quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Alunos à nora

Sendo assim, já que falamos nos acentos, passamos assim a outro âmbito, ao âmbito da escrita, em que chegámos à conclusão que não sabemos o que fazer, é uma grande confusão. Não sabemos se havemos de tirar letras, de pôr, se tirar os acentos ou não, e é muito triste chegarmos a esta altura e nós não sabermos como havemos de escrever a nossa própria língua, e acho que isso não está a favorecer grande coisa.
Também nos deparamos com textos nos nossos manuais em que alguns adoptam o novo AO e outros não, e ficamos confusos, porque afinal em que é que ficamos?


DIA MUNDIAL DAS DOENÇAS RARAS

Celebra-se hoje, dia 28 de Fevereiro, o Dia Mundial das Doenças Raras


Um espirro anuncia a constipação. Também sintoma de uma gripe que por vezes se diz comum. Estas constipações e gripes são aflições nada raras ao longo de todo o ano e a maior parte de nós já com elas conviveu pelo menos uma vez na história das nossas vidas.

Contrariamente as estas e outras doenças sazonais, “passageiras” e comuns à maioria dos seres humanos, há um conjunto de doenças genéticas que acompanham e afectam gravemente a vida dos seus portadores: as doenças raras. Este ano o Dia Mundial das Doenças Raras celebra-se a 28 de Fevereiro.

Passou mais de uma década depois da descodificação do Genoma Humano. O mapeamento completo dos cerca de 20 mil genes humanos foi apresentado em conferência de imprensa a nível mundial a 14 de Abril de 2003. Um ano antes, foi fundada em Portugal a Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras - “Raríssimas”, mais precisamente a 12 de Abril de 2002.

Na União Europeia, consideram-se doenças raras as que têm uma prevalência inferior a 5 em 10000 pessoas. São conhecidas cerca de sete mil doenças raras, mas estima-se que existam mais, afectando, no seu conjunto até 6% da população, o que significa que atingem 40 milhões de pessoas na Europa e que existirão até 600 mil pessoas com estas patologias em Portugal. São doenças crónicas, graves e degenerativas que diminuem muito a qualidade de vida dos por elas afectados.

Uma lista de algumas doenças raras já diagnosticadas pode ser consultada aqui, por exemplo.

O mapeamento completo do Genoma Humano tem permitido compreender melhor os mecanismos moleculares que estão na origem de inúmeras doenças genéticas, muitas delas doenças raras, para as quais não se vislumbravam quaisquer curas e/ou tratamentos adequados antes do Projecto do Genoma Humano ter sido completado. Mas há ainda muito para fazer e compreender em cada ser humano com o seu específico fenótipo bioquímico.

O desenvolvimento de uma farmacogenómica dedicada à compreensão da base genética e metabólica das doenças, só possível depois do mapeamento do genoma e desenvolvimento e progressiva compreensão do proteoma e metaboloma humanos (entre outros "omas"), veio apresentar novos horizontes tecnicamente exequíveis para as doenças raras, para os metabolismos extremos e externos ao território clássico das ciências farmacêuticas.

Neste contexto, as doenças raras, também conhecidas por “doenças órfãs”, relegadas para os extremos das distribuições estatísticas gaussianas de susceptibilidade a doenças e interacções farmacológicas, ganharam novas e renovadas esperanças: a de ser possível antecipar o seu diagnóstico (inclusive pré-natal ou mesmo pré-concepcional) e eventualmente alterar radicalmente a história de vida de uma pessoa em particular; a de ser possível a compreensão do mecanismo molecular da doença e assim identificar alvos para o desenvolvimento de promissoras estratégias farmacológicas; o desenvolvimento de novos fármacos desenhados e ajustados à especificidade de um indivíduo em particular, eventualmente menos dispendiosos para todos os agentes envolvidos.

A atenção e os esforços sociais em relação aos portadores de uma dada doença designada por rara são sinónimos dos avanços civilizacionais em que a humanidade é substância, em que cada um tem direito a ter a melhor qualidade de vida com dignidade independente das suas especificidades e diferenças.

Aqueles que noutras eras não conseguiriam sobreviver à nascença, têm hoje a possibilidade de partilhar a sua individualidade com a sociedade de que também fazem parte, e enriquecer, com a sua raridade, nós todos, comuns mortais.

António Piedade

Legenda Figura: A Progéria tem origem em um único e pequeno defeito no código genético do bebé, mas tem efeitos terríveis para a vida da criança que geralmente não chega aos 13 anos de idade.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Nelson Goodman

Pensar que a ciência é em última análise motivada por fins práticos, avaliada e justificada por pontes, bombas e o controlo da natureza, é confundir ciência com tecnologia. A ciência procura o conhecimento sem atender a consequências práticas, ocupando-se da previsão enquanto teste da verdade e não enquanto guia do comportamento. A investigação desinteressada compreende simultaneamente a experiência científica e a estética.

Deputado põe os pontos nos i

 "E objectivamente, é preciso dizê-lo, se o objectivo é esse [português comum ortograficamente] ele não foi cumprido, porque em vez de haver duas, há três, hoje, ortografias em utilização comum nos países signatárioshá o português de Portugal, antigo se quisermos, que existe hoje em dia nos PALOP, que não Portugal, nos países africanos, exactamente, nos PALOP, nos países da CPLP, que não Portugal e Brasil, há o português do Brasil escrito no Brasil e há o português do acordo, um qualquer que quiserem escolher, escrito em Portugal. Portanto, esse desiderato falhou, mas se era atingível doutra forma ou não e devem ser levantados os esforços que seja ou não, é essa a questão que eu deixo."


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Leopoldo Lugones


Novo texto de Ângelo Alves sobre ciência e literatura: 


«Tyndall disse, em um exemplo gráfico, que a força de um punhado de neve na mão de uma criança, bastaria para fazer em pedaços uma montanha.»
                                                               Leopoldo Lugones

Esfrega as mãos no ar e ouve o respectivo som. Como o explicas?

A perturbação propagou-se no ar (meio) através da interacção entre as partículas e formou uma onda mecânica. O som emitido foi deste modo propagado em todos os sentidos. Se, em vez de esfregares as mãos, as agitares no ar, não ouves qualquer som - apesar de uma onda mecânica existir - porque a frequência da mesma está abaixo do limite perceptível pela membrana do tímpano (16 Hz – 20000 Hz).

Depois de esfregares as mãos liga o rádio e coloca algodão nos ouvidos. Não ouves nada, mas a onda continua a atingir o tímpano. Acontece que depois de atravessar o algodão, a uma velocidade mais alta que no ar, ela perde intensidade.  

A intensidade do som é directamente proporcional à amplitude da onda. Ora, se aumentares o volume do teu rádio, o som será mais intenso porque a amplitude da vibração aumenta. O teu tímpano vai vibrar a maior amplitude.

 Quando um meteorito a velocidade superior ou igual à do som entra na atmosfera e eclode em fragmentos, formam-se ondas mecânicas intensas de frequências baixas, inferiores a 16 Hz. Elas ao penetrarem num vidro fazem com que este vibre a grande amplitude, podendo inclusive partir-se. Foi precisamente isto que ocorreu há pouco tempo nos Urais.

No domínio da ficção, Leopoldo Lugones, poeta e contista argentino (com gosto pelas ciências naturais), pioneiro da narrativa curta no país das pampas, que influenciou contistas como Rodolfo Wilcock e Silviana Ocampo, escreveu no seu livro “As Forças Estranhas” um conto mágico sobre o som, a que deu o título de “A força ómega”. Este conto centra-se em torno de três amigos: o narrador, um médico e um inventor pobre e autodidacta. Certo dia, o inventor revela a descoberta de uma nova força revolucionária, desta forma:

   "Com a sua voz clara de sempre, aspecto negligente e com as mãos estendidas sobre a mesa, como durante discursos psíquicos, nosso amigo enunciou esta coisa surpreendente:

- Descobri a potência mecânica do som. Sabem - continuou sem se preocupar com o efeito causado pela sua revelação –, sabem muito disto para compreender que não se trata de nada sobrenatural. É um grande feito, decerto, mas não superior à onda hertziana ou ao raio de Roentgen. A propósito, coloquei também um nome à minha força. E como ela é a última na síntese vibratória cujos outros componentes são o calor, a luz e a electricidade, chamei-lhe a força ómega.

- Mas o som não é coisa distinta? – Perguntou o médico.

- Não, desde que a electricidade e a luz foram consideradas como matéria. Falta todavia o calor. No entanto a analogia leva-nos a conjecturar a identidade da sua natureza, e vejo chegar o dia em que se demonstre este postulado evidente: Se os corpos se dilatam com o calor, ou de outro modo, se seus espaços intermoleculares aumentam, é porque entre eles se introduziu algo, o calor. Caso contrário haveria que recorrer ao vazio aborrecido pela natureza e pela razão.

O som é matéria para mim, mas isto resulta melhor da exposição de minha descoberta
….
Veio-me esta ideia, base de todo o invento: a vibração sonora transforma-se em força mecânica e por isso deixa de ser som.
Eu considero que o som é matéria solta da fonte sonora em partículas infinitesimais, e dinamizada de tal forma, que dá a sensação do som, como as partículas odoríferas dão a do odor. Essa matéria solta-se na onda comprovada pela ciência e que eu me propunha modificar, fazendo a onda aérea conhecida por nós, do mesmo modo que a ondulação de uma enguia é repetida por esta na sua superfície.

Quando a dupla onda choca com um corpo, a parte aérea reflecte-se na superfície; a etérea penetra produzindo a vibração do corpo, sem consequências, pois o éter do corpo dinamiza-se em harmonia com o da onda difundida nele; e é esta a explicação que se dá pela primeira vez, das vibrações sonoras.
Se a onda atinge o centro molecular do corpo este desintegra-se em partículas impalpáveis."

Para comprovar esta força revolucionária, os três amigos montaram num quarto um aparato sonoro. Do diapasão, deste aparato, emergiam ondas intensas de 40.000 vibrações/s que eram depois dirigidas, como flechas, para dentro de barras de ferro. Eles verificaram que estas se desfragmentavam, comprovando a teoria do inventor. No entanto, um dia, o médico e o narrador entraram no quarto e encontraram o inventor morto e um manto sombrio da sua cabeça vazia projectado na parede. Esta força apenas podia ser usada pelo inventor, porque ele tinha um sentido que lhe permitia ver o centro de gravidade de um corpo.

Que prazer teria se esta teoria fosse verdade, e ao cantar a “Grândola Vila Morena” o som atingisse o centro de gravidade de certas pessoas! Ainda mais triste do que ouvi-la em certa bocas, é ver um jornalista mandar calar os jovens, quando ele próprio é professor equiparado (sem licenciatura) numa escola superior. De facto, quando certas pessoas ouvem cantar a igualdade e a fraternidade ficam incomodadas, e, como estes valores não se enquadram na sua ideologia, logo afirmam que uma certa classe política se apoderou da música como seu símbolo. É esta pergunta que faço aos nossos governantes: Querem a igualdade?

Leopoldo Lugones acabou por se suicidar com uma mistura fatal de whisky e cianeto. Encontrou, decerto, a noite mais pura.

