“Em todas as decadências o primeiro sintoma é a depravação do sentimento de amizade”
(Pierre-Joseph Proudhon, 1809-1863).
(Pierre-Joseph Proudhon, 1809-1863).
Ainda sou do tempo (não, não vou falar do anúncio televisivo da simpática velhinha que dizia custar no seu tempo um pacote de arroz 2 escudos e cinquenta centavos!) em que o desporto não era uma indústria gigantesca trituradora dos seus heróis com pés de barro, a exemplo, de Hollywood com as suas estrelas, o seu apogeu e a sua queda.
Vou referir-me a uma actividade física de princípios da década de 60 que me mereceu a seguinte análise:
“Porém, por vezes, algo de destrutivo surge pretendendo por força do gáudio menosprezar uma força avassaladora que nem credos políticos ou religiosos, diferenças rácicas, ou, sequer, desníveis sociais, culturais ou económicos dos seus praticantes conseguem travar e que e muito contribui para o princípio cristão da fraternidade humana: o DESPORTO.
Desporto, magia que tem merecido a atenção de cientistas, é tema de literatos e artistas e, outrossim, de pretenso escárnio de medíocres que vêem no corpo a obra tentadora do demónio. Os primeiros nele descortinam um fenómeno educativo, os segundos, e se nele nos detemos é porque, infelizmente, pertencem, ainda nos dias de hoje, ao número daqueles que nada mais encontram nele que o simples pontapear de uma bola!"(“A Tribuna, Lourenço Marques, 29/10/1962).
Foi, portanto, com muito agrado e alguma emoção que li hoje o antigo treinador Manuel Fernandes prestar um depoimento sobre José Mourinho, licenciado em Educação Física e Desporto e doutor honoris causa, pela Universidade Técnica de Lisboa (e nessa cerimónia, com humildade grata dizer que sem a faculdade não seria o treinador que é hoje).
Começa Manuel Fernandes por desfazer más-línguas que espalharam maldosamente, urbi et orbi, que José Mourinho (já formado pelo ISEF) no início da sua notabilíssima carreira tinha sido contratado pelo Sporting para ser simples tradutor do treinador inglês Bobby Robson.
Dou a palavra a Manuel Fernandes - que, segundo ele próprio, desenvolveu uma amizade com José Mourinho que dura há décadas”- com a transcrição de um texto publicado hoje no SAPO DESPORTO:
"Conheci o José Mourinho quando estava no Vitória de Setúbal, e o Zé era o treinador dos juniores. Durante a semana tínhamos sempre um jogo com as reservas, e eu via os jogos dele e logo vi que ele era diferente, tinha muita qualidade. Reparei logo num forte espírito de liderança e chamei-o para trabalhar comigo. Ninguém trabalhava com 26 anos no futebol profissional naquela altura", começou por dizer Manuel Fernandes ao "SAPO Desporto".
"Ele nunca foi para o Sporting para tradutor da equipa técnica. Isso é mentira. O Bobby Robson reconheceu-lhe imediatamente o mérito e a capacidade e por isso levou-o para o FC Porto, e depois para o Barcelona. No Sporting estávamos a construir uma equipa fortíssima, em 1993/1994 tivemos provavelmente a melhor equipa dos últimos anos até hoje. Quando o Robson trouxe o Valckx então ficámos com uma defesa fortíssima", recordou Manuel Fernandes.
Por seu turno, nessa mesma notícia, no seu regresso a Alvalade para orientar o Chelsea, José Mourinho não esquece as raízes da sua longa caminhada no futebol profissional, a relação de amizade, e a "dívida" para com Manuel Fernandes, o homem que o apresentou a Bobby Robson no início da década de noventa.
"Começo pela minha relação com o Manuel Fernandes porque é uma relação sempre de dívida. Sou eu que lhe devo a ele e ele nada me deve a mim. Foi ele que acreditou em mim e que me deu a mão e a única coisa que de facto que eu lhe dou em troca é uma amizade e um respeito enorme sendo verdadeiramente um amigo, apesar de à distância, e que me tem sempre acompanhado na minha carreira", disse José Mourinho.
Regresso a Manuel Fernandes. Questionado sobre as palavras de José Mourinho, acerca da sua importância no início da sua carreira como treinador, o antigo internacional do Sporting, recordou com saudade os tempos em que o actual treinador do Chelsea, hoje adversário do Sporting, convivia à mesa com antigas glórias do clube leonino e disputavam "peladinhas" depois de longas conversas sobre futebol:
"Foi muito bonito ouvir isso, continuamos a falar e somos amigos, apesar de já não nos vermos há algum tempo. Nós gostávamos de conviver e conviver à mesa é onde temos mais tempo para conversar. Às vezes ainda jogávamos à bola. Naquele tempo ele ainda conseguia jogar. Ele era um jogador de marcação, era terrível a marcar. Era muito forte a entrar à bola. Pressionava muito o homem da bola", recordou Manuel Fernandes ao SAPO Desporto”.
Esta noite, José Mourinho volta a Alvalade para defrontar o Sporting enquanto técnico de um clube inglês depois de ter começado a sua carreira no clube leonino com um treinador inglês, o eterno Bobby Robson. O jogo está agendado para as 19h45, e Alvalade volta a vestir-se de gala para a Liga dos Campeões com um adversário muito especial”.
É deste Desporto, representado por desportistas de eleição com uma fraternidade criada nos campos do futebol, que José Mourinho e Manuel Fernandes se vão reencontrar num abraço fraterno numa altura que o Chelsea joga com o Sporting e, não como tantas vezes, em que duas equipas jogam uma contra a outra numa reminiscência medieva de torneios ou justas em que se jogava a própria vida. Aliás, Pierre Coubertin, criador dos Modernos Jogos Olímpicos, deu a seguinte definição de Desporto: “Desporto é um culto voluntário e habitual de exercício muscular intenso suscitado pelo desejo de progresso e não hesitando ir até ao risco” (Francisco Lázaro, atleta da 1.ª equipa olímpica portuguesa, desfaleceu durante a Prova da Maratona, vindo a morrer horas depois)
Boa sorte para ambos no jogo de hoje à noite, no Estádio de José Alvalade, para a Liga dos Campeões. Manuel Fernandes, em indesmentível amor à camisola dos “leões”, que representou como jogador/treinador e continua a servir como comentador desportivo. José Mourinho, com o coração dos tempos do Sporting e agora com a razão do seu serviço ao Chelsea. Como escreveu Blaise Pascal: “O coração tem razões que a razão desconhece!”