Texto de Galopim de Carvalho:
Todos os dias me confronto com a disparidade entre o longo caminho que já percorri, com as inerentes limitações e mazelas do corpo, e a juventude, e, por vezes, o adolescente e a criança que nunca deixei de manter e ser.
Já o disse aqui que, como agora, sentado frente ao monitor, a ver as ideias transformadas em palavras e frases escritas (em Arial 14), não tenho corpo, nem coronárias entupidas pelo colesterol, nem as sequelas de dois AVCs, nem o neurinoma do lado direito do cérebro, nem acentuada deficiência auditiva.
Decorridos que foram mais de setenta anos sobre a minha vivência alentejana, transporto comigo marcas indeléveis desta região do país. O seu montado de azinho e sobro e as suas planuras de searas ondulantes, ainda verdes em começos de Maio e já a dourar sob o calor de Junho, simbolizam a paisagem que, como é natural, mais se identifica comigo.
Esta paisagem faz-me regressar às raízes e nelas está, ainda, a casinha isolada, a que chamamos monte, no cimo de uma ondulação do terreno, branca de cal, com cunhais e ombreiras azul-cobalto e uma grande chaminé fumegante. Lá dentro, como na casa da minha avó, em que fui criança, está o lume de chão e os enchidos ao fumeiro. Nessas raízes estão ainda os cheiros e os sabores das ervas aromáticas, os saberes, os falares e os cantares locais.
Tantas marcas do Alentejo reflectiram-se nos meus gostos pessoais e profissionais. Os vários livros de ficção e de memórias que escrevi são disso testemunho, do mesmo modo que o são a maioria dos trabalhos que realizei e escrevi como geólogo.
Tudo começou como adolescente curioso de saber, mais amante dos trabalhos que se faziam na cidade e nos campos, do que da instituição escolar de então, que eu achava desinteressante e rígida. Foi no meio rural que despertei para a divulgação científica, um gosto que me ficou e desenvolvi a par de uma vivência, igualmente gratificante, de ensino e de investigação científica na Universidade.
Sendo um fruto da cidade, sempre me senti melhor no mundo rural.
Esta inclinação foi, simultaneamente, causa e consequência de um campismo meio selvagem que pratiquei nessa fase da minha vida, na companhia do meu irmão Mário e de alguns amigos, um campismo ao encontro das herdades, dos montes e das aldeias do concelho de Évora e, também, das suas gentes.
Ao gosto pelo campo, em geral, e pela geologia (uma vocação que, cedo, se despertou em mim, devida a um professor de Ciência Naturais) em particular, juntava-se o do convívio com os camponeses. Com alguns deles troquei os ensinamentos dos meus manuais de estudo com os seus saberes fruto da experiência vivida na natureza e com eles iniciei uma vivência social e política, impensável no meio citadino, a todos os níveis vigiado e censurado, que marcou a minha maneira de estar e ver o mundo.
Nestas incursões nos campos do Alentejo, conheci, de muito perto, os trabalhos que, nesse recuado tempo, ali se faziam. Do lançar do trigo à terra, em braçadas do semeador, certas e cadenciadas, à debulha, sob o brasido do sol de Verão e do calor não menos intenso da ruidosa locomóvel, entre nuvens de moínha, ao erguer um “castelo” de palha em cima de uma carroça, tudo o que vi e experimentei me deu a noção exacta do valor do pão. E esse tudo foi presenciar o abrir dos regos, um trabalho duríssimo de homem só, de mão firme na rabicha do arado, de aivecas bem fundas, puxado por possantes parelhas de mulas; foi a monda da primavera, um trabalho de mulheres novas e velhas, tagarelando e cantando; e, finalmente, a colheita do cereal partilhada por “ratinhos”, nome algo depreciativo que se dava aos homens da Beira Baixa vindos todos os anos para a “aceifa”.
Assisti a descortiçagens (ou despelas, no dizer de alguns) nos montados de sobro e dei-me conta da perícia dos tiradores, manuseando o machado, e dos molheiros, a amontoarem as pranchas de cortiça, explicando-me depois que, assim, bem arrumadas numa pilha de base rectangular, permitiam ter uma ideia do peso de toda a tirada. Ficou-me no ouvido o som cavo do machado, bem afiado e brilhante do uso, a entrar fundo na cortiça madura, e o cantar das grandes e encurvadas pranchas a descolarem do tronco descarnado.
Experimentei o varejo da azeitona e andei de joelhos a apanhá-la caída nos oleados ali estendidos no chão e estive num velho lagar de azeite o tempo suficiente para saber como se faz o precioso óleo da gastronomia mediterrânea. Vi esmagar a azeitona com mós de pedra num engenho da antiga Fábrica Metalúrgica do Tramagal. Vi espremer, entre capachos, a pasta que dali saía, a separar o bagaço do mosto oleoso, senti o forte aroma do azeite virgem a sobrenadar uma aguadilha suja e percebi o sentir da minha mãe quando dizia «não se come uma azeitona de uma só vez», explicando que não se trata assim uma preciosidade que leva um ano a criar.
Ajudei, como curioso de ocasião, em vindimas, respirei o cheiro de um outro mosto. Provei o vinho novo pelo São Martinho e acompanhei os trabalhadores, na grande adega das Cortiçadas, petiscando toucinho assado no braseiro da destila, junto ao alambique, acompanhado de “sorvinhos” de aguardente ainda morna, acabada de fazer.
Acompanhei, interessado, o trabalho do caleiro, do desmonte e malho da pedra, com a marreta, ao empilhamento, a preceito, do forno. Vi armar e cobrir de terra os tradicionais fornos de carvão e conheci o intenso cheiro a tição que libertavam.
Fiquei horas a ver oleiros no trabalho do barro vermelho com a roda e tive oportunidade de apreciar a arte de enfeitar com pedrinhas de quartzo a tradicional loiça de Nisa.
Bebi água por cocharros de cortiça, tirada do poço, junto ao bebedouro do gado e molhei os pés nos regos das hortas onde nos deixavam apanhar beldroegas com que fizemos tantas das nossas refeições.
Foram muitas as vezes que confraternizei com os trabalhadores rurais, sentados no chão, de “navalhinha” na mão, comendo nacos de pão com lasquinhas de queijo ou de linguiça.
Não é demais voltar a dizer que foi com estes meus amigos que iniciei a consciencialização dos problemas sociais e políticos que a cidade, nesse tempo vigiada e censurada, não permitia.
Volto a dizer que com eles interiorizei uma saudável ruralidade que me acompanhou ao longo da vida e me permitiu caldear as influências elitistas do meio académico a que, como aluno e docente, pertenci durante mais de 40 anos.
Ao memorizar essa fase da minha vida sou levado a concluir que foi também com os camponeses que desenvolvi e amadureci este gosto pelo campo, essencial à profissão de geólogo. Com eles e por eles tomei o gosto de divulgar uma actividade que, como disse, marcou toda a minha existência, e que, sem me ter dado conta, acabou por me tornar figura pública, com as vantagens e os inconvenientes que tal acarreta.
Nas minhas raízes não houve doutores, engenheiros, almirantes ou generais, nem sequer, um sargento. Houve um segundo grumete ao serviço da fragata Dom Fernando II e Glória, que foi o meu pai, uma costureira, que foi a minha mãe, e gente do povo de muitas artes: dois corticeiros, um sapateiro, um curtidor de peles, dois caiadores, um capador, um açougueiro, sem esquecer a minha tia Rosalina, irmã da minha avó materna, que, com as filhas, fazia queijos de ovelha e tinha uma venda de hortaliças, e o meu tio Zézinho, seu marido, conhecido por Zé dos Cabanejos, pelo facto de fazer cestos e canastras ou cabanejos.
De toda esta família, só o meu pai estudou, tendo concluído o 5.º ano do liceu, o que lhe valeu um emprego mais estimado, permitindo-lhe, em conjunto com a minha mãe, dar aos seis filhos as habilitações a que cada um aspirou.
Não como turista, mas como profissional, tive oportunidade de fazer algumas deslocações pelo mundo. Mais do que as cidades, atraíram--me os espaços naturais, longe do betão e do asfalto. Foi assim que admirei o Grand Canyon do Colorado, onde tive a percepção da imensidade do tempo geológico, que estive no bordo da grande Cratera do Meteoro e que visitei o Monument Valley, no Arizona, onde voltei a “ver” o Tom Mix, o Buck Jones e o Ken Maynard, os cowboys do Far West, da minha infância. Percorri as planuras entre-montanhas do Oeste Americano, os seus desertos e lagos salgados.
No Canadá deslumbrei-me com a miríade de lagos deixados no recuo da última grande glaciação, com o maravilhoso polícromo das suas florestas caducifólias, no Outono, e com as chamadas bad lands de Alberta, autênticos ninhos de fósseis de dinossáurios.
No mar azul das Caraíbas, nos recifes e nas areias brancas dos seus fundos e das suas praias vi, no terreno, como se formam os calcários, os de hoje e os do passado com milhões de anos de idade.
No Egipto pisei o deserto de areia norte africano, na sua ponta mais oriental, em franco contraste com o verdejante vale do Nilo.
Da Amazónia ficaram-me os aromas quentes e húmidos da floresta sempre chuvosa, a luz coada pela densidade da vegetação e o som dos animais que a povoam.
Sobrevoei os Himalaias, molhei os pés nas águas barrentas do mar da China e desci ao fundo de uma cratera de vulcão nos Açores.
Neste percorrer de uma longa caminhada, para além da infância, da adolescência e do tempo que cumpri como miliciano ao serviço do Exército, dou particular atenção às experiências vividas e presenciadas e às reflexões que muitas delas me suscitaram como docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, como director do Museu Nacional de História Natural da mesma Universidade e, ao mesmo tempo, como cidadão interventor, sobretudo, na árdua defesa e valorização da geologia e do nosso património natural, numa sociedade cinzenta, à procura de um caminho que ainda não soube encontrar, onde o conhecimento geológico continua arredado dos nossos agentes de cultura e da grande maioria dos nossos decisores aos vários níveis da administração e dos serviços.
António Galopim de Carvalho