sábado, 30 de janeiro de 2021

Recensão ao livro "Apanhados pelo Vírus"

Partilho, em baixo, a minha recensão ao livro "Apanhados pelo Vírus", que foi inicialmente publicada no site da COMCEPT


David Marçal e Carlos Fiolhais, “Apanhados pelo Vírus – factos e mitos acerca da COVID-19”, Gradiva, Lisboa, 2020

 


David Marçal é bioquímico e comunicador de ciência e Carlos Fiolhais é professor de Física na Universidade de Coimbra. Esta dupla quase que dispensava apresentações ou não fossem já conhecidos – e reconhecidos – pelo seu trabalho de divulgação científica através de livros, textos em jornais, oradores em palestras e participação em programas televisivos. Declaração de interesses: são também associados da COMCEPT.

O livro mais recente destes autores é intitulado “Apanhados pelo Vírus – factos e mitos acerca da COVID-19” e encontra-se dividido em três partes: “O que se sabe”, “Infodemia” e “Ciência em directo”.

No primeiro capítulo contextualizam o que se sabe sobre o vírus e a doença. Focando-se na família dos Coronavírus, descrevem a estrutura do SARS-CoV-2 e dos receptores (ACE-2) a que se ligam nos órgãos, abordam as vias de transmissão, dão exemplos de avaliação de risco e explicam o que levou à reviravolta relacionada com a sugestão oficial do uso de máscaras, apontando que máscara deve ser usada. Também identificam os grupos de risco, relembram o funcionamento do sistema imunitário, explicam como são feitas as vacinas, que tipos de testes existem e a diferença entre especificidade e sensibilidade dos testes. A saber: especificidade refere-se à capacidade de detectar sequências específicas de ARN e sensibilidade significa que se consegue detectar esse material em quantidades muito pequenas. Além disso, abordam ainda a evolução de casos e de mortes ao longo do tempo assim como as medidas políticas adoptadas para lidar com esta situação excepcional.

Este capítulo não é só um resumo histórico do que aconteceu, ao descrever a evolução do conhecimento sobre o que primeiro foi assumido como uma pneumonia desconhecida até ao que, na altura da publicação, se sabia sobre a pandemia. De facto, creio que este capítulo perdurará no tempo como uma memória descritiva, um registo que será útil para memória futura.

O segundo capítulo é dedicado ao tema da infodemia que é definido como “excesso de informação sobre terminado tema por vezes incorrecta e produzida por fontes não verificadas ou pouco fiáveis que se propaga velozmente”. Como os autores relembram, a infodemia precedeu a pandemia, uma vez que a desinformação já circulava abundantemente nas redes sociais, embora no actual contexto a COVID-19 tenha sido um alvo de desinformação pelas mais variadas razões (desconhecimento, oposição às medidas oficiais, crenças em teorias da conspiração, etc.). Por falar em teorias da conspiração, as mesmas recebem destaque neste capítulo, enfoque particular na associação que alguns movimentos fizeram entre o 5G e a doença. Por esse motivo, os autores aproveitaram para desmistificar um pouco esta tecnologia de modo a tornar compreensível ao leitor do que realmente se trata. As redes sociais não são os únicos veículos de transmissão rápida de desinformação, pois o caso piora quando governantes que deveriam ser responsáveis utilizam o seu mediatismo para propor falsos tratamentos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro são exemplos.

A terceira parte é dedicada ao avanço das técnicas e da tecnologia - da física à biologia - e como isso foi importante para o estudo e combate a esta doença. Os autores explicam como é feita a ciência e contextualizam os desenvolvimentos e resultados a que temos assistido em direto a partir do televisor ou da internet. Lembram que os resultados apresentados são sempre provisórios, até porque incompletos (devido a baixas amostras, tratamento de dados pouco rigoroso, efeitos confundidores, etc), e que com o tempo surgirão outros melhores, uma vez que a ciência se vai autocorrigindo. O tempo é um dos factores extremamente importantes em ciência, por ser necessário para fazer investigação e para testar as terapêuticas. Outro dos factores essenciais é, claro, o financiamento, seja ele público ou privado. Informam os autores que em Portugal o investimento em ciência é apenas 1,4% do PIB enquanto a média da União Europeia ronda os 2,1%. Contudo, para a pandemia houve um maior investimento da Europa para desenvolver vacinas e fármacos contra esta doença. Foi precisamente graças ao forte investimento europeu e à mobilização dos cientistas que se conseguiram testar terapêuticas e desenvolver vacinas em tão pouco tempo. Mas também por o período temporal de investigação ser reduzido, quando comparado com uma situação normal, é que existem tantos estudos preliminares e publicações por validar, devido à reduzida possibilidade de escrutínio e replicação de resultados perante a avalanche de conhecimento produzido. Isto leva ao papel da dúvida em ciência, também abordado no livro.

Assim, concluímos que este livro trata de um registo da evolução do conhecimento médico e científico sobre o vírus e a doença, mas também de algumas políticas dos governos para lidar com a pandemia, assim como também do modo como parte da população entendeu e lidou com este evento sanitário, criando e disseminando boatos, desinformação e teorias da conspiração. Podemos dizer que, de certo modo, é aqui feito um retrato social de um período específico da pandemia – desde o início até à data da publicação. Se bem que este aspecto possa ser uma limitação, por o livro ter sido publicado ainda durante o acontecimento e por isso possa vir a estar rapidamente desatualizado relativamente a certos aspectos (por exemplo, as vacinas ainda estavam em desenvolvimento), por outro lado representa um registo contemporâneo e com valor para análise histórica no futuro, para além do indubitável valor informativo que tem já no presente.

 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O RESTAURANTE DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA


Alguns senhores deputados da Assembleia da República não param
 de me espantar por maus motivos. 
Ontem li, e publiquei aqui, a notícia de que o deputado Barroco de Melo, tinha sido vacinado sem obedecer aos critérios estabelecidos para o efeito.

Hoje, convido o leitor a ler esta notícia:

“A União dos Restaurantes de Minho interpôs uma providência cautelar para exigir o enceramento do restaurante da Assembleia da República, enquanto estabelecimentos similares ‘estiverem impedidos de abrir’ como medida de combate à covid-19. Ou seja, já que estamos a falar de paparoca, cabe aqui o dito: “Ou comem todos ou não come ninguém”!

O pior de um país pobre é haver cidadãos que se julgam acima dos seus concidadãos como se fossem filhos de algo em pleno regime republicano. Não são! Haja em vista os sacrifícios que determinados  papás fizeram, na maioria dos casos, para eles tirarem um curso superior em qualquer cantinho de Portugal em que esteja montada uma espécie de chafarica onde se compra a peso de ouro diplomas que não valem um caracol. E, por vezes, nem sempre terminados.

Ungidos por uma folha de papel que os dá como habilitados para subirem na vida, grande é o desaire de não conseguirem emprego nem que seja na caixa de supermercados.

Que fazer então? Se se tivessem precavido com o agitar de bandeiras de um qualquer partido político, a solução  encontrada seria esperar ser nomeado deputado da Nação para a "servirem" e dela não se servirem como profissão até que a reforma que lhes dê o devido descanso de nada ou pouco terem feito que o trabalho deve ser feito só por trabalhadores obrigados a fazê-lo  para sustentarem  a família  com refeições modestas servidas em casa.

Entre as mordomias ao alcance das mãos parlamentares o restaurante da Assembleia da República onde se banqueteiam com os melhores acepipes e néctares de Baco dispendiosos em que pagam pouco e comem muito e do melhor.

Estarão satisfeitos suas senhorias? Nunca! Agora exigem que esse seu  restaurante também abra em período da jantarada, segundo eles dizem por estarem longe da sua residência provinciana. E à boleia deles os deputados lisboetas vivendo em Lisboa a fazerem companhia aos que não desfrutam da beleza diária do estuário do Tejo!

É natural que aqueles que me conhecem, como sendo de facção politica assumidamente de direita, não estranhem que tenha escrito este texto. Com a devida vénia, transcrevo de Maria José Morgado, procuradora-geral  adjunta do Tribunal da Relação de Lisboa, este  princípio de grande e incontestável humanismo:

“No país, perdeu-se um bocado o sentido de ser de esquerda ou ser de direita, acho que se calhar tem mais sentido ser honesto, defender interesses de transparência e de integridade que às vezes não tem a ver ser de esquerda ou de direita. Há gente de esquerda que não tem princípios de integridade e transparência e há gente de direita que tem” .

O ESTILO É O PRÓPRIO HOMEM

 


Novo texto do escritor Eugénio Lisboa sobre George Orwell, desta vez contrastando estilo deste com o de Gonçalo M. Tavares, autor de um recente prefácio de "1984":


Le style est l’homme même.

Buffon, Discours sur le style


Ainda Orwell. Em vários órgãos da comunicação social, tem-se procurado, com justiça, assinalar o facto de as obras deste grande escritor terem passado para o domínio público. Ainda bem que assim foi: relembrar este intemerato campeão da liberdade e do pensamento claro e não mentiroso é sempre oportuno. Mas nem sempre a homenagem prestada foi certeira, isto é, algumas vezes foi até o oposto do que se visava. Por exemplo, num longo e penoso artigo, ocupando duas largas páginas e mais uma aparatosa coluna da revista do Expresso, o louvadíssimo, premiadíssimo e traduzidíssimo Gonçalo M. Tavares deu-se ao trabalho de celebrar o autor de 1984, fazendo, ao elogiá-lo, exactamente o contrário do que Orwell toda a vida recomendou. De facto, o aclamado e vilipendiado autor de Animal Farm sempre aconselhou que se tivesse como modelo a prosa limpa de Swift, onde não há uma palavra desperdiçada: uma prosa lúcida, bela na sua simplicidade, escorreita, directa, certeira, não rendilhada nem enredada, em suma, um potente veