável). As muitíssimo mais finas, essencialmente argilosas, vão imobilizar-se mais longe, no fundo oceânico. Sempre que, por exemplo, um sismo abala a região, os sedimentos em situação de depósito instável na vertente desprendem-se, indo decantar sobre os já acamados no dito fundo.

Imaginemos que este processo (alteração das rochas, erosão, transporte e acumulação no mar) se repete ao longo de milhões de anos e que dele resultam alguns milhares de metros de espessura deste tipo de sedimentos. Imaginemos, ainda, que o mesmo se passa do lado de lá do Atlântico.

A tectónica global ensina-nos que este oceano, como todos os outros, ao longo da história da Terra, irá fechar-se. Isso terá como resultado o encurtamento do espaço coberto pelos ditos sedimentos que, à semelhança de um papel que amarrotamos entre as mãos, sofrerão enrugamentos, com “dobras” que vêm para cima, formado novas montanhas, e outras que vão para baixo, formando as “raízes” dessas montanhas.

É sabido que a Terra conserva grandes quantidades de calor no seu interior e que a temperatura aumenta com a profundidade, o mesmo sucedendo com pressão (dita litostática). Assim, dos sedimentos envolvidos nas citadas “raízes”, os mais superficiais ficarão sujeitos a pressões e temperaturas relativamente baixas, sofrendo ligeiríssima transformação (anquimetamorfismo), dando origem a rochas na fronteira entre as sedimentares e as metamórficas, como são o xisto argiloso, o grauvaque e, um pouco mais abaixo, a ardósia. Continuando em profundidade, com o aumento da pressão e da temperatura, mas sempre com transformações no estado sólido, formar-se-ão outras rochas francamente metamórficas, de graus progressivamente mais elevados, expressas na sequência: filádios ou xistos luzentes (uma vez que a componente argilosa se transformou em minerais que têm brilhos característicos, ”luzentes”, como a sericite, a clorite ou o talco), xistos porfiroblásticos, micaxistos e, ainda mais abaixo, gnaisses (estes representando o grau mais elevado).

A profundidades na ordem dos 30 quilómetros, a temperatura pode atingir os 800oC, e a pressão ultrapassar as 4000 atmosferas. Neste ambiente e na presença de água (toda a contida na composição das argilas) terá lugar a fusão dos minerais menos refractários (quartzo e feldspatos). Entra-se aqui no domínio do chamado ultrametamorfismo e o processo toma o nome de anatexia (do grego aná, novo, e teptikós, fundido), ou palingénese (do grego pálin, de novo, e génesis, geração), dando origem a migmatitos.

Logo que a fusão seja total, entra-se no domínio do magmatismo, com a formação de um magma que, dados os materiais envolvidos, só pode ser de composição granítica, magma que, uma vez arrefecido e solidificado, gerará um novo granito.

A história acabada de descrever nesta espécie de antevisão é a que julgamos saber contar relativamente à que, há pouco mais de 300 milhões de anos, deu origem à orogenia hercínica ou varisca e ao granito, ao xisto e ao grauvaque que nela se geraram e que marcam a paisagem do norte de Portugal. Do mesmo modo, esta história conta a de todas as paisagens afins do planeta, desde as mais antigas, com mais de 4000 milhões de anos, às mais recentes com escassos milhões.

Relativamente ao granito, a mais importante rocha magmática que forma a “ossatura” dos continentes, sabemos que o primeiro resultou de um processo de diferenciação, lenta e complexa, de uma crosta primitiva, de natureza próxima da do basalto. Sabemos também que qualquer geração de granito tem, atrás de si, outro granito e que, muitos milhões e anos depois (400 a 500, em média), renascerá numa nova geração de granito.

Esta história é, afinal, a expressão (reconhecível ao nível das paisagens da Terra) do conhecido Ciclo de Wilson (do geólogo canadiano John Tuzo Wilson (1909-1993), relativo às sucessivas aberturas e fechos dos oceanos da Terra.

Notas:

- Grauvaque – rocha sedimentar arenítica e coesa, gerada nos grandes fundos marinhos, a par dos xistos argilosos. Contém, sobretudo, quartzo (20 a 50%), feldspatos e micas. O termo foi Introduzido na nomenclatura litológica, em 1789, por Lasius, e radica no alemão grauwacke, que significa pedra cinzenta.
- Migmatito – rocha ultrametamórfica, gerada por anatexia, de que resulta uma composição granitóide, na qual uma parte foi fundida e outra, mais refractária, permaneceu no estado sólido. Situa-se na passagem das rochas metamórficas da catazona (como é o gnaisse) ao granito franco.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

CENSURA E EDUCAÇÃO NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DURANTE AS DITADURAS DE FRANCO E DE SALAZAR

A censura de livros para a infância e juventude tem um historial antiquíssimo e não há fronteiras físicas políticas, morais ou sociais que a detenham. O seu estudo é fundamental não apenas para a  compreender, mas também para lhe fazer frente. Se considerarmos que uma das funções da educação escolar é abrir (não fechar) janelas para o mundo, isso é nada menos do que fundamental.

Ramón Tena Fernández, Sara Reis da Silva e José Soto Vázquez, investigadores em Espanha e Portugal acabam de publicar uma obra, com edição da Universidade de Castilla La Mancha, sobre a censura que incidiu nesses livros em ambos os países durante a ditaduras de Franco e Salazar.
 
Passado que é o primeiro meio século desde o seu fim, são poucos os estudos sobre o tema concreto da literatura infanto-juvenil. Este livro constitui um contributo de grande valia para superar essa lacuna e, naturalmente, para incentivar a exploração de um tipo de censura particular. 
 
Nele se apresentam modos expeditos de controlo legislativo que permitiram o veto a livros, bem como temas que foram objecto primordial de atenção censória. São visados contos de fadas, banda desenhada, teatro, adaptações dos contos tradicionais... É que mais do que o género literário, era o conteúdo que importava (e continua a importar) aos censores. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

NO INÍCIO DO ANO ESCOLAR MAIS UM APELO PARA SE VOLTAR AO PAPEL E AO LÁPIS

No jornal Público de hoje foi publicada uma entrevista realizada por Andreia Sanches a um ex-ministro da educação da Suécia, país que cedo adoptou políticas de autarquização da educação escolar e de participação directa das famílias na mesma, bem como de digitalização da aprendizagem (ver, por exemplo, aqui). Mas foi também um dos países que cedo percebeu que, para manter a democracia, tinha de arrepiar caminho. Dado o grande interesse do que foi perguntado e respondido — ainda que não seja novo —, tomamos a liberdade de transcrever alguns passos do texto:

"Nos anos 1990, a Suécia era considerada um modelo em termos de Educação. Os seus alunos conseguiam lugares de destaque nas avaliações internacionais feitas regularmente pela OCDE. E várias das políticas que tornavam aquele país especial — transferência de poder para as comunidades locais, grande investimento no ensino independente, garantia da "liberdade de escolha" total às famílias — serviram de inspiração a outros. O país foi também pioneiro na digitalização da educação. As escolas foram equipadas com computadores e tablets. Livros de papel foram substituídos por manuais digitais. Mas, desde o início dos anos 2000, os resultados dos alunos começaram a piorar. Johan Pehrson, que foi ministro da Educação até Junho, sublinha que não foi só na Suécia. "Coincide com a entrada dos smartphones no mundo ocidental", e em especial na vida das gerações mais novas. E também na vida das escolas (...). 

Lembrou que, por detrás de cada aplicação nas redes sociais, há milhares de engenheiros a pensar como é que a vão tornar mais atraente para as crianças. E viciante. É por isso que a escola deve ser "uma zona livre" de smartphones e redes sociais. Mas é preciso mais.

É preciso assumir que se foi demasiado longe no uso de ecrãs nas escolas, e que, afirma, é mesmo preciso ter livros, físicos, para aprender. "Pensámos que quanto mais ecrãs, quanto mais plataformas digitais utilizássemos, melhor sistema educativo teríamos." Foi um erro, reconhece. Foi por isso que o Governo anunciou uma reforma que passa por "regressar ao essencial": ler, escrever, saber matemática, garantir calma e disciplina nas aulas... (...)

A Suécia tem muito medo de uma coisa: de não ser um país moderno. Pensámos que quanto mais ecrãs, quanto mais plataformas digitais utilizássemos, melhor sistema educativo teríamos (...). Estava errado. Estamos a voltar ao que é essencial, ao papel e à caneta, e aos livros em papel para os mais novos... Queremos ter engenheiros, os melhores e mais qualificados do mundo, queremos inteligência artificial (IA) e digitalização, mas isso é para a universidade e para depois da universidade (...).

Depois, as redes sociais estão a envenenar a geração mais jovem.

A escola é financiada pelo Estado, é o local onde as crianças de famílias desfavorecidas devem ter a oportunidade de se equipararem às outras crianças, porque a educação é a verdadeira ferramenta para tornar as pessoas independentes e prepará-las para o futuro (...). Também temos de trabalhar no sentido de os pais serem responsáveis para que as crianças tenham uma infância mais livre de smartphones. Esta era a minha visão enquanto ministro da Educação. Mas o Governo sueco continua nesta via, o que me deixa muito satisfeito (...). 

Tudo foi muito subsidiado pelas empresas tecnológicas (...) e havia uma enorme concorrência entre as duas maiores (...). Ofereceram muitas plataformas digitais, muitos computadores e ecrãs inteligentes, iPads ou similares. No início, argumentou-se que esta era uma forma de tornar o acesso a este tipo de tecnologias mais justo, porque também as crianças de famílias desfavorecidas podiam obter os seus equipamentos... Mas hoje em dia vê-se que é ao contrário, que os miúdos privilegiados têm pais que lhes tiram os smartphones e lhes põem um livro à frente e dizem: "Leiam!" (...).

É claro que se pode ter o equipamento e utilizá-lo na educação, mas tem de ter um valor acrescentado (...) no computador da escola, onde não há redes sociais e outras coisas a perturbar, e tem de haver os livros físicos, em cada disciplina (...).

Além disso, a criança deve poder ir para o pátio da escola no intervalo entre as aulas, deve encontrar-se com os seus colegas, deve discutir com eles, deve brincar, deve mexer-se para não ficar sentado, obeso e doente. É preciso conhecer pessoas, é uma forma de combater o bullying, de acabar com a solidão. Eu quero ter um dos países mais digitalizados do mundo, mas isso é para os adultos e as crianças aprenderam a usar a digitalização de forma sensata. Na Suécia, hoje, aos 15 anos, as crianças usam [ecrãs] seis horas por dia, não dormem. E não estão concentradas na sala de aula.

Depois, há 30 anos, começámos a ter um problema com aquilo a que chamamos as friskolor. Que são escolas independentes, que podem ser geridas por empresas privadas [ou fundações, ou cooperativas de pais] financiadas pelo Estado, para que os pais tenham liberdade total de escolha da escola para os seus filhos, seja pública ou privada.

O meu partido era muito favorável a isto (...) mas depois ficou demasiado desregulado e acabámos por ter um sistema escolar em que as grandes empresas ganham dinheiro com a educação, o que não é aceitável. A tendência é para reduzirem as bibliotecas, para reduzirem o equipamento necessário para fazer experiências (...). E há grandes diferenças [no investimento na educação] entre regiões (...) houve [com as escolas independentes] uma inflação das notas. Passou a ser um argumento para “vender” a escola: “Venham, porque aqui temos boas notas! Damos notas altas!"

(...) Houve aqui um cocktail negativo: o Estado entregou a educação a pequenos municípios sem capacidade (enquanto grandes municípios tiveram capacidade); houve demasiada liberdade dada a grandes empresas para gerir escolas como negócios (mas existem diferentes tipos de ONG, diferentes tipos de outros actores que não trabalham para ter lucro e têm uma boa reputação (...). 

O Estado tem de assumir mais controlo. E temos de voltar ao que é essencial. Não se aprende com um iPhone. E todas as pessoas que trabalham com crianças e estudam a forma como elas aprendem sabem que elas são muito vulneráveis, e é muito fácil ficarem muito viciadas.

A única forma de Portugal, a Suécia e todos os países semelhantes protegerem os seus valores (...) e manterem a democracia é concentrarmo-nos na educação".

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

APOROFOBIA

Amanhã começa um novo ano lectivo, pautado pela revisão da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (por Resolução do Conselho de Ministros n.º 127/2025, de 29 de agosto). Ainda que, como tenho dito neste blogue, esteja em desacordo com o destaque que nela é dado à "educação" financeira-empresarial (vindo de trás), a verdade é que as escolas (sobretudo nas pessoas dos seus directores e professores) têm autonomia para orientar a componente de Cidadania e Desenvolvimento em função dos valores que se encontram consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), constante nessa Estratégia como referência.

Mesmo que não se possa estabelecer uma relação directa entre o ensino desses valores e os efeitos desejáveis que pode ter na pessoa e na sociedade, no imediato e no futuro, não se pode também negar toda e qualquer relação, pelo que precisamos de continuar a pressupor que o trabalho curricular com base na Ética é nada menos do que fundamental.

Sem querer afirmar a ideia de que a escola tem de responder a necessidades prementes da sociedade, reconheço que, em nome do bem-comum, é sua obrigação ajudar a dirimir alguns problemas que a todos afectam. Um desses problemas, que volta para ensombrar os nossos dias, é a ameaça, em diversas frentes, à dignidade da pessoa, atentando directamente contra a democracia. 

A isto a escola pública não pode ficar indiferente. E, portanto, recusando o doutrinamento, recorrendo a "conhecimento poderoso", tem obrigação de promover a atitude de cidadania dos mais jovens. Se considerarmos, como a imprensa e resultados de eleições nos dão a ver, que a hostilização do outro que vemos como diferente está em crescendo, vale a pena oferecer aos alunos conceitos que possam ancorar essa atitude.

A minha sugestão vai, neste texto, para o conceito de aporofobia, apresentado pela filósofa espanhola Adela Cortina, no início dos anos de 1990, que deu título a um dos seus livros, tendo sido, em 2017, incluído no Dicionário da Língua Espanhola da Real Academia Espanhola e considerado, pela Fundação do Espanhol Urgente como palavra do ano.

Aporofobia provém de dois étimos gregos: áporos, que significa desamparado, miserável, indigente ou, simplesmente, pobre, e fobéo, que significa ter medo, rejeitar, hostilizar. Logo, designa a tendência de distanciamento daqueles a que se atribuem essas características. Diz Cortina que a palavra lhe surgiu ao perceber que os estrangeiros ricos e famosos tendem a ser bem acolhidos. Portanto, nem tudo pode ser explicado pela xenofobia.

A tendência aporofóbica percorre todas as épocas e lugares mas não sem contestação, o que tornou possível alicerçar as ideias de igualdade e de fraternidade, fixadas como valores éticos, no primeiro artigo da mencionada Declaração:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

Vale a pena ler uma entrevista à professora Cortina, catedrática emérita de Ética da Universidade de Valência, realizada por Irene Hernández Velasco uma vez que, lamentavelmente, nos quase cinco anos passados, não perdeu actualidade (aqui)

"Por que é importante que exista uma palavra para nomear o ódio aos sem-abrigo? Porque as pessoas precisam de dar nomes às coisas para reconhecer que elas existem e identificá-las; ainda mais se forem fenómenos sociais, não físicos, que não podem ser apontados com o dedo. Dar um nome à rejeição dos pobres permite visualizar essa patologia social, investigar as suas causas e decidir se concordamos que ela continue a crescer ou se estamos dispostos a desativá-la porque nos parece inadmissível.

A aporofobia é um fenómeno sobretudo dos nossos tempos, em que o sucesso e o dinheiro são concebidos por muitos como valores supremos? Infelizmente, sempre existiu, está no íntimo dos seres humanos, é uma tendência universal. O que acontece é que alguns modos de vida e algumas organizações políticas e económicas potenciam mais a rejeição aos pobres do que outros. Se nas nossas sociedades o sucesso, o dinheiro, a fama e o aplauso são os valores supremos, é praticamente impossível conseguir que se tratem todas as pessoas da mesma forma, que se reconheçam como seus iguais.

Como se manifesta a aporofobia na sociedade? Pode dar-nos alguns exemplos? Claro. Os imigrantes e refugiados são mal recebidos em todos os países, e alguns partidos políticos até ganham votos quando prometem fechar-lhes as portas. Tratamos com muito cuidado as pessoas que nos podem fazer favores, ajudar-nos a encontrar um emprego, ganhar eleições, apoiar-nos para conseguir um prémio e abandonamos aquelas que não nos podem dar nada disso. A sabedoria popular diz que é preciso trocar favores em provérbios como 'hoje por ti, amanhã por mim', e os pais costumam aconselhar os filhos a aproximarem-se das crianças em melhor situação. O bullying escolar é um exemplo de aporofobia (...).

De onde vem a aversão e o medo dos pobres, o que alimenta a aporofobia? É algo biológico, neuronal ou cultural? Para explicar com uma palavra bonita, é biocultural. A evolução do nosso cérebro e da nossa espécie é ao mesmo tempo biológica e cultural, ambas as dimensões estão entrelaçadas, influenciam-se reciprocamente. No caso da aporofobia, há uma base biológica, uma tendência para colocar entre parênteses aqueles que não interessam, a qual pode ser reforçada pela cultura, 
ou fragilizada se recorrermos a outras tendências, como a simpatia ou a compaixão.

Defende que a aporofobia é universal e que todos os seres humanos são aporofóbicos. Em que se baseia essa afirmação? No facto de que a antropologia evolutiva mostra que os seres humanos são animais recíprocos, dispostos a dar aos outros, desde que recebam algo em troca, seja da pessoa a quem deram, seja de outra em seu lugar. Esse mecanismo recebeu o nome de reciprocidade indireta e é a base biocultural das nossas sociedades contratuais, tanto políticas como económicas. Estamos dispostos a cumprir os nossos deveres se o Estado proteger os nossos direitos, estamos dispostos a cumprir os nossos contratos se os outros também o fizerem. Mas quando há pessoas que parecem não nos poder dar nada de importante em troca, excluímo-las desse jogo de dar e receber. Essas são as pessoas pobres, as excluídas.

As religiões têm tradicionalmente pregado em favor dos pobres. O catolicismo assegura, por exemplo, que deles será o reino dos céus (...). A crise das religiões está relacionada com a aporofobia? Mais do que crise das religiões, eu diria que, salvo exceções, vivemos em sociedades pós-seculares. Nelas, o poder político e o religioso não estão unidos, o que é excelente, porque assim o pluralismo é um facto, mas as religiões não desapareceram, continuando a ser uma fonte de vida e de sentido para muitas pessoas e para muitos grupos sociais. Até os seus valores, juntamente com outros, estão na raiz dos valores da ética cívica desses países. Quanto ao cristianismo, ele efetivamente aposta em todos os seres humanos e no cuidado da natureza, mas, por isso mesmo, num mundo em que há ricos e pobres, faz uma opção preferencial pelos pobres, exigindo que eles (...) possam sair da pobreza (...).

Considera que a rejeição dos pobres está por detrás da onda de xenofobia que assolou os Estados Unidos e a Europa nos últimos anos? E, se sim, porquê? Quando as situações políticas e económicas são más, procuram-se bodes expiatórios e os estrangeiros pobres são vítimas propícias. Fechar-lhes as portas, afirmar que são um perigo e defender os de dentro contra os de fora é a tática dos supremacistas. Mas, acima de tudo, contra os que são pobres (…) o supremacismo nacionalista rejeita os mais desfavorecidos e essa tática dá-lhes votos. No século XXI, devemos reverter essa tendência (…). A aporofobia atenta contra a democracia porque atenta contra a igualdade de dignidade de todas as pessoas, exclui os pobres, aqueles que parecem não ter nada para trocar. É radicalmente excludente, quando a democracia é inclusiva.

(...) Estamos conscientes de que somos aporofóbicos? Não estamos. Por isso, é preciso falar dessa patologia na esfera da opinião pública e tentar descobrir até que ponto está enraizada nas nossas vidas. Felizmente, há grupos a trabalhar nesse sentido, jovens que fazem os seus trabalhos de conclusão de curso, de mestrado e projetos de investigação sobre a aporofobia.

A aporofobia também se manifesta entre países? Os Estados mais ricos demonstram aversão aos mais pobres? (...). É claro que os países buscam a ajuda dos mais poderosos e isso explica, por exemplo, que se aproximem da China, esquecendo que ela não quer falar de direitos humanos. E no seio de cada país (...) existe a tendência para um afastamento dos mais desfavorecidos, para os tratar como leprosos no sentido bíblico da palavra.

Como se pode combater a aporofobia
? Tomando consciência de que ela existe e que não é apenas uma questão económica, mas sim a rejeição dos mais desfavorecidos em cada situação. Acho que se combate [afirmando] o igual valor das pessoas e educando no respeito pela dignidade de todas elas, e não apenas com palavras, mas mostrando na vida quotidiana que [somos] igualmente dignos." 

Vale também a pena ver uma entrevista conduzida por Juan Carlos Hervás, na qual Cortina afirma a enorme importância da educação na superação da aporofobia.



domingo, 17 de agosto de 2025

O FERRO

Por A. Galopim de Carvalho

(in "Nós e as Pedras", em preparação)

O ferro (Fe), do latim "ferrum", com o mesmo significado, é um elemento químico metálico bem representado na Terra, abundante no núcleo, menos abundante no manto, menos ainda, mas suficientemente significativo (5%), na crosta. Tido por um dos pilares das sociedades envolvidas na Revolução Industrial, iniciada em Inglaterra, no século XVIII é um dos metais mais utilizados na sociedade humana, desde a Pré-história, tendo dado nome (Idade do Ferro) aos últimos tempos deste longo período da história do Homem, com início há cerca de 1200 a. C.

De cor cinzenta-prateada, em superfície acabada de cortar, oxida facilmente, na presença do oxigénio do ar e, sobretudo, em ambiente húmido, formando ferrugem. É maleável e dúctil e tem boa condutividade térmica e elétrica.
 
É o principal componente do aço (liga de ferro com carbono) e o seu uso está em toda a parte, do mais simples e minúsculo prego, à mais importante viga em uso na construção civil. Está nos mais variados tipos e tamanho de motores, carrocerias e múltiplos equipamentos industriais e domésticos, entre agulhas de costurar, tesouras, grelhas do fogão e outras. Está nos carris dos muitos milhares de ferrovias que atravessam países de todo mundo, em máquinas e ferramentas de todas as indústrias e, até, em nós, como componente fundamental da hemoglobina, a proteína do sangue que transporta oxigénio, dando vida a todos os recantos do corpo. Fundamental à nossa existência, encontramo-lo, sobretudo, nas carnes vermelhas, fígado, leguminosas (feijão, lentilha), vegetais verde-escuros, com destaque para os espinafres.

O ferro, na Natureza, está presente em três óxidos (hematite, magnetite e goethite), num carbonato (siderite), dois sulfuretos (pirite e calcopirite) e diversos silicatos, entre biotite, anfíbolas, piroxenas e olivinas, apelidados, em conjunto, por ferromagnesianos. Hematite (Fe₂O₃), um dos mais importantes dos seus minérios. A palavra vem do grego "haimatités", que significa "pedra de sangue", com raiz no termo "haima", que significa sangue. Utilizada como pigmento natural, conhecida como ocre vermelho. A variedade com brilho metálico tem o nome de especularite, do latim "speculum", que signific espelho.

Magnetite (Fe₃O₄), igualmente importante, foi um dos primeiros minerais observados com propriedades magnéticas naturais. Os gregos notaram esse comportamento nas "magnetis lithos" ou pedras da Magnésia, uma área da Grécia antiga (na Tessália), conhecida pela existência de pedras com propriedade de atraírem objectos de ferro.

Goethite (FeO(OH)) é um hidróxido e um dos minerais de ferro mais comuns à superfície Terra, geralmente formado por meteorização de outros minerais ricos em ferro. Ocorre geralmente em solos e crostas ferruginosas, sendo de destacar o chamado (ferro dos pântanos) de origem sedimentar, bem exemplificado em "la minette" (diminutivo de "mine", em francês) o minério de ferro da Lorena, no noroeste da França, de baixo teor. Utilizada como pigmento natural, conhecida como “ocre castanho” e tem interesse científico em áreas como paleoclimatologia e ciência do solo, por fornecer pistas sobre o ambiente de formação. O nome goethite é uma homenagem ao escritor e pensador alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1833), um importante autodidacta em mineralogia.

Limonite não é um mineral, é um termo genérico usado para designar uma mistura de hidróxidos de ferro, como goetite e lepidocrocite e, por vezes, argila, de cor amarelada a acastanhada. O nome radica no grego "leimon", que significa pântano. Isto porque a limonite é própria deste tipo ambientes húmidos, onde se forma como produto de alteração de minerais ricos em ferro.

Siderite (FeCO₃), o carbonato de ferro natural, é uma importante fonte de ferro, embora não tão tanto quanto a hematite ou a magnetite. Ocorre em filões hidrotermais de baixa temperatura e em depósito sedimentares, sendo comum nas formações ferríferas bandadas (Banded Iron Formations, BIFs). O nome vem do grego "sideros", que significa ferro.

Minerais ferromagnesianos são silicatos que contêm quantidades significativas de ferro (Fe) e magnésio (Mg). São, em geral, escuros, densos e têm elevada importância geológica, pois fazem parte da composição de muitas rochas ígneas e metamórficas, sendo essenciais para a compreensão da evolução magmática e da classificação das respectivas rochas.

Entre os principais silicatos ferromagnesianos destacam-se: olivina, comum em rochas máficas e ultramáficas; piroxenas (como a augite), importantes em rochas basálticas e gabros; anfíbolas (como a hornblenda), presentes em rochas como o anfibolito e o diorito; Biotite, mica preta, comum em granitos e gnaisses

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

ÚLTIMO I


 Tenho saudades do I, agora que já não se publica. Durante mais de um ano fiz longas críticas de livros (duas páginas) para esse jornal. Dei algumas entrevistas longas ou curtos depoimentos. A última entrevista foi sobre ciência e religião  dada a Diana Gomes (transcrevo em baixo, com receio que morra o arquivo digital do I). Paz à alma do I, que parece vai ter uma reencarnação como revista do Sol.


O físico Carlos Fiolhais diz que sim. Nesta entrevista exploramos as fronteiras entre ciência e religião, a figura histórica de Jesus Cristo e o lugar da fé no século XXI. 

DG-  É possível ser simultaneamente um cientista e um crente? 

CF- Sim, são inúmeros os exemplos de cientistas crentes. Há até cientistas que são padres ou pastores. Por exemplo, o padre belga George Lemaître foi não apenas um físico amigo de Einstein, mas também o autor da teoria do Big Bang. Lemaître era um sacerdote católico, mas, na Igreja Anglicana, John Polkinghorne, também já falecido, era não só físico teórico, como pastor e teólogo. Em Portugal, o professor de Física do Técnico João Resina era um padre com uma paróquia a seu cargo. E o padre jesuíta Luís Archer foi o introdutor da moderna genética entre nós. Na história da ciência há uma longa lista de jesuítas ativos na ciência: em Portugal foram jesuítas que introduziram o microscópio, inventado por Galileu em 1609, e que o transferiram para o Oriente, em particular para a China, onde dirigiram um observatório astronómico. Ainda hoje o Vaticano tem um Observatório Astronómico, com um bom telescópio, no Arizona, EUA, dirigido por um jesuíta. O Papa Francisco, que é jesuíta, tem formação na área da Química, tendo trabalhado num laboratório de análises. É o autor de uma encíclica (Laudatio Se) bem informada pela ciência. De facto, a ciência baseia-se em factos, mas também aí podemos falar de crenças, crenças justificadas com base no método científico, ao passo que a fé assenta em crenças que não são abonadas pelo esse método. O Padre Lemaître escreveu: “Os meios de investigação de um cientista crente são os mesmos que os do seu colega não-crente. Num certo sentido, o investigador abstrai-se da sua fé na sua investigação. Ele faz isso não porque a sua fé lhe poderia causar dificuldades, mas sim porque ela não tem diretamente nada a ver com a sua atividade científica. Afinal, um cristão não age de forma diferente do que qualquer não-crente, quando se trata de caminhar ou de correr”. 

DG-  Como vê a relação entre fé e ciência no século XXI? Ainda há um conflito irreconciliável? 

CF- Fé e ciência podem coexistir. Sendo diferentes dimensões do ser humano, no meu entender, podem e devem coexistir pacificamente. Podem até colaborar, desde que cada uma não se queira substituir à outra, dominando-a ou excluindo-a. Há questões que a ciência pode responder com o método que lhe é próprio, outras que não pode. Por exemplo, sobre o próprio fenómeno da crença religiosa a ciência pode dizer umas coisas – é o que fazem as neurociências, a biologia evolutiva, etc.– , mas ficam aquém da compreensão da religiosidade do homem. O homem é um animal religioso. Mais de 80% dos habitantes da Terra reconhecem-se como crentes e mesmo entre os outros podemos falar de espiritualidade, ainda que esta possa ser difusa e difícil de definir. A fama do conflito talvez venha do caso Galileu, mas ocorreu em 1633 e a Igreja Católica, embora tardiamente e com palavras cuidadas, já reconheceu o seu erro. 

DG-  Na Páscoa celebra-se a ressurreição, que é, por definição, um milagre – algo que contraria as leis naturais. 

CF- A ciência deve tentar explicar o inexplicável ou aceitar que há territórios que lhe são vedados? A ciência pode e deve tentar o inexplicável que está ao seu alcance. Mas não pode – e por isso também não deve – responder a todas as questões. Para alguns crentes, milagres são interrupções locais e transitórias das leis naturais. Nesse sentido, os cientistas dizem que não há milagres. Há coisas na Natureza por explicar, mas os cientistas partem do princípio que poderão vir a ser explicadas com base nas leis conhecidas ou com base em novas leis. A teologia católica liga os milagres a sinais de Deus. Trata-se de uma interpretação, que parte de uma crença num Ser omnipotente. Há muitas subtilezas no assunto. Mas julgo que a Igreja já não lê a Bíblia literalmente. A Bíblia é um livro de fé e não de ciência. O objetivo da ciência não é procurar Deus: Deus não se encontra com um telescópio, um microscópio ou um acelerador de partículas. Não existem provas científicas da existência ou da não existência de Deus. O conteúdo de livros como um recente, de dois leigos franceses (tanto em ciência como em religião), intitulado “Deus. A ciência e as provas”, é um completo equívoco. As convicções da fé seriam até muito fracas se pudessem ser abaladas por uma qualquer observação ou experiência científicas. A força da ciência reside bastante na sua universalidade: ela une pessoas de diferentes credos religiosos. 

DG-  Como cientista, como encara os relatos de milagres atribuídos a Jesus? 

CF- Da mesma maneira que encaro quaisquer outros milagres. As narrativas de milagres são bem anteriores a Jesus Cristo e continuaram, depois dele, até aos nossos dias. Com todo o respeito pelos crentes que acreditam em milagres, eu, que fui educado e vivo numa cultura católica, não acredito em milagres. Não acredito num Deus omnipotente que fala connosco por meio desses ou doutros sinais, mas, com certeza, Jesus Cristo foi uma figura histórica bem real, que deixou uma marca relevantíssima no mundo, da qual somos herdeiros. Herdeiro ele próprio do judaísmo, é o autor de uma revolução moral. As frases que lhe são atribuídas são para mim mais extraordinárias do que os milagres. Por exemplo, a frase que encontramos no Evangelho de São João: ‘Amai-vos uns aos outros’, que está na base da referida ‘revolução moral’. Ou a frase, que encontramos em São Mateus: ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque é deles o Reino dos Céus’. É curioso o que Einstein – o físico de origem judaica mas não crente (nunca entrou numa sinagoga para rezar) – disse sobre a figura histórica de Jesus Cristo: ‘Ninguém pode ler os Evangelhos sem sentir a presença real de Jesus. A sua personalidade pulsa em cada palavra. Nenhum mito está preenchido com tanta vida’.

DG- Qual é o papel da historiografia crítica – como a do Jesus Seminar, por exemplo– na nossa perceção atual de Jesus?

CF-  Não é fácil fazer esse tipo de historiografia. O Jesus Seminar, fundado pelo estudioso norte-americano Robert Funk, é um dos grupos que se abalança a essa tarefa. A história de Jesus, como qualquer outro trabalho histórico, nunca estará terminada. Pode sempre haver novos dados ou novas interpretações com base nos dados existentes. 

DG- Qual é o papel do ensino da ciência na construção de um pensamento crítico sobre religião? 

CF- O ensino da ciência é parte essencial da moderna cidadania. Transmite-nos não apenas um conjunto de factos, conceitos articulados em teoria, mas sobretudo um método que nos permite obter um certo conhecimento do mundo e, portanto, também de nós próprios. A escola está muito habituada a transmitir “conteúdos” e nem sempre transmite bem o método – o ceticismo, o espírito crítico, o rigor metodológico – que nos permite descartar erros e chegar ao que podemos chamar verdades provisórias. Os cientistas exercem o espírito crítico ao mais alto grau, mas essa sua atitude pode ser útil na vida quotidiana. A ciência está longe de ser tudo na vida. Mas o espírito critico que a ciência usa pode usar-se também fora da ciência, incluindo no estudo da religião. Os estudos teológicos devem não só estar informados pela ciência como usar a racionalidade na medida do possível. Sei que hoje vivemos num mundo largamente dominado pela irracionalidade, mas penso que a racionalidade continua a ser a maior marca da nossa espécie: o Homo Sapiens

DG- . Se Jesus Cristo vivesse hoje, como reagiria à ciência moderna, à física quântica, à inteligência artificial ou à genética? 

