segunda-feira, 29 de junho de 2020

ENTREVISTA DE GUILHERME VALENTE



Entrevista do editor Guilherme valente a Inês Navalhas sobre a sua vida de edição de livros:


Guilherme Valente nasceu em Leiria a 1 de Julho de 1941. Editor e ensaísta, é licenciado em Filosofia e pós-graduado em Relações Inter-Culturais. Integrou, entre outras instituições, o Conselho Nacional de Educação e o Conselho de Opinião da RTP. Fundou em 1981 e dirige a Gradiva, uma editora de grande prestígio cultural que reconhecidamente deu um contributo singular para a promoção do conhecimento e da cultura, particularmente da cultura científica, sendo responsável pela edição de um vasto conjunto de notáveis autores nacionais e estrangeiros. Publicou inúmeros artigos na comunicação social, designadamente sobre temas de cariz cultural e educativo. 

No âmbito da sua ligação a Macau, criou nos anos 80, no Serviço de Administração e Função Pública, a revista bilingue Administração, cuja publicação prossegue hoje. Trabalhou na Fundação Macau, deu aulas de História das Ideias na Universidade de Macau, integrou a comissão instaladora do Instituto Português do Oriente e como assessor do último Governador ficou ligado várias relevantes iniciativas culturais no Território. De regresso a Portugal integrou a Comissão Instaladora do Centro Científico e Cultural de Macau e assumiu a iniciativa de criação do primeiro Mestrado em Estudos Chineses, encontrando na Universidade de Aveiro, no espírito esclarecido e empreendedor do então Reitor Professor Júlio Pedrosa, e no entusiasmo e empenho dos seus colaboradores, a parceria perfeita. Esse Mestrado, cuja relevância, carácter pioneiro, oportunidade flagrante, novidade acabando com um atraso de séculos na área foram imediatamente compreendidos pelo último governador, que proporcionou os recursos financeiros necessários para a qualidade singular com que foi realizado. Pôde ser dirigido por um reputado sinólogo norte-americano e integrar professores europeus qualificados, como em Portugal não havia. Ficou como um modelo nunca igualado.

Guilherme Valente foi condecorado por dois Presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio, sendo Comendador e Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique. Foi distinguido com o Grande Prémio Ciência Viva, na sua primeira atribuição. É Medalha de Prata da sua cidade, Leiria, onde na juventude escreveu no centro de uma animação cultural e fez política de oposição ao Regime que marcou a cidade.

P: Trabalhou em grandes editoras antes de criar a sua própria editora...

R: Passei por essas editoras em momentos muito diferentes da minha vida, da vida cultural, social e política do país. Na Europa-América e na Dom Quixote a questão social e política era um imperativo, um imperativo intelectual e moral. Uma preocupação sempre presente nos livros que queríamos editar. Formei-me na edição com um grande editor, o Francisco Lyon de Castro, uma recordação que guardo com muita saudade.

P: Quando foi isso?

R: Foi na década de 60. Também a Dom Quixote, posteriormente, com o Carlos Araújo -- uma figura da edição portuguesa cujo convívio foi também marcante para mim -- teve um papel importante no esclarecimento de muitos cidadãos, até aí afastados da política, para uma tomada de consciência crítica da situação que se vivia (em Portugal e no mundo, note-se). Para a Presença fui já com um conhecimento técnico mais elaborado e abrangente da actividade editorial. Foi outra experiência muito interessante, uma interacção muito enriquecedora com o Francisco Espadinha, outro grande editor, com uma visão global muito lúcida da actividade de edição, como o futuro viria a provar e hoje é evidente.

P: Que diferenças há entre as várias gerações de editores?

R: Antes do 25 de Abril, a questão política era um imperativo para os grandes editores com quem trabalhei. Depois do 25 de Abril, - foi essa e é essa uma das virtudes da liberdade - pôde emergir e manifestar-se a diversidade dos interesses, facto que iria reflectir-se na variedade da edição. Para mim chegara o tempo de tentar travar o combate pela cultura científica, de procurar participar no combate pelo conhecimento, pela educação. Promover a cultura científica era e é promover a liberdade.

Houve amigos que me diziam que não teria sucesso com os livros de divulgação científica, por a cultura portuguesa parecer ter, digamos, «horror à ciência», mas precisamente por isso era necessário publicá-los. E foi um êxito. A Gradiva fez aquilo a que os especialistas chamam «oferta criativa»: criar um público para os nossos livros. O que fizemos na realidade foi revelá-lo. Contei com a ajuda entusiasta de um pequeno grupo de amigos admiráveis, a que se foram juntando novos amigos de novas gerações, mantendo o ideal aceso. O mesmo diagnóstico sobre a realidade portuguesa, os mesmos grandes valores, as mesmas preocupações aproximaram-nos. Cito três da primeira hora que são exemplos: José Mariano Gago, inspiração e apoio permanentes, Jorge Dias de Deus, um apoio mais discreto, e mais tarde e de outra geração mas transbordante de entusiasmo e energia, Carlos Fiolhais, Amigos e companheiros nesse combate hoje . E na comunicação social amigos sem reserva como o José Manuel Fernandes, o Rui Trindade e outros. Até a minha amiga Clara Ferreira Alves, menos centrada na Ciência, percebeu a importância do que fazíamos e escreveu com veemência sobre livros que no início editámos.

Um efeito para o Guiness; nessa altura o JL publicava um top de vendas com cinco livros. A “Ciência Aberta” tinha sempre dois livros nesse top, por vezes três! Prova o que se pode construir. Tal como o “eduquês” (as chamadas erradamente “novas pedagogias”, na verdade a ideologia da “descontrução” que continua a idiotizar a escola) viria a provar como ser pode rapidamente destruir o que fora conseguido, e nunca realizado desde há séculos.

P: O livro não é então um produto?

R: Conheci há uns anos, de facto, quadros de editoras que me pareceram e mezanino disseram ver o livro como um «produto». No tempo em que aprendi e trabalhei, não era isso. E não é..

P: Há nos editores a este respeito um abismo geracional?

R: Sim. Que pode ser verificado no género de livros que hoje abundam... veja os que enchem o ranking do Expresso. Estám tudo ligado e uma coisa alimenta a outra. A Gradiva, e outros, persistem. E se cairemos... caiaremos de pé. Sem cedências ao lixo.

Um jovem colega e amigo disse algo com que não estou de acordo e talvez venha a propósito da questão que coloca. Para ele, cito de memória, não faz sentido a existência de editoras de “vão de escada”. Não subscrevo, de modo nenhum, esta ideia, que me choca. As editoras de "vão de escada” fazem muita falta, desempenham um papel essencial. Não me importaria de pertencer a uma associação de protecção das editoras de “vão de escada”. Manifestação da paixão pelos livros, foram e são, frequentemente, fontes de criatividade e diversidade editorial. São fundamentais na sociedade plural para cujo desenvolvimento quero trabalhar. Os apoios não deviam ser como costumam ser dados e me parece que esta Senhora ministra está a dar ou irá dar, às maiores editoras, uma ou duas delas com lucros enormes. Ainda nem que os têm, claro, mas não precisam portanto de apoio financeiro.

P: Nesse contexto, que diferença faz a Gradiva?

R: Permita-se-me pensar que a Gradiva, também a Gradiva, tem a sua identidade própria. Continua a ser, deliberadamente, uma editora de média dimensão, por isso as personalidades do editor, dos seus quadros e principais colaboradores são marcantes. Na Gradiva toda a gente, toda, tem consciência do que temos feito e sabe o que vamos fazer. Acho, sinceramente, que, tal como outras editoras, temos um estilo próprio, que o público identifica e, francamente, tem apreciado. Uma diferença, que julgo ser cada vez mais notória, é não editarmos apenas ficção, sobretudo ficção, que é o que vejo a encher as livrarias.

O nosso grande objectivo, o que desejamos, é contribuir para a promoção do conhecimento e do espírito crítico e isso passa pela leitura de bons livros de todos os géneros e realiza-se significativamente, na minha opinião, no relevo que temos dado à cultura científica. A ciência e a democracia, cultivadas na História frequentemente pelos mesmos grandes homens, e cresceram juntas, com o livro e a liberdade, o desenvolvimento. Ainda hoje é visível na Europa a linha que separa os Estados países que aprenderam primeiro E mais aceleradamente a ler dos que aprenderam depois e lentamente. Infelizmente estamos deste lado dessa linha.

P: O que esteve por detrás da ideia de criar a Gradiva?

R: Contribuir... para mudar a cultura portuguesa! Pensando desde logo na promoção da cultura científica e na educação. Parecia uma ambição delirante, não esqueço o que o meu Amigo e Mestre que tanto me marcou Professor Sedas Nunes me disse quando considerei a possibilidade de criar uma editora, hipótese que ele muito encorajou e apoiou: «O País precisa mais de um grande editor do que de mais um grande professor (que sempre quis que fosse com ele), não hesite.» Sem falsa modéstia, acho que não o teria decepcionado completamente.