Declama em surdina, tu que me estás a ouvir, este poema de Lugones:
 
«A Noite Pura

Floreció, con la lluvia, en los jardines,
El cándido jazmín de primavera.
La noche, cual profunda enredadera,
Cuaja también en luz claros jazmines..."
             
Em português:

"Floresceu com a chuva nos jardins,
O cândido jasmim da primavera.
A noite como uma profunda trepadeira
Muda também a luz dos claros jasmins...»
  
Ouviste a noite? Agora espera por ela, como eu espero que as editoras do meu país traduzam Wilcock e Silviana Ocampo.

Ângelo Alves


NEUROCIÊNCIAS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO RÓMULO


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

ABELHÕES SENTEM CAMPOS ELÉCTRICOS DAS FLORES

Crónica primeiramente publicada na imprensa regional.


Abraço o arco-íris com o olhar visível.

A separação das componentes do espectro da luz solar, ao atravessarem as gotas de água, imprime na minha retina sensações de uma paleta de cores que o meu cérebro retém e compara com outras e anteriores sensações coloridas do mundo em que vivo.

A cada nuance colorida o meu cérebro associa um nome e mesmo outras sensações de alegria, esperança, espanto, confiança, frio ou calor. As cores são elementos da minha comunicação com o mundo que me rodeia, têm um significado modulado pela cultura ocidental em que as aprendi.

Mas há muito mais radiação para além da pequena região da luz que nos impressiona visivelmente no espectro da luz solar. Por exemplo, não conseguimos ver as radiações ultravioletas nem as infravermelhas. Também não conseguimos ver as radiofrequências nem as micro-ondas, e assim por adiante.

Mas outros seres, que coabitam connosco este planeta, conseguem percepcionar a luz para além da região do espectro visível. Por exemplo, as abelhas conseguem ver cores ultra-violetas. Este facto levou o biólogo evolucionista Richard Dawkins a referir que para os insectos os campos de flores são “jardins no ultravioleta”. Se para a maioria de nós as pétalas do mal-me-quer são uniformemente brancas ou amarelas, para uma abelha há nelas uma outra riqueza de padrões coloridos que nós não conseguimos discernir.

Vísível vs. UV

(É possível viver as diferenças que a radiação ultra-violeta causam no aspecto das flores na exposição permanente do Museu da Ciência da Universidadede Coimbra.)

É o espelho da co-evolução entre as plantas com flor e os insectos que as polinizam. Ao longo de milhões de anos a evolução natural consertou as adaptações ajustando-as para uma comunicação mais eficaz e rica entre ambos.

Mas a Natureza não para de nos espantar ou pelo menos o conhecimento que adquirimos sobre ela. Num trabalho publicado na última edição da revista Science  mostra-se que pelo menos um dado tipo de abelhões (Bombus terrestris) é sensível à carga eléctrica, (ou melhor ao campo eléctrico) de uma dada flor. E que esta carga eléctrica da corola parece estar associada com o conteúdo em pólen que essa flor possui num dado momento. Os investigadores descobriram que, depois de uma flor ser visitada por uma abelhão, que lhe retira pólen, a sua carga eléctrica altera-se e esta mudança permanece durante alguns minutos. Assim, um outro abelhão, ao se aproximar dessa mesma flor, apercebe-se, provavelmente electrostaticamente, que o conteúdo em pólen é reduzido nesta.


Talvez experiencie a sensação de cabelos ou pelos em pé que nós próprios sentimos quando aproximamos, por exemplo, um braço de um superfície carregada electrostaticamente.

Apesar de toda beleza cromática que apresenta para atrair o insecto, a flor não faz “publicidade enganosa” e comunica ao insecto que não vale a pena, naquele momento, ele nela poisar se ao pólen vem. O abelhão agradece, pois, como em outras actividades, nesta o tempo também é precioso. Para a flor, como também em outros casos, é importante dizer a verdade para que o insecto a ela volte noutra altura de maior abundância polínica.

Para uma abelha um campo de flores não é só um jardim no ultravioleta. Este também está repleto de sensações electroestáticas que tornam a comunicação mais efectiva e rica de significados.

António Piedade

HUMOR: O BIFE DO VAZIO


A oferta está num restaurante do Porto (foto que me foi enviada por Manuel Salgueiro). Afinal o vazio não é vazio, como sabiam aliás os físicos quânticos...

Porque deixei de comprar o "Sol"

O "Sol", quando nasceu, foi para todos e também para mim. Representava uma alternativa ao "Expresso" e é sempre bom haver alternativas. Durante vários anos colaborei com o novo semanário numa coluna intitulada "Heliosfera", onde, semana sim, semana não, procurei comentar a actualidade científica. Estou muito grato pela oportunidade e não tenho a mínima razão de querixa no que respeita à colaboração editorial. A certa altura informaram-me, porém, que já não estava interessado na minha colaboração, invocando necessidade de mudança de colaboradores, um motivo bom e  legítimo que naturalmente aceitei. Mas não apareceram colaboradores novos na área da ciência (e há jovens talentos que bem poderiam ter sido convidados). Pelo contrário, a ciência viu diminuído o seu lugar.

Continuei a comprar o jornal, mas dei por mim há pouco tempo sem interesse para ler o "Sol". Quando é que o "Sol" se pôs para mim? Já não gostei muito quando divulgaram um escândalo inexistente com Medina Carreira: quando emendaram a mão, o mal já estava feito. Mas deixei mesmo de gostar quando o jornal divulgou a apetência que o grupo seu proprietário tinha pela RTP. Com a falta de ciência e, em geral, de cultura que o jornal tem hoje, já pensou o leitor como seria a televisão pública portuguesa se ela tivesse sido vendida, como aparentemente queria Miguel Relvas, ao único comprador interessado?

DAMÁSIO SOBRE ESPINOSA


Minha apresentação em vídeo da nova edição do livro "Ao Encontro de Espinosa" de António Damásio:
http://nautilus.fis.uc.pt/rc/?cat=35

Delírios ortographicos

Várias pessoas me têm perguntando por que razão a nossa ortografia é tão ilógica. Escrevemos “coração”, mas faria mais sentido “curação”; escrevemos “táxi” e “taxa”, usando o “x” de maneiras completamente diferentes; escrevemos “coser” e “cozer” com significados diferentes quando a fonética é exactamente igual; ora usamos “ç” ora dois “s” para fazer o mesmo; etc. Porquê tantas opções ortográficas ilógicas?

Por duas razões. Primeiro, porque as ortografias são naturalmente ilógicas. São-no porque emergem naturalmente do uso das pessoas, e umas pessoas escrevem de uma maneira, outras de outra, e isso acaba por ficar cristalizado como correcto. Sim, isto significa que a ortografia é mera convenção, nada havendo de intrinsecamente errado em escrever “çoldado” em vez de “soldado” ou “tácsi” em vez de “táxi”. Tudo o que precisamos, numa ortografia, é de regularidade, para nos entendermos melhor.

A segunda razão é que os linguistas portugueses têm revelado incompetência, ao longo do tempo, sempre que fazem reformas ortográficas. Uma ortografia completamente ilógica e tradicional é aceitável, porque é essa a tradição: reflecte a evolução orgânica da língua, como o inglês. Mas quando fazemos reformas e leis sobre a ortografia, ou fazemos bem, como os italianos, ou mais vale ficar quieto. O nosso problema é que nem somos como os italianos, que modernizaram bem a ortografia e acabaram com as coisas ilógicas, nem somos como os ingleses, que deixam a ortografia evoluir organicamente, sem a intervenção de linguistas incompetentes a soldo do estado.

Assim, temos o pior dos dois mundos: por um lado, somos quase incapazes de ler a quase totalidade dos livros clássicos de língua portuguesa que temos nas bibliotecas. As sucessivas reformas ortográficas pouco mais fazem do que servir os interesses dos editores, para vender novos dicionários. Vamos a uma biblioteca e, ao contrário do que acontece na Inglaterra, quase não conseguimos ler o Eça de Queirós tal como ele escrevia (até o nome mudámos, era “Queiroz”). Na verdade, mesmo uma pessoa particular, como é o meu caso, consegue o feito de ter na sua biblioteca privada livros com três ortografias diferentes (porque tenho livros dos anos 50, livros recentes e agora livros de 2012)! É o completo caos ortográfico.

Por outro lado, continuamos com uma ortografia tão ilógica quanto a que tínhamos antes dos desvarios republicanos nos terem não apenas matado o legítimo rei como ainda por cima quase nos mataram a língua.

Podemos resistir passivamente a este desvario ortográfico anunciado e repetido? Não. Porque a partir do momento em que o estado obriga as escolas a usar a nova ortografia, em menos de uma década todos os livros e jornais passarão a usá-la. É o meu caso: como sou autor de livros para as escolas, tenho de usar a nova ortografia. E, como é natural, não me dá jeito usar ortografias diferentes em diferentes livros. Assim, a única maneira eficaz de resistir a esta aberração ortográfica é juntarmo-nos todos a quem generosamente está a dar o seu tempo, energia e dinheiro para levar à assembleia da república as razões da rejeição da nova ortografia. No momento que os deputados virem com clareza que 1) o acordo não unifica, desunifica e 2) a nova ortografia está tecnicamente errada porque em vez de simplificar, complica, em vez de tornar mais lógica a ortografia, faz o contrário, estamos a um passo de rejeitar esta tolice. E quando os deputados virem que 3) o Brasil já por várias vezes assinou tratados ortográficos com Portugal que depois rejeitou, verão que não estaremos a fazer coisa alguma de extraordinário ao rescindir esta tolice.

Repare-se que, no Brasil, a violência ortográfica é muitíssimo menor do que em Portugal, havendo apenas alguns casos parvos, como “pára”, que passa a escrever-se sem acentuação. Em Portugal, os casos parvos, como “espectador”, que perde o “c” – que continua no Brasil, outro caso de desunificação – constituem a quase totalidade da nova ortografia. Ninguém em Portugal teria protestado com a nova ortografia se fosse razoável, tirando apenas o “c” de “actual”, por exemplo, e outros casos semelhantes. Fazer isso seria modernizar bem a língua, e permitiria alguma unificação com o Brasil, que resolveu sozinho eliminar as consoantes mudas, há décadas. O problema é que está longe de ser razoável; é de uma incompetência linguística atroz.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Unificação ortográfica?

Eis alguns exemplos colhidos aqui que mostram que o acordo ortográfico é uma mentira política, pois não unifica a ortografia, antes a desunifica:

Pré-AO90 Pós-AO90
Portugal | Brasil Portugal | Brasil
Acepção | Acepção Aceção | Acepção
Concepção | Concepção Conceção | Concepção
Conector | Conector Conetor | Conector
Excepcional | Excepcional Excecional | Excepcional
Expectorar | Expectorar Expetorar | Expectorar
Infecção | Infecção Infeção | Infecção
Intercepção | Intercepção Interceção | Intercepção
Perceptível | Perceptível Percetível | Perceptível
Recepção | Recepção Receção | Recepção


Qualquer cidadão português pode juntar-se à ímpar iniciativa legislativa de cidadãos, um direito previsto na constituição da república portuguesa, para eliminar esta mentira política que é o acordo ortográfico. É preciso enviar uma carta, em papel, mas é um pequeno incómodo para eliminar um dos maiores atentados à língua portuguesa. Todas as instruções necessárias estão neste site. Já enviei a minha carta, do Brasil. Se é contra o acordo ortográfico, faça o mesmo.

Henry Thoreau

Deve o cidadão desistir da sua consciência, ainda que por um instante ou em último caso, e dobrar-se ao legislador? Por que razão estará então cada homem dotado de uma consciência? Na minha opinião devemos ser em primeiro lugar homens, e só depois súbditos.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

AROMAS E SABORES DO ALENTEJO

Texto do Professor Galopim de Carvalho que muito agradecemos.
Poejo (Mentha pulegium)
Numa arte de cozinhar que recebeu aromas e sabores trazidos, entre outros, pelos ocupantes romano e visigótico e, depois, pelo invasor muçulmano, a cozinha do Alentejo, a par dos seus cantares, é uma expressão cultural bem conhecida e devidamente apreciada. O povo que resultou desta mistura e que aqui se fixou, descobriu e aperfeiçoou, ao longo de gerações, aromas e sabores que foram transformando o simples acto fisiológico de ingerir alimentos, num outro, marcado pelo prazer, quer o dos sentidos, quer o da convivência. Aliás, comer, do latim comedere, significa tomar os alimentos em companhia, posto que radica no verbo edere que, por si só, significa esse acto de ingestão, antecedido do elemento cum, que alude à ideia de companhia e que é o mesmo prefixo com que se fizeram as palavras convivência e companhia

Perfeito conhecedor deste povo instalado a sul do grande rio ibérico, Alfredo Saramago (2001) lembrou que, desde muito cedo, o alentejano entendeu que comer era, não só, um acto necessário e imperativo de sobrevivência, como também uma forma superior de contentamento e é por isso que, quase sempre, há cante, muitas vezes, a meio e, quase sempre, no fim das suas confraternizações à mesa. 

Numa tradição regional que, do pouco, soube fazer muito e bem, como lembrou Monarca Pinheiro (1999), são muitas as referências aos aromas e aos sabores da cozinha alentejana. E uma delas é a que foi feita por Manuel Fialho (1992), ao dizer que aproveitando ao máximo a riqueza dos seus recursos e sabendo compensar com extraordinária habilidade as suas limitações, o alentejano criou uma cozinha única, sólida, nutritiva e surpreendentemente saborosa, que não é mais, afinal, do que o espelho fiel da sua própria maneira de ser. Não desejando afirmar-se nem melhor nem pior do que a generalidade da rica cozinha tradicional portuguesa é, sem dúvida, substancialmente diferente.

Como qualquer alentejano da minha geração, cresci num tempo em que a confecção dos alimentos tinha por base o lume de lenha, no chão da lareira, ou o de carvão, na fornalha ali instalada. Sem o suporte conserveiro da arca congeladora, sabiamente substituída pela salgadeira, numa tradição milenar, e sem frigorífico, a mãe de família tinha de cozinhar todos os dias, duas vezes ao dia. Foi um tempo em que a cozinha, com a grande chaminé, era casa de entrada, de porta sempre aberta durante o dia, como única fonte de luz, e sala de todos os usos, em que a mesa de comer era a mesma em que eu e os meus irmãos fizemos os trabalhos de casa, a mando do professor.

Dessa cozinha, para além do mobiliário rudimentar, do poial dos cântaros, do poço com água fresca e um tanto salobra, ficaram-me na memória duas oleogravuras, uma do aeroplano Lusitânia, com o Gago Coutinho e o Sacadura Cabral, e outra alusiva à implantação da República. Desse tempo e dessa cozinha recordo os aromas e os sabores da culinária alentejana. A carne de porco, temperada de alho e pimentão, frita em banha, na sertã de barro, as sopas da panela de galinha com linguiça, toucinho e raminhos de hortelã, a açorda de poejos, as sopas de tomate com figos e as de cação envinagradas e a libertar o cheiro dos coentros, as sardinhas de barrica fritas no azeite e as torradas com toucinho cozido ou com azeite, açúcar e canela exalavam cheiros inconfundíveis e são lembranças de paladares inesquecíveis que não posso deixar de associar aos cantares dos homens que, muitas vezes, na taberna da vizinhança, aos fins de tarde de sábado, se abriam em coro polifónico e trocavam boa parte da magra féria por copos de vinho e petiscos para fazer boca, esquecendo aí e assim a “porca da vida”.

O pão que então de comia, por tradição e em quantidade, era de trigo ceifado nos nossos campos e tinha ciscos na base, trazidos do solo do forno de lenha, ciscos que era preciso raspar antes de ir à mesa. Era um pão muito diferente do que hoje se fabrica em fornos eléctricos ou a diesel, em grande parte, com trigo importado, sabe Deus se já geneticamente manipulado. O queijo de ovelha, em especial, o curado, amarelinho e a ressumar olhinhos de gordura, cortado e em lasquinhas, à navalha, era conduto precioso e perfumado desse pão-nosso de todos os dias.

Do Inverno da minha infância e primeira adolescência guardo o cheiro da lareira, quer o do grande lenho de azinho que ardia, lenta e a fumegar, ao centro da chaminé, arrumado à “boneca”, quer o que vinha agarrado às farinheiras, linguiças e chouriços retirados das varas do fumeiro. Recordo o cheiro do café de mistura a exalar na cafeteira de barro e do chiar da brasinha que se metia lá dentro para fazer assentar a borra.

Coincidentes no essencial, todas as referências, e são muitas, à cozinha alentejana totalizam um elogio a uma comunidade muito particular, bem caracterizada, não só pela sua ligação à terra no trabalho e no lazer, mas também pelo valor cultural do seu cante, único na musicografia, e pelo da sua gastronomia. O pão e o vinho, o azeite, o porco e o borrego, as ervas e os cheiros, são as marcas mais significativas de uma mistura prevalecente nesta que é a maior região natural do país, a que Estrabão, o grande geógrafo grego dos finais do século I antes de Cristo, reconheceu como o “paraíso das ervas frescas”.

Hélder Pacheco (1994) denuncia a condição de gente explorada dos camponeses do Alentejo, ao escrever que enganam a magreza do caldo com ouropéis mágicos de ervas, cheiros e misturas que dão sabores disfarceiros das pobrezas e lembra os comeres frugais feitos de coisas simples do dia-a-dia e do que as pessoas tinham à mão.

E porque ervas e cheiros foram bens que a mãe Natureza nunca lhe negou, o alentejano aprendeu a usar produtos simples e pobres na feitura de pratos onde o gosto e o prazer de comer constituem um acto cultural cada vez mais divulgado e reconhecido. Como figura grande na geografia física e humana, o Prof. Orlando Ribeiro, meu mestre, reconhecendo esta procura de prazer, numa terra pobre, escreveu, em 1987: comer foi, acima de tudo, encher a barriga e iludir a sensação de fome e a fome, como todos sabemos, aguça o engenho.

Mercê de uma atitude cultural mais esclarecida e alargada, acrescida de apoios e encorajamentos vários, entre os quais os facultados por autarquias, a cozinha alentejana é cada vez mais conhecida como uma cozinha rica, não só na variedade dos produtos naturais utilizados, como nas maneiras de os confeccionar, sem as incorporações industriais, que marcam os dias de hoje, e de que temos exemplos nos muitíssimos produtos da indústria alimentar, os enlatados, os congelados, os semi-feitos e os take-away, à nossa disposição no mercado. Esta sua riqueza resulta de uma imaginação levada ao extremo, no espírito do velho ditado a necessidade é mestra de engenhos, como bem lembraram Manuel Fialho e Alfredo Saramago (1998).

Num quadro geográfico e num tempo social preocupante, hoje agravado por carências e necessidades suficientemente apontadas, a cozinha alentejana, experiente de um passado de dificuldades, vai continuar a tirar proveito dos produtos alimentares ao seu alcance, onde, para além dos que se podem produzir, há todos os que a terra nos oferece e, entre eles estão as beldroegas, as acelgas e as labaças, os cardos, os espargos e uma variedade de cheiros, tantas vezes usados como disfarces para a falta de condutos (Monarca Pinheiro, 1999), com destaque para dois muito nossos: o poejo e a hortelã-da-ribeira. Como escreveu o nosso vizinho do outro lado da fronteira (Jacinto Garcia, 1999), a cozinha mais admirável é aquela capaz de conseguir um prato suculento e harmonioso utilizando somente um conjunto díspar de humildes alimentos.

Tudo o mais que se lhe possa acrescentar, em particular as carnes e o peixe, farão a diferença entre tempos de abastança e os que se avizinham. A açorda e o gaspacho poderão vir a ter menos azeite, as migas, menos febras e mais toucinho e farinheira, mas os aromas continuarão a ser os mesmos.

A luz da cal em Monsarz
Imagem de uma terra de grandes planuras e lonjuras, queimadas pelo sol de Verão e pelas geadas de Inverno, e de aldeias e montes brilhantes na luz da cal, a gastronomia alentejana tem sido uma nota particularmente resistente ao tempo e às influências que constantemente lhe chegam do exterior, representando um património etnográfico de grande valia.

Com efeito, as confecções culinárias alentejanas, algumas com mais de mil anos, na sua singularidade e intemporalidade, sobreviveram e afirmam-se no presente, sem perda de identidade, sendo hoje um importante recurso em termos de oferta turística. É esta mesma cozinha que começa a ser servida pelos restaurantes não só do Alentejo como por alguns fora dele, em resposta a uma clientela conhecedora, em crescimento, a testemunhar o sucesso reconhecido deste renascer a que felizmente se assiste.
A. Galopim de Carvalho
Bibliografia:

Pacheco, Hélder (1994). no prefácio de O Comer dos Ganhões. Memórias de outros Tempos, de Falcato Alves. Campo das Letras, Porto.
Fialho, Manuel (1992) – Cozinha Regional do Alentejo. Europa-América, Lisboa.
Fialho, Manuel & Saramago, Alfredo (1998) – Cozinha Alentejana. Assírio e Alvim, Lisboa.
Galopim de Carvalho A. M. (2002) – Com Poejos e Outras Ervas, Âncora Editora.
Garcia, L. Jacinto (1999) – Comer como Diós Manda. Ed. Destino, Barcelona.
Pinheiro, Monarca (1999) – Terra de Grandes Barrigas onde só há Gente Gorda. Editora Alentejana, Évora.
Ribeiro, Orlando (1972) – Mediterraneo, Ambiente e Tradizione. Hugo Murcia Ed.
Saramago, Alfredo (2001) – Gastronomia do Alentejo. Concurso de Cozinha Alentejana - as melhores receitas. Ed da C. M. Évora.

Karl Popper

If I thought of a future, I dreamt of one day founding a school in which young people could learn without boredom, and would be stimulated to pose problems and discuss them; a school in which no unwanted answers to unasked questions would have to be listened to; in which one did not study for the sake of passing examinations.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Troy Jollimore – Godless but good

Troy Jollimore – Godless but good
http://www.aeonmagazine.com/world-views/troy-jollimore-secular-ethics/

If there isn't already objective morality in the world, it isn't at all clear how adding God to the picture would bring such a morality into existence. Adding God would give us divine rewards and punishments, but that's only to add self-interested reasons to be ethical, not genuinely moral reasons. Similarly, adding God gives us a divine observer who can disapprove of murder and other wrong actions; but unless these actions are already morally wrong, it's not at all apparent how God's existence would magically transform them from permissible to forbidden. The idea that murdering innocent people is perfectly fine unless there is a God and he disapproves is not only deeply implausible, but positively immoral in its own right. To think such a thing is, in my view, a kind of moral failing in itself.

(via Instapaper)

"DÊEM-ME DUAS VELHINHAS, EU DOU-VOS O UNIVERSO"

Daria um prémio da originalidade ao título de cima. O seu autor é Tiago Pereira, que acaba de editar um álbum de recolha de música popular portuguesa com esse mesmo título.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

CONTRA O ACORDO ORTOGRÁFICO 2

De início fui indiferente ao Novo Acordo Ortográfico. Não tendo percebido as suas razões resolvi não o seguir. Depois continuei indiferente. Não vi demonstrada qualquer vantagem pelos seus proponentes nem encontrei qualquer utilidade na sua aplicação. Agora já não sou indiferente: sou contra, como o Desidério Murcho e tantos outros, ao verificar a enorme trapalhada que se instalou no espaço de língua portuguesa.

NÃO HÁ FUMO SEM FOGO

Há fumo. Ontem foi noticiado que o afastamento de Cândida Almeida do seu importante cargo na Procuradoria Geral da República poderia estar relacionado com processos  relacionados com Alberto João Jardim, que poderiam exigir perda de imunidade devido a irregularidades graves nas contas da Madeira, e a Miguel Relvas, por eventual favorecimento da empresa Tecnoforma gerida por Pedro Passos Coelho. Ver, por exemplo, aqui. Haverá fogo?

O COLONIALISMO NUNCA EXISTIU!



Nota de abertura do livro de Gabriel Mithá Ribeiro, com o título em cima, que acabou de sair na Gradiva:


O colonialismo nunca existiu, o racismo deixou de existir, a violência colectiva é fabricada — três frases que sumariam o conteúdo do livro. Primeiro, porque o legado da história remete para um vasto conjunto de processos de colonização, pelo que a rotulagem selectiva de alguns deles de colonialismo não é mais do que uma das fórmulas de instrumentalização política de um fenómeno milenar. Segundo, porque o contexto histórico que sustentou as tipificações do racismo elaboradas no século XIX e sobretudo no XX — cujos expoentes foram, no hemisfério norte, o nazismo e, no hemisfério sul, o apartheid, sem minimizar os enquadramentos conferidos pela colonização europeia (séculos XV-XX) e pela guerra fria (1945-1991) [1] — pouco ou nada tem a ver com as realidades do século XXI. Não sendo os fenómenos sociais e históricos imutáveis ou eternos, a sua natureza pode ir-se transformando de tal modo que o arrastar no tempo de tipificações relativamente rígidas torna-as anacrónicas. E terceiro, porque tem sido verificável, no passado ou no presente, que a violência colectiva é orientada e condicionada por referentes ideológicos, mesmo quando estes assumem aparências insuspeitas, como as científicas.

Desenvolver a fundamentação argumentativa dos postulados referidos constitui o leitmotiv do livro.

Após a formação de base em história, na segunda metade dos anos noventa enveredei por pós-graduações na área dos estudos africanos, domínio onde, em simultâneo, se cruzam de modo saliente, por um lado, os sintomas da ortodoxia dominante no pensamento académico e, por outro lado, os efeitos ambíguos das tendências das últimas décadas de aproximação entre diferentes disciplinas (sociologia, história, antropologia, psicologia social, economia, relações internacionais, ciência política, entre outras), práticas designadas por interdisciplinaridade, multidisciplinaridade ou transdisciplinaridade.

Como outros domínios, os estudos africanos constituem uma área interdisciplinar onde a produção de saberes se organiza em torno de fenómenos sociais que, séculos atrás de séculos, gerações após gerações, mais têm preocupado as sociedades e aqueles que se esforçam por compreendê-las. Reporto-me, por exemplo, aos estudos de fenómenos conotados com a escassez, produção e distribuição de recursos ou de rendimentos; a discriminação social e violência colectiva (racial, étnica, de género, de orientação sexual, de opção religiosa); fenómenos associados a outro tipo de relações de dominação no interior e entre as sociedades (tipificadas na colonização) ou sobre transições políticas (independências, revoluções, golpes de Estado).

Os estudos sobre as sociedades das periferias do sistema internacional (recorro à terminologia por comodidade discursiva), como as africanas, têm a vantagem de permitir captar a mesma categoria de fenómenos que afectam em graus diversos a generalidade das sociedades, com destaque para as sociedades do centro como as ocidentais (repito a comodidade discursiva), mas fenómenos que tendem a assumir, nas sociedades periféricas, características bem mais salientes do que nos centros. Se a opção pelas periferias permite a utilização na aparência mais facilitada dos instrumentos de análise proporcionados pelas ciências sociais e humanidades, ao mesmo tempo aumenta o potencial de distorções interpretativas introduzidas ou alimentadas pelos discursos académicos. Trata-se de enviesamentos analíticos que condicionam negativamente a qualidade dos conhecimentos produzidos, mas que também podem assumir a particularidade de influenciar no mesmo sentido as dinâmicas das próprias realidades, sobretudo em contextos onde os tecidos sociais são mais fragilizados, nas periferias dos sistemas.

Por essas razões, os estudos sobre as sociedades e os seus fenómenos, numa primeira fase pensados enquanto periféricos, com o tempo acabam por se revelar centrais para a renovação do pensamento académico e do pensamento de senso comum. Se muitas outras razões não existissem (e existem) esta bastaria para tornar indivisíveis, nos dias que correm, as sociedades ditas periféricas das sociedades ditas centrais, posto que se verifica um permanente contínuo que crescentemente liga tais extremos. Partindo do prisma de quem vive nos centros, tanto quanto partindo do prisma de quem vive nas periferias, nos estudos das sociedades contemporâneas é verosímil considerar que quanto mais olhamos para o distante no espaço, mais cresce o potencial de captação do que é fundamental nas realidades que nos são quotidianas ou familiares.

Contudo, este livro não é necessariamente sobre questões europeias ou sobre questões africanas, nem preocupado de preferência com o presente ou sobretudo com o passado. O livro ambiciona ser mais do que a soma das partes. A sua essência é reflectir sobre os bloqueios que impedem que o pensamento sobre as sociedades, em particular o pensamento académico que cada vez mais modela o pensamento de senso comum nas sociedades escolarizadas, entre de pleno direito no século XXI, isto é, no século pós-colonial, no século pós-apartheid, no século pós-guerra fria. É a melhor forma de reajustarmos as representações do mundo enquanto casa-comum, hoje mais salientes do que alguma vez no passado. No nosso século, as reinvenções dos significados sobre o que une e separa a espécie humana passam, portanto, pela reinvenção da construção do saber sobre as sociedades, o que remete as ciências sociais e humanidades para um lugar central nesse processo, lugar que, por culpa própria, o trabalho académico em parte tem alienado.

Tratando-se de uma abordagem eminentemente epistemológica sobre o sentido da construção do saber empírico, opto por algum pragmatismo. Significa fazer assentar a argumentação que apresentarei em temas concretos, temas com facilidade referenciados pelo senso comum, bem como em dados empíricos qualitativos que permitam compensar a natureza abstracta das reflexões. Na sequência do texto, o primeiro capítulo abordará os bloqueios associados às interpretações sobre a dominação colonial europeia em África, em particular a fase final que antecedeu as descolonizações.

O segundo capítulo reequacionará os significados interpretativos atribuídos aos fenómenos raciais num mundo em que as sociedades homogéneas tendem a fazer parte apenas do passado, constituindo a efervescência de fundamentalismos sintomas da relevância das transformações em curso. O terceiro e último capítulo sustentar-se-á na apreciação crítica de uma publicação que reúne um conjunto de pesquisas empíricas (Pureza; Roque; e Cardoso, 2012) para reflectir sobre as limitações detectáveis nos estudos dos fenómenos da violência e da criminalidade.

Uma vez que cada um dos três capítulos foi elaborado enquanto peça autónoma (com introdução, desenvolvimento e conclusões), não considerei útil acrescentar um último capítulo específico com conclusões gerais. A intenção é produzir um texto o mais sucinto e sistematizado possível que torne acessíveis ao grande público matérias essencialmente teóricas e metodológicas, as do domínio da epistemologia, por hábito marginalizadas dada a sua suposta natureza abstracta, complexa ou árida. Todavia, trata-se de matérias que remetem para o coração do conhecimento, isto é, está em causa a dimensão decisiva na compreensão e interpretação eficaz do mundo que nos rodeia e do qual somos parte, quer quando vestimos a pele de académicos, quer quando vestimos a pele de pessoas comuns que se relacionam com os outros e com o mundo, quer ainda quando assumimos, mais não seja para nós mesmos, o papel de pensadores ou de teóricos intuitivos sobre a realidade quotidiana, atitude intrínseca à condição humana.

Gabriel Mithá Ribeiro

NOTA:
[1] Balizada, a montante, pelo final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a consequente separação da Alemanha em RFA e RDA (formalmente criadas em 1949) e, a jusante, pelo derrube do Muro de Berlim (1989, construção iniciada em 1961), reunificação da Alemanha (1990) e dissolução da URSS (1991).

Taste in opera: a window to the soul | Patrick West | spiked

Taste in opera: a window to the soul | Patrick West | spiked
http://www.spiked-online.com/site/article/13316/

There remains something irredeemably teenage and 'emo' about Wagner, with his adolescent belief that there is something glorious and romantic about death. There's enough self-pity and death worship in modern society as it is. The spate of public figures boasting their wish to be euthanised is but the most recent example. There's a surplus of self-important anger in the Twittersphere. There's too much emphasis on 'meaning' in the art world, in that works 'pose difficult questions' and 'raise important issues' at the expense of producing something pleasing for its own sake. Clichés about 'relevance' and 'meaning' are invariably a defence against well-founded charges of mediocrity and narcissism.

(via Instapaper)

Contra o acordo ortográfico

Eis uma iniciativa louvável e que deveria repetir-se por todo o país: os estudantes do Instituto Superior Técnico, de Lisboa, aprovaram uma moção de rejeição do Acordo Ortográfico e organizaram o movimento para a revogação do acordo ortográfico, com o nome Desacordo Técnico. Era bom ver Desacordo de Letras, de Ciências, de Direito, de Medicina, etc., repetindo-se por todo o país. Era bom ver os estudantes do ensino secundário também mobilizados. E, já agora, os professores. O acordo ortográfico é uma fraude que nada harmoniza entre Portugal e o Brasil: ficamos com mais vocábulos diferentes do que tínhamos antes. E ao mesmo tempo violamos a nossa língua de maneiras arbitrárias.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...