Minha recensão de um livro da Guerra & PAZ e do IEACGO:
O
Instituto de Estudos Avançados em Catolicismo e Globalização - IEAC-GO publicou, em
Novembro de 2021, em parceria com a editora Guerra & Paz, o livro Sonda
o meu coração no meio da noite, com o subtítulo Cartas de Despedida e
anotações da Resistência ao Terceiro Reich (1933-1945), editado por Helmut
Gollwitzer, Kaethe Kuhn e Reinhold Schneider. A obra é, como o subtítulo
indica, uma compilação de cartas de despedida de condenados à morte pelo regime
nazi, que saiu, com muito êxito, na Kaiser Verlag, de Munique, em 1954 (a
versão portuguesa é um pouco condensada, dado o tamanho do original). O título
foi extraído do Salmo 17, «Oração de um Inocente contra os inimigos». Na
edição da Difusora Bíblica, que está on-line, reza assim esta súplica (usando o termo
«perscrutar» em vez de «sondar»): «Ouve, Senhor, a minha causa justa,/ atende o
meu clamor./ Escuta a minha oração,/ que não sai de lábios mentirosos./ Venha
de ti a minha sentença,/ pois os teus olhos descobrem o que é justo.//
Perscruta o meu coração, mesmo durante a noite, submete-me à prova de fogo/ e
não encontrarás em mim iniquidade; a minha boca não transgrediu./ Contrariamente
às acções dos homens, conservei-me fiel à suas palavras./ Dirigi os meus passos
por duras veredas; os meus pés não vacilaram nos teus caminhos.» Como diz
Afonso de Reis Cabral, no prefácio, um «salmo é também o grande desejo de ser ouvido
no silêncio e na solidão». Trata-se, portanto, de vozes que rompem o silêncio
da espera da morte.
Este
livro é duro, por vezes muito duro. Tem passagens que não são fáceis de ler sem
se ser sacudido por emoções fortes. A maior parte dos testemunhos está
perpassada pela fé em Deus e pela entrega à Sua vontade. Mas nem todos os casos
aqui relatados são de pessoas com fé religiosa, ou pelo menos nem todos os
registos de despedida falam de Deus. É, obviamente, o caso dos católicos e protestantes
condenados à morte, dado que Hitler não hesitou em livrar-se de opositores de uma e
de outra igreja. As igrejas católica e luterana, que no seu conjunto são maioritárias
na Alemanha, opuseram-se por vários modos ao projecto totalitário e às acções
dele decorrentes do inefável regime nazi. Muitos dos membros dessas igrejas pagaram com a
vida essa sua oposição, num tempo em que a vida humana não tinha nenhum valor para
as autoridades alemãs que sobre ela decidiam, muitas vezes sumariamente e sem
direito a uma defesa decente. As vozes que foram caladas tiveram razões de sobra para clamarem contra o monstro
fascista, mas é muito curioso que nestes depoimentos não se encontrem expressões
de ódio ou desejos de vingança, mas sim e apenas expressões de humanidade. Na
maior parte dos casos, há conformidade com a morte por ela ser considerada desígnio
de Deus. Poderá parecer absurdo em certas situações, mas os desígnios de Deus são «insondáveis», como diz o Salmo 139; «Como são insondáveis, ó Deus os teus
pensamentos! Como é incalculável o seu número.»
Há uma manifesta desigualdade entre os humanos e a divindade: Deus pode sondar
os pensamentos humanos, mas os humanos não podem sondar os pensamentos de Deus.
Quem
são os editores do livro? Helmut Gollwitzer (1908–1993) é o mais conhecido: foi
um teólogo protestante, escritor e simpatizante das ideias socialistas.