Na verdade, teremos conseguido tanto como sonhámos nem podemos garantir que o que foi feito em cera medida se perdesse. Mas tive testemunhos de que o nosso trabalho terá contribuído para a descoberta de vocações em sucessivas gerações, e para suscitar outras iniciativas. Curiosa e surpreendentemente, nem só de Portugal. E o resultado da nossa intervenção manifestou-se intensamente nas escolas.

O projecto editorial foi meu, mas resultou do convívio e do debate de ideias com muitas pessoas, da suposição de que uma editora como a que pensávamos criar seria necessária.

Lembro-me que, na altura, o Francisco Espadinha, com amiga preocupação, me advertiu ser muito difícil fazer uma editora sem sólidos recursos financeiros. Mas conseguimos. Fizemos a Gradiva sem um tostão, vivemos sempre com o dinheiro que ganhámos e continuamos a ser hoje absolutamente auto-suficientes. Mais uma prova de que as editoras de “vão de escada” não são casos condenados à partida, que a liberdade é uma fonte de imprevisível novidade.

P: Como assegura a qualidade das obras que publica?

R: O especialista de qualquer especialidade não é, enquanto tal, claro, um editor. O editor é alguém que, independentemente da sua própria especialização e dos eventuais interesses académicos que possua, deve ter uma formação intelectual e cultural que lhe permita dialogar com as várias especialidades. Tem de ser capaz de avaliar as necessidades culturais da sociedade em que vive e para a qual trabalha, de avaliar e descodificar com esse objectivo os pareceres do grupo de consultores em que se apoia. A Gradiva beneficia, a Gradiva foi e é, como já referi, o resultado da ajuda, do convívio e da interacção intelectual inestimável de um grupo notável de amigos, igualmente fascinados pela edição: Mais exemplos: Nuno Crato, Jorge Buescu, Paulo Crawford, Desidério Murcho, A. Manuel Baptista, Paulo Gama Mota, Jorge Lima, muitos outros cujos nomes não me ocorrem agora e, claro, resultado do fantástica equipa permanente da Gradiva, dos serviços editoriais aos serviços comerciais que temos. Mas, como se compreende, se devem ser e são minhas as decisões, são também meus meus os erros e enganos...poucos!

O desafio para nós é editar bons livros em todas as áreas, mas livros que tenham ou possam, venham a fazer leitores. Um livro que se publica mas não tem leitores não é apenas um prejuízo económico, pode ser também uma má escolha cultural, um erro de escolha e prioridade. Pelo menos imediatamente, aparentemente, porque devemos criar o público, a procura, como fizemos claramente com as obras de cultura científica. Este é o sonho e o desafio que se coloca ao grande editor. Que no seu trabalho de editor deve, talvez, adoptar o critério da «igualdade na consideração de interesses», tão bem apresentado na obra de Singer, Ética Prática, que editámos.

P: Deve ser difícil a um editor ter uma grande obra e não a publicar porque não se vai vender...

R: Certamente. Vamos, é claro, avaliando em cada momento as disponibilidades que temos. Os recursos são sempre limitados e é necessário geri-los tendo em conta não só a continuidade dos projectos, mas também as responsabilidades laborais, sociais, da empresa e do empresário. Mas não abandonar nunca definitivamente um projecto culturalmente relevante. Sinto fortemente essas responsabilidades e honrá-las e valorizá- las é para mim muito gratificante. Realiza-me igualmente. Ao contrário do que acontece na gestão do Estado – mas não devia acontecer, claro -- na gestão privada os erros doem e pagam-se. Não entendo como podemos tolerar que desempenhem funções governamentais, a «gerirem» desperdiçando a riqueza que todos nós produzimos, a competência, a inexperiência de trabalho e liderança onde a vida é a sério, que inunda todos os governos que temos tido. Não admira que aconteça o que acontece.

Os grandes editores estrangeiros disseram-me sempre ser a edição a actividade empresarial mais difícil do mundo. Há quem diga que editar é um palpite, mas não é assim, evidentemente. Talvez seja um palpite informado por um complexo de factores. Também por isso, por esses desafios, é uma actividade particularmente lúdica e tão fascinante.

Na realidade muito depende de nós. Por isso nunca me preocupei muito com o receio da entrada de editoras estrangeiras em Portugal, como muitos colegas me iam manifestando. ..

Os grupos estrangeiros estão aí, mas nós continuamos. Iguais a nós próprios.

Costuma dizer-se que um autor marcou uma geração. Acho poder dizer-se com maior propriedade que os editores podem marcar gerações. A Europa-América, a Portugália e a Livros do Brasil, marcaram a minha geração, várias gerações. George Steiner dizia que o editor é como um professor, um professor que chega a mais gente!

P: É isso que tem acontecido com a sua editora?

G: Antes de responder, repito Que a Gradiva não sou só eu. Há pouco tempo um jovem cientista português, Ivo de Sousa, recebeu um prémio nos EUA e o Público, a Teresa Firmino, suponho, perguntou-lhe porque tinha ido para Física. Respondeu que tinha sido por causa dos livros de ciência da Gradiva. João Magueijo, autor de Mais Rápido que a Luz com quem recentemente nos zangámos disse um dia a um jornal: «Se conheço a Gradiva? Cresci com a Gradiva!”.

E poderia citar recorrentes testemunhos. Houve uma época em que me diziam serem os alunos de Física do Técnico designados por «geração Gradiva». Tudo isto é evidentemente muito gratificante para todos nós, sobretudo para mim, a envelhecer aceleradamente... Quando um editor consegue publicar um bom livro que faz leitores é um sentimento de realização indescritível! Sucedeu isso agora no género em que mais desejávamos que isso acontecesse, um livro para crianças: os livros do Capitão Cuecas põem os miúdos (7-10 anos) irresistível e comprovadamente a ler. Em todo o mundo. E os miúdos que lêem não têm problemas na escola, nem mesmo na desmotivadora, triste, escola que continuamos a ter.

P: Autores como Sagan, Dawkins, Hawking, vendem bem entre nós?

R: Sim, muito bem. Sagan é o autor emblemático da Gradiva. Cosmos -- uma obra admirável, imperecível, um clássico, tão actual como antes nas suas mensagens essenciais (porque não volta a RTP a passar a série, a nova cópia da série? Seria um contributo singular para a educação dos portugueses) -- despertou também em Portugal inúmeras vocações.

P: Os autores portugueses estão ao nível dos estrangeiros?

R: Não estão longe, certamente. Ainda não temos muitos, apesar do nosso desejo em os motivar, mas teremos cada vez mais e alguns muito interessantes. O Carlos Fiolhais a quem confiei a direcção da colecção a partir dos seu número 200 - Ciência e Liberdade... - está a fazer um trabalho notável nessa direcção A dificuldade em conseguir publicá-los no estrangeiro - mas conseguimos que fossem editados vários - residirá no facto de Portugal não ser ainda visto como um significativo produtor de conhecimento científico, e da produção internacional, particularmente no mundo anglo-saxónico, ser enorme. Mas o trabalho brilhante que está a ser desenvolvido por jovens cientistas portugueses no estrangeiro e, cada vez mais, também entre nós, vai contribuir seguramente para que se comece a reparar nos nossos autores do género. De qualquer modo Carlos Fiolhais está já editado no Brasil, tem surgido interesse de editores franceses pelos livros de Jorge Buescu e um dos livros de Nuno Crato foi-nos solicitado por um editor grego e outro norte-americano. Existem boas perspectivas de uma edição de João Lobo Antunes nos Estados Unidos -- um grande autor em qualquer latitude.

P: Um livro científico pode ser considerado uma obra de literatura?

R: O Harold Bloom e, mais recentemente, o Ian McEwan (num artigo que o Expresso traduziu) afirmaram que a grande literatura aparece hoje sobretudo em livros que não se apresentam especificamente como literários, particularmente nas obras de cultura científica, e referiram vários nomes quase todos, aliás, editados pela Gradiva.

Como tenho vindo a dizer, na obra ensaística, humanista, de João Lobo Antunes estão talvez as mais belas páginas de expressão literária dos nossos dias.

P: Que opinião tem do Plano Nacional de Leitura?

R: Se o Plano for capaz de contrariar a tradicional redução do valor do livro e da leitura na escola à obra literária, seria um feito. Não fazendo essa confusão, o Plano introduziria uma revolução na actividade das bibliotecas escolares e no próprio sistema de ensino. E os resultados viriam, voltariam a vir, depois de se ter apagado praticamente a luz breve no período de entusiasmo e interesse pela cultura científica para que a Gradiva contribuiu significativamente até aos anos 90.

Mas parece-me que o PNL ainda não o conseguiu ou não se empenha nisso a sério.

P: Então não se tem de começar com a literatura?

R - Não há maneiras rígidas de começar.

A escrita é, talvez, a mais extraodinária invenção humana, escreveu Carl Sagan, e o livro (que o computador não substitui, mas ameaça) é um instrumento único na transmissão do conhecimento, de todo o conhecimento). Além disto, há muita gente que começa a ler e se apaixona pela leitura com obras não especificamente literárias. Eu, por exemplo, comecei a ler com a banda desenhada. O meu filho começou a ler, cedíssimo, com livros sobre bichos. Fez-se cientista e leitor da grande literatura. Ler é um exercício muito difícil! Quando se inicia a aprendizagem da leitura, para fazer esse exercício, nos concentrarmos - resistir à preguiça e insistir, é necessária uma forte motivação. Obrigar as crianças a ler os livros que os adultos apreciam sobre os temas que a estes interessam é o que leva muitos miúdos a afastarem-se da leitura. É preciso descobrir livros que os miúdos queiram ler. Deixá-los descobrirem-nos.

A propósito, hoje o tempo médio máximo de concentração dos miúdos - e dos adultos já dominados pelo digital, o IPhone, etc. - são... 9 segundos! Quantos podem aprender a ler? É um tempo, um mundo novo o que aí está. Será reversível? Há-de ser devorado também pelas garras do tempo.

P: Qual a situação mais delicada por que passou enquanto editor?

R: Delicada, no sentido de difícil, só me recordo da situação que vivíamos antes do 25 de Abril, um tempo em que chegavam a apreender livros por causa do texto numa contracapa. Ou seja, era uma contingência sempre imprevisível, até ao ridículo. Muitas vezes percebia-se a razão (e podíamos prever), mas outras estupidamente — ou talvez não, porque o objectivo era também sempre fragilizar a editora. Um exemplo: num pequeno livrinho duma colecção das Publicações Dom Quixote, dedicado à questão da Irlanda, de que fui autor, escrevi na contracapa, para ilustrar a fotografia de um edifício em chamas, algo como isto: «Não há exército que consiga apagar o incêndio que devasta a Irlanda.» E o censor terá visto no meu texto uma alusão à guerra colonial... e viu bem.

Mas conseguia-se passar muitas mensagens, claro, muitas vezes no fio da navalha. Um exercício de criatividade, cujo êxito nos divertia muito.

Se a pergunta se refere a dificuldades económicas na minha condição de editor da Gradiva, respondo que temos sabido antecipar-nos sempre. Treinei atéaos 74 anos a antecipação todos os sábados no jogo de futebol com os meus amigos.

Num outro sentido acrescento ainda que a maior dificuldade para uma editora como a nossa é a morte da escola, o domínio do analfabetismo e do iletrismo, a perda do desejo de saber, da curiosidade e da liberdade intelectual. A tragédia de uma universidade onde praticamente se deixou de ler. Por isso é tão relevante publicar para suscitar e alimentar a inquietação e indagação intelectual, o inconformismo, a razão e a inspiração criativa — isso é um intelectual! —

Para nos apercebermos da miséria da nossa realidade cultural e intelectual de hoje, leiam-se por exemplo, é o que me ocorre agora as cartas de António José Saraiva para Luísa Dacosta, ou o diálogo entre o mesmo António José Saraiva e Óscar Lopes, acontecido por iniciativa de José Carlos de Vasconcelos. Um livrinho... 10 euros também editado pela Gradiva.

P: Que projectos podemos esperar para o futuro da Gradiva?

R: Grandes livros, ainda mais rigorosamente seleccionados, nos vários géneros que publicamos, desde logo na ciência (agora, uma verdadeira resistência). Enfim, livros de que a generalidade da crítica de hoje não é capaz de falar, mas que os nossos leitores esperam de nós e sabem apreciar. Acho, aliás, ao contrário do que muita gente nesta actividade me parece continuar a pensar, que muito em breve só haverá́ mesmo lugar significativamente para pequeníssimas tiragens de grandes livros.

Os e-books são gadgets, já a passar da moda que nunca foram significativamente mesmo lá fora. Não salvaram a leitura na dimensão que estou a referir. De facto, aquilo que temos estado a assistir (há muitos indicadores disto) não é ao fim do livro, mas ao fim da leitura. Restará uma elite cada vez mais restrita que para o ser lê.

Repare que mesmo nas universidades não são apenas os alunos, as novíssimas gerações que lá vão entrando, mas também são professores. Não lêem. Ia anualmente a uma universidade participar em aulas ou conferências e todos os anos ia verificando a tragédia sempre crescente. E os cada vez menos professores que lêem verificam o mesmo.

A partir de 1500 (período em que grandes especialistas consideram ter ocorrido a única revolução total) não houve nenhuma grande manifestação humana, nas artes, nas ciências, etc., que não implicasse, de algum modo, a leitura e o livro.

Estaremos a viver o início de uma era de trevas? E onde estão hoje os mosteiros perdidos nas montanhas onde a luz se abrigou? Esperava-se que hoje fossem as Universidades. Mas, pelo contrário, são terreno e irradiação do delírio, do ódio ao que realizou o melhor da nossa Humanidade.

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