CF- Não sei, francamente. Isso é história virtual. Mas Jesus Cristo foi revolucionário no seu tempo. Seria revolucionário em qualquer tempo. 

DG-  Podemos pensar em Jesus Cristo como um “cientista” do seu tempo, no sentido em que desafiava o conhecimento estabelecido?

CF-  Não. Chamar cientista a Jesus Cristo é um abuso de linguagem. A ciência moderna não existia no seu tempo. E os seus ensinamentos, como o ‘Amai-vos uns aos outros’, não são do domínio da ciência, mas da moral. De resto, os cientistas não são os únicos a desafiar o pensamento estabelecido. Podem ser também historiadores, políticos, filósofos, teólogos, etc. Algumas seitas religiosas invocam o nome da ciência, mas de um modo vazio. Por exemplo, um japonês criou em 1986 uma seita chamada ‘Happy Science’, que antes de ser um movimento religioso chamava-se Instituto de Investigação da Felicidade Humana. Acho que é um meio de enganar as pessoas. Basta dizer que o dito líder reclama ser uma reincarnação de uma divindade de Vénus. Em Vénus faz demasiado calor para poder ter lá antepassados…

ENTREVISTA QUE O DAVID MARÇAL E EU DEMOS A «NOVOS LIVROS» (J. A. NUNES CARNEIRO) SOBRE O NOSSO LIVRO «PIPOCAS COM TELEMOVEL«

 


P-Qual a ideia que esteve na origem deste vosso livro "Pipocas com Telemóvel e outras histórias de falsa ciência"?

    R-A ideia foi falar de falsa ciência. Discutir ideias, produtos e serviços que dizem basear-se no conhecimento científico, não sendo isso verdade. A ciência tem credibilidade e muita gente usa-a para vender  banha da cobra. As estratégias mais comuns da falsa ciência são as figuras de autoridade e a linguagem aparentemente científica. Ou seja, alguém que se apresenta como uma pessoa muito importante e sábia e que usa palavras do léxico científico, como "quântica", "campos", "energia", etc. Só que essas são no contexto palavras vazias, sem qualquer significado, ditas só para impressionar. E a ciência não depende da palavra de gurus, mas sim de provas. No nosso livro falamos de ciência: não se pode dizer que algo não é ciência sem discutirmos as características da ciência. 

 NL-O livro vai na sua 9ª edição: a que se deve este tão grande êxito editorial?

R- Provavelmente porque escolhemos exemplos próximos do quotidiano das pessoas. Falamos de falsa ciência na internet, no supermercado, nos jornais, na saúde e até mesmo nas universidades (caso das fraudes científicas). E também porque tentamos ter alguma graça. Nós pelo menos achamos piada a algumas coisas que escrevemos, embora não saibamos se a maioria dos leitores concorda!

NL-O estilo e a abordagem de contadores de histórias que utilizam pode ser uma das razões para o sucesso dos vossos livros?

R- O livro é um conjunto de histórias encadeadas, mas cada uma delas tem uma certa autonomia. Nessas histórias fazemos ligações a muitas coisas para além da ciência. Isso torna a leitura do livro fácil. Por exemplo, pode-se ler numa ordem diferente daquela que resulta da sucessão de páginas, consoante os temas que mais interessam ao leitor.

     NL-Na era das poluídas redes sociais, que espaço pode a ciência reivindicar junto dos leitores jovens (e menos jovens)?

R- O espaço próprio dos livros, que é do pensamento aprofundado, não é possível noutros meios como as redes sociais. Certamente que um livro não chega a tanta gente como um vídeo viral de 30 segundos, mas o seu impacto em quem o lê é certamente superior. Seria desejável que o número de leitores, do nosso e de outros livros, fosse maior. Há que promover a leitura, procurando chegar a mais gente..


    NL-Pergunta prática: como podemos proteger-nos da falsa ciência que se propaga pela Internet (e não só nas redes sociais)?

R-A resposta é simples de enunciar: tendo mais cultura científica. Sabendo distinguir melhor a ciência da falsa ciência. E isso significa saber o que é a ciência: como acrescentamos novo conhecimento ao que já temos. Claro que promover a cultura científica é um grande desafio. Mas tal não é razão para desistirmos!

     NL-Nos dias de hoje, o interesse pela ciência estará a crescer?

R-O interesse pela ciência existe. Todos os grandes desafios do nosso tempo precisam da ciência. Desde o combate às alterações climáticas até à compreensão do fenómeno das redes sociais. Para vivermos mais e  melhor precisamos de ciência e tecnologia. A curiosidade é uma característica humana que decerto continuará a manifestar-se. Cada resposta que obtemos levanta novas perguntas!

 

EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o s...