Minha recensão no JL de hoje do livro "O Mundo Imaginado," de June Goodfield, que faz um retrato científico e humano de Maria de Sousa:
Li com grande prazer O Mundo Imaginado.
Uma história de descoberta científica da ensaísta inglesa June Goodfield
quando o livro saiu na Gradiva em 1988. Reli-o agora, na 2.ª edição, que é uma
homenagem póstuma a Maria de Sousa (1939-2020), a imunologista portuguesa cujo
trabalho é descrito no livro, sob o pseudónimo de Anna Brito. E o meu prazer na leitura não foi menor.
A intelectual brilhante, mulher das
duas culturas - cientista e poeta -, está muito bem retratada nesta obra, que documenta
o seu trabalho de investigação em Nova Iorque entre 1975 e 1980. São raros os
livros que mostram como a ciência é por dentro, não apenas o trabalho diário no
laboratório, mas também e principalmente o impulso que impele o cientista, o
que o leva a dedicar a sua vida à ciência. A Maria (chamo-lhe assim, porque era
amigo dela) autorizou Goodfield a acompanhá-la ao longo de cinco anos, apenas
com a ressalva de não incluir o seu nome (um pudor natural, mas desnecessário,
uma vez que as suas raízes portuguesas e a sua carreira anterior são descritas).
A autora pôde entrar à vontade no laboratório da cientista e conversar com ela
e com a sua equipa. As duas cartearam-se e telefonaram-se. A Maria não se
coibiu de partilhar o seu eu, mesmo em partes mais íntimas. O capítulo 6 é
formado por cartas da cientista, quase um diário, numa das quais revela que “se
eu fosse poeta a tempo inteiro, cantando o dia cinzento e a noite prateada, gostaria
de ser Neruda.” A Maria era poeta em part-time,
embora só tenha publicado um livro de poesia - A Hora e a Circunstância,
com prefácio de Agostinho da Silva (Gradiva, 1988).
Um Mundo Imaginado atinge
o seu ápice quase no fim, quando a cientista responde finalmente à pergunta
sobre o que é a ciência. Compara-a ao
enamoramento: “O estado mais próximo que uma pessoa vulgar pode atingir do
sentido da essência do processo científico é quando se apaixona”. Invoca uma
cena do filme Dr. Jivago, que mostra um casal num comboio. “Estão só a dormir
juntos esse homem e essa mulher – e abraçados
um ao outro. É essa a essência do processo científico. Por outras palavras,
apaixonamo-nos pela natureza operacional.” A autora quer saber o que a natureza
operacional, respondendo a cientista: “Bom, se eu estiver a trabalhar com
ratos, tenho células de ratos. É isso a natureza operacional. Naquele tubo de
ensaio tenho uma fracção da natureza!“
A ciência é, portanto, a escolha
de um pedaço da natureza, de entre os inúmeros que esta tem, e não o largar
enquanto ele não se revelar. Maria continua a explicar o seu trabalho, usando essa
metáfora amorosa: “Veja o caso duma rapariga e dum rapaz que, por qualquer razão
desconhecida, são atraídos um pelo outro.” Como a autora não entende, a
explicação vem logo: “Temos uma célula que esteve sempre em circulação e ninguém
reparou nela. De repente, alguém se apaixona por ela. Porquê? O cientista não
sabe que se apaixonou, mas de repente sente-se atraído por essa célula, ou esse
problema. Então tem de passar por um processo de relacionamento activo, e isso
leva-o à descoberta. Primeiro há uma atracção cada vez maior, e o objecto das
nossas atenções esquiva-se (…) O rapaz continua o oferecer flores à rapariga.
Eu continuo a inventar conceitos cada vez mais elaborados (…) Tentamos arranjar
conceitos cada vez mais perfeitos, na tentativa de conhecer a célula. E, finalmente,
há um momento em que a rapariga reconhece o rapaz e já não se esquiva, aceita
subir ao monte com ele e levar as coisas para a frente, exprimindo-se completamente!
É esse o momento da descoberta.”
O sentido de “paixão pela ciência” era, para a Maria, mais
literal do que para o comum das pessoas. Uma descoberta científica consiste no
consumar de uma prolongada aproximação amorosa. Quando ocorre, é como se houvesse
um terramoto interior. Acrescenta a cientista: “É um momento de êxtase muito íntimo
[itálico no original] (…) Sempre que você me interroga sobre a ciência,
ocorrem-me imagens de entusiasmo, inocência, frescura e amor.”
Num livro de entrevistas a
Anabela Mota Ribeiro (Este Ser e Não Ser. Cinco conversas com Maria de
Sousa, Clube de Autor, 2016), que li num fôlego no meu luto pela Maria, a
imunologista fala da falta de defesas com que ficamos no acto de enamoramento. A
imagem que dá é geológica: um abalo das placas tectónicas. Nesse livro ela fala,
embora com contenção, dos seus enamoramentos. Nunca casou, nem teve filhos,
talvez pela sua necessidade de dedicação plena à ciência.
Uma dos possíveis objecções à referida
metáfora amorosa é que qualquer pessoa se pode apaixonar, mas já não pode efectuar
uma descoberta científica. Mas a Maria discorda: “Em sociedade, qualquer
pessoa [itálico no original] é capaz de compreender a arte e a ciência; e
qualquer pessoa pode estar consciente do esforço conjunto, a ponto de conseguir
compreendê-lo e, para além de o compreender, de ser objecto de uma experiência
que faça do mais pobre e do menos capaz um poeta ou um cientista.” Goodfield
pergunta-lhe se isso pode acontecer com a mulher da limpeza do laboratório e a resposta
é inequívoca: “Claro, com a Sr.ª Wiggins também. Estou certa de que será possível.
Já conseguimos com o ensinarmos-lhe palavras que ela não conhecia. Quando
conseguirmos que as pessoas em geral compreendam a linguagem dos cientistas, a
ciência não será muito diferente da arte.”
Temos aqui uma bela descrição da cultura
científica. Levar a ciência às pessoas, incluindo a mulher da limpeza. E
mostrar que a ciência é muito semelhante à arte. Ciência é amor à natureza e aos outros,
partilhando a beleza encontrada.
Maria de Sousa morreu de Covid-19 no passado
dia 14 de Abril. Foi uma perda irreparável para a ciência, para as letras e
para todos nós. Lúcida até ao fim, a Maria percebeu o que lhe tinha acontecido.
E escreveu um poema final, em inglês, que poeta João Luís Barreto Guimarães traduziu.
O seu testamento é uma enternecedora carta de amor: “Na minha
circunstância/ Posso morrer/ Perguntando-me se vos irei ver de novo/ Mas antes
de morrer/ Quero que saibam/ O quanto gosto de vós/ O quanto me preocupo
convosco/ O quanto recordo os momentos partilhados e queridos/ Momentos então/ Eternidades
agora/ Poesia / Riso/O sol-pôr/ no mar (…) Porque posso morrer e vós tereis de
viver/ Na vossa vida a esperança da minha duração.”
Obrigado,
Maria. Vais durar entre nós.