Discípulo do suíço Karl Barth, o maior teólogo protestante do século XX, apoiou,
na época nazi, a chamada Igreja Confessante, um movimento protestante
minoritário que tentou resistir ao domínio da Igreja Protestante pelo governo
nazi. Um dos líderes desta igreja foi o pastor luterano Martin Niemoeller, que
foi preso nos campos de concentração de Sachsenhausen e Dachau (ele é o autor do
texto «Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei-me; afinal de contas, eu
não era comunista. (…) Quando eles vieram por mim, não havia mais ninguém para
protestar», muitas vezes atribuído a Bertold Brecht). Em 1940, Gollwitzer foi
proibido de falar em público e, mais tarde, foi incorporado numa unidade de
assistência médica na frente oriental da guerra. Em 1945, foi preso pelos
soviéticos e enviado para um campo de trabalho e reeducação, de onde só foi
libertado no final de 1949. Em 1950, sucedeu a Barth como professor de Teologia
Sistemática na Universidade de Bona. Na década de 1950, lutou contra a
instalação de armas nucleares na Alemanha. Na década de 1960, quando era
professor da Universidade Livre de Berlim, apoiou os movimentos estudantis,
muito activos nessa época.
Por
sua vez, Kathe Kuhn (Lewy de seu nome de solteira) (1896-1971) era a esposa do
filósofo judeu Helmut Kuhn que, em 1938, emigrou para os Estados Unidos, tendo
sido professor de Filosofia na
Universidade da Carolina do Norte. Durante os anos do exílio o casal, que
entretanto se converteu-se ao catolicismo, ajudou muitos refugiados. Voltaram
em 1949 à Alemanha, tendo ele ocupado um lugar na Universidade de Erlangen.
Por último, Reinold Schneider (1903–1958) foi um escritor – poeta, romancista e
ensaísta , cujos escritos foram
progressivamente ganhando um pendor religioso no quadro do catolicismo. É
curioso que Luís de Camões se encontre entre as suas influências, tendo mesmo escrito
sobre ele. Schneider fez uma viagem a Portugal, sobre a qual escreveu um diário
de viagem, que ainda não está traduzido em português. É ainda autor de uma peça
de teatro sobre o Marquês de Pombal e o Grande Terramoto de Lisboa. Escreveu
poemas contra a guerra, que foram proibidos na Alemanha nos anos 1940. Apesar de
ter sido perseguido e mesmo acusado judicialmente, o facto é que a guerra
acabou sem que ele tenha ido a julgamento.
O
livro encerra os depoimentos de alguns nomes conhecidos e de muitos
desconhecidos. Escolhemos aqui alguns nomes exemplos de uns e de outros. Um dos
mais famosos foi Dietrich Bonnhoeffer (1906-1945), pastor luterano e teólogo
como Gollwitzer. Também ele ajudou a formar a Igreja Confessante. Acusado de
co-autoria do fracassado atentado da Abwehr (Serviços de Informação do Exército) em 1944 (foi
o «golpe de 20 de Julho», que recorreu a duas bombas, uma das quais não
explodiu) a Hitler, foi preso com outros conspiradores e, depois de um
julgamento breve, enforcado numa prisão de Berlim, nos dias finais da guerra na
Europa, poucos dias antes do suicídio de Hitler. Com ele foram enforcados seis
outras pessoas, incluindo o almirante Wilhelm Canaris, comandante da Abwehr, e o
general Hans Oster, vice de Canaris. O líder e executor do atentado foi o coronel Claus von Stauffenberg (1907-1944),
que era conde, executado por fuzilamento (o filme, de 2008, «Valquíria»,
com Tom Cruise, conta a história). Bonnhoeffer deixou estas palavras no livro
em apreço: «Eu acredito que Deus pode e quer fazer surgir o bem a partir de
tudo, também a partir do maior mal. Para isso, Ele precisa de seres humanos que
contribuem para o melhor de todas as coisas».
Outro nome grande nome da teologia que foi mártir no tempo nazi e que tem escritos neste livro é a freira carmelita, de origem judaica, Irmã Teresa Benedita da Cruz, de seu nome próprio Edith Stein. Por coincidência, tanto ela como Bonhoeffer nasceram em Breslau, na antiga Prússia, mas hoje na Polónia. Foi uma das primeiras mulheres a fazer um doutoramento em Filosofia na Alemanha. Converteu-se ao catolicismo aos 31 anos. Para fugir à perseguição na Alemanha refugiou-se num carmelo nos Países Baixos, mas, após a invasão alemã daquele país, foi levada para o campo de concentração de Auschwitz – Birkenau, onde foi executada numa câmara de gás. Numa carta a sua mãe em 1942 escreveu, em palavras registadas no livro publicado agora entre nós: «Só se pode alcançar uma scientia crucis quando se chega a experimentar radicalmente a cruz.» Canonizada em 1998 pelo papa João Paulo II, alguns dos seus escritos teológicos e místicos estão publicados em português.
No
esforço de Hitler para eliminar rapidamente o catolicismo, pelo menos a sua
influência na esfera política, milhares de pessoas foram presas nos anos de 1930 e
1940, entre elas muitos intelectuais ligados à igreja. O ditador não queria menos
do que a total subordinação da Igreja ao Estado, o que para a Igreja era isustentável.
Em 1937, na encíclica Mit Brennender Sorge («Com Cuidado Ardente»), o
Papa Pio XI acusava o regime nazi de ser «fundamentalmente hostil a Cristo e à
sua Igreja.» Os colégios católicos na Alemanha seriam fechados em 1939 e o
mesmo aconteceu a toda a imprensa católica em 1941. Nesse mesmo ano, as
autoridades decretaram a dissolução de todos os mosteiros e abadias na Alemanha,
tendo começado a expropriar os bens da Igreja. Muitas instalações eclesiais foram
ocupadas pela SS, o sinistro corpo comandado por Himmler. Alguns
padres alemães opositores do regime foram
enviados para campos de concentração, incluindo o deão católico da Catedral de
Berlim, Bernard Lichtenberg, que morreu a caminho de Dachau (entretanto, ele foi beatificado). No campo de
Dachau, dos 2720 clérigos presos que lá
passaram, 95% eram católicos, sendo os jesuítas o maior número. Os que
não perderam a vida foram libertados em 29 de Abril de 1945 pelo exército norte-americano:
o que os militares viram foi aterrador. Hitler esperava descristianizar completamente
a Alemanha após a vitória final na guerra, uma vez que sua ideologia não
poderia aceitar um estabelecimento autónomo, com legitimidade alheia à do
governo. Mas, como é sabido, foi implacavelmente derrotado pelos Aliados.
Há
outros nomes de vítimas no livro. Alguns deles, tal como Stauffenberg (que
pertencia a uma família católica da Baviera, estado onde prevalece o
catolicismo), eram nobres: é o caso dos condes Ulrich Wilhelm Schwerin von
Schwanenfeld, Peter York zu Wartemburg e Heinrich von Lehndorff-Steinort. E há alguns
padres católicos, dois dos quais jesuítas. Um foi o filósofo Alfred Delp
(1907–1945), que foi enforcado em 1945, acusado de implicação no referido atentado
de 20 de Julho de 1944. De facto, Delp não estava envolvido nessa tentativa de
golpe militar. Transferido para uma prisão em Berlim, passou aí a rezar missa dissimuladamente e a escrever
cartas e reflexões sobre temas espirituais, que foram secretamente enviados
para fora, antes de ele ter sido julgado. Durante a prisão, a Gestapo ofereceu-lhe
a liberdade, desde que ele repudiasse a ordem a que pertencia, mas ele recusou sem hesitar.
As suas condições prisionais foram extremamente difíceis, uma vez que, tal como todos prisioneiros implicados no atentado de 20 de Julho, era obrigado a usar
algemas noite e dia. Por ironia do destino, o juiz que o condenou morreria no
mesmo dia da execução da sentença devido a um bombardeamento aéreo dos Aliados.
Um outro jesuíta assassinado que é autor de um depoimento registado no livro em apreço foi Rupert
Meyer, que escreveu 1937 a um funcionário da Gestapo, a polícia secreta, como a provação lhe tinha reforçado a confiança em Deus: «Que
Deus existe isso sempre o soube, mas que Ele é tão bom, tal como eu pude
experimentar nas últimas duas semanas, isso não me ocorreria ser possível».
Mas
há também algumas figuras anónimas. O seu drama não é menor por os seus nomes terem
permanecido desconhecidos. Um filho de agricultores
da região dos Sudetas escreveu aos pais em 1944: «Agradeço-vos por tudo o que de
bom fizeram por mim desde a minha infância; perdoem-me, rezem por mim…». Um
oficial de SS condenado por traição (os militares traidores eram fuzilados sem contemplações)
escreveu a um padre em 1949: «Gostaria de lhe pedir que escrevesse umas linhas
à minha mãe para lhe comunicar que fui integro e valente e para lhe dizer que o
meu ultimo desejo é que ela também o seja. Agradeço-lhe a consolação que me
trouxe nos últimos dias da minha vida e parto com fé numa vida melhor no Além.»
A
promessa de vida eterna serve de consolação às pessoas que têm fé religiosa.
Mas há, ainda que em menor número neste livro, pessoas sem fé que experimentam
a espera da morte. Julius Fucik, comunista checo, foi preso pela Gestapo em
1942 e executado em Berlim no ano seguinte por ter integrado a resistência comunista
(presume-se que fosse ateu). Logo após ter sabido da sentença que o condenava à
pena capital, escreveu aos pais e irmãs: «O Inverno prepara os homens, tal como
as árvores, para a sua chegada. Acreditai em mim: isto não retirou nada, mas mesmo
nada, à alegria que sinto e que ressurge diariamente com uma melodia qualquer de Beethoven. Um homem não fica mais
pequeno, mesmo quando lhe cortam a cabeça. E desejo ardentemente que, quando tudo
tiver terminado, não vos lembreis de mim com tristeza, mas com a mesma alegria
com que sempre vivi.» É muito interessante que ele tenha encontrado lenitivo na
música de um génio.
Um
dos depoimentos que mais me tocou - e é verdadeiramente difícil escolher - foi
o de Kim Malthe-Bruun, grumete e marinheiro de segunda classe dinamarquês, que
foi acusado por ter fugido com uma lancha alfandegária da Dinamarca para a
Suécia transportando armas. Acabou fuzilado. Escreveu em 1945 uma
carta de despedida à namorada onde se encontra um texto belíssimo:
«Penso
em Sócrates. Lê sobre ele e ouvirás Platão contar precisamente o que agora
experimento. Tenho-te um amor sem limites, mas ele não é agora maior do que
sempre foi. O que me apunhala o coração não é nada; é como é, e tens de
compreender isto. Há algo que vive em mim e que me queima - um amor, uma inspiração,
chama-lhe o que quiseres, mas é algo para o qual ainda não consegui encontrar
palavras. Agora, morro e não sei se terei ateado uma chama num outro coração,
uma chama que me sobreviverá; todavia, estou sereno, pois vi e sei que a
natureza é tão rica, que ninguém repara se uns quantos rebentos forem calcados
com os pés e morrerem. Porque deveria eu desesperar, quando vejo toda a riqueza
que ainda vive?»
E
continua:
«Ergue
a cabeça, tu, cerne mais precioso do meu coração, ergue-a e observa; o mar ainda
é azul, o mar que tanto amei e que nos envolveu aos dois Vive agora por nós os
dois. Fui embora e estou longe, e o que se mantém não é o pensamento de que devas
ser uma mulher do tipo X ou Y, mas de que te faças uma mulher de espírito vivo
e afectuoso, amadurecida e feliz. Não podes enterrar-te no luto, porque, assim,
ficarias ancilosada, atolada numa idolatria de mim e de ti própria, e perderás
aquilo que em ti mais amei: a tua feminilidade.»