Crónica do ensaísta Eugénio Lisboa
escrita com um realismo que nos torna presente neste almoço/tertúlia de
personagens da vida Cultural Portuguesa. Passo a transcrever:
“Conheci
João Bigotte Chorão, há 30 anos, a completarem-se em Setembro próximo. O
pretexto para o encontro foi um almoço congeminado e organizado por esse
excelente “go-between” literário que foi o Luis Amaro. No almoço, que teve
lugar num restaurante do Parque Mayer, estiveram também presentes, se o meu
diário e a minha memória me não enganam, o João Rui de Sousa, a Joana Varela e
o próprio Luis Amaro.
Falámos de
muita coisa, mas falámos, sobretudo, lembro-me bem, de Camilo, em atenção ao
João Bigotte Chorão, camiliano convicto. Entendemo-nos bem, eu e o João, e
achei logo que podia ficar seu amigo, apesar de diferenças ideológicas e
religiosas. Estas diferenças nunca, para mim, serviram de empate à amizade.
Para o João, pelos vistos, também não.
Um pouco
mais tarde, passámos a ver-nos, com uma certa regularidade espaçada, por via de
uma agradável tertúlia que reunia no restaurante Galeto, ao Saldanha, na qual, além de nós, participavam os meus
prezados amigos Jorge Martins, Alfredo Campos Matos e Francisco Gonçalves. A
tertúlia era viva, bem humorada, bem apimentada com as várias contribuições dos
cinco participantes. Cada um tinha a sua área preferida. Ao Campos Matos, por
exemplo, puxava-lhe o pé para o Eça de Queiroz (com um “z” terminal). E assim
por diante. João Bigotte Chorão, com a sua voz de baixo e os seus itálicos bem
sublinhados, dava a sua empenhada e capitosa contribuição à conversa da
tertúlia, a qual se prolongava, com fluência, até às cinco da tarde.
Era, para tudo dizer, um excelente conviva,
com um elevado sentido de humor e uma vastíssima leitura, que lhe permitia
condimentar, com gosto, o seu discurso afável. Agora que nos deixou, a tertúlia
vai sentir imensamente a sua falta.
Nascido na
Guarda, há 85 anos, João Bigotte Chorão licenciou-se em Direito, em Coimbra,
mas não exerceu nunca nessa área. Foi professor do ensino particular,
funcionário público e, sobretudo, director literário da Enciclopédia Verbo.
Além de dezasseis livros que deixa publicados, fica também, dele, colaboração
dispersa por jornais e revistas, como, por exemplo, Távola Redonda, Tempo
Presente, Colóquio/Letras e O Observador. Foi membro (assíduo) da
Academia de Ciências de Lisboa e do Instituto Luso-Brasileiro de Filosofia.
Camilo foi,
como dissemos, uma das suas paixões, a ele tendo dedicado valiosa bibliografia.
Outras admirações foram Miguel Torga, Carlos Malheiro Dias, João de Araújo
Correia, Tomaz de Figueiredo e, fora de Portugal, Papini, Julien Green e
Montherlant. Entre os dezasseis livros que nos lega, estão também dois belos,
inteligentes e sensíveis volumes de diário: Diário
quase completo (2001) e Diário –
2000/2015 (2018). O primeiro destes dois livros recebeu o Grande Prémio de
Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores.
De entre os
seus livros mais recentes, gostaria de destacar aqui o excelente volume de
ensaios e críticas, intitulado, significativamente, Além da Literatura, que tive ocasião de apresentar ao público em
2014. Nele, João Bigotte Chorão faz questão de valorizar um “além da
Literatura”, como componente importante e vital a ter em conta, para além da
chamada “literariedade”. Em Torga, em Papini ou em Camilo, grandes espíritos
desassossegados, Bigotte Chorão sonda, para lá de valores de escrita, algo mais
a que, falando de Papini, chama “suplemento de alma”. A literariedade era, para
este autêntico escritor, um valor importante, mas não lhe bastava. Fascinava-o
a inquietação espiritual, o desassossego, a agonia, isto é, a "luta”
interior de grandes escritores que nos atingem por muito mais do que o “estilo”
ou a “forma”.
Falando, por
exemplo de Papini, observava: “Repudiando o esteticismo finissecular, procurou
na literatura o que não encontrara na filosofia: a alma, que se desobriga em
exames de consciência e confissões públicas. A esta luz de catarse literária se
há-de ler Um Homem Liquidado. Aí se
desvela, com voz alterada, o desencanto de um homem que, depois de provar
alimentos os mais diversos, tem fome de outro pão e sede de água de fonte não
inquinada.”
Bigotte
Chorão, verdadeiro escritor e, portanto, manipulador dos valores de escrita,
buscava, no entanto, “outro pão”, buscava, em suma, um “além da Literatura”, que
habita também em espíritos inquietos e agónicos, como são os de Camilo, Torga
ou Papini. Não, repito, que desprezasse os valores da escrita: dono de um
estilo ático, enxuto e escorreito, o autor de O Reino Dividido prestava homenagem
aos valores da linguagem mas não se escravizava a esta. Tivemos já ocasião de aludir a um exemplo extremista desta
tendência a pôr os ovos todos no cesto da linguagem, ao falarmos de Vladimir
Nabokov, que não hesitava em fazer esta afirmação: “A palavra, a expressão, a
imagem são a função da literatura. Não as ideias.”
João Bigotte
Chorão estava completamente afastado desta atitude patologicamente extremista e
muito mais se aproximava desse grande escritor de prosa descascada e escorreita
– quase “neutra” – que se chamava George Orwell, o qual sustentava que “grande
literatura é simplesmente linguagem carregada de sentido até ao último grau
possível.” Prospectando o desassossego singular de autores como Camilo, Torga
ou João de Araújo Correia, João Bigotte Chorão avaliava-lhes, com gosto, a
linguagem, mas não avaliava menos aquilo que a recheava: o miolo, o conteúdo, o
sentido – a alma.
Valores que
prezava nos outros e cultivava ele próprio. Valores que apareciam, com
profusão, na sua escrita e na sua saborosa conversa, sempre recheada de estilo
mas também de valioso e capitoso conteúdo. Falando, algures, de Camilo, refere
“o génio não apenas verbal e confessional” do grande escritor: foi a combinação
irresistível desses dois prestígios – a linguagem e o miolo – que o cativou, não
só em Camilo, mas também nos escritores que pertencem – palavras suas – à
“família camiliana”: Aquilino Ribeiro, Tomaz de Figueiredo, João de Araújo
Correia, Agustina Bessa-Luis. Poderosos escritores que, mais do que fazerem literatura, antes fazem vida, muito embora o “literário”
esteja neles, forte e pujante.
Diarista e
ensaísta de exímio valor, julgo que se justificaria recolher-se agora os
verbetes de diário que terá vindo a redigir de 2015 para cá, bem como textos
dispersos por jornais, revistas e prefácios. Juntar-se-iam com particular
felicidade ao belo acervo de dezasseis títulos que temos actualmente ao nosso
dispor. Ficaríamos todos mais ricos e mais “recheados”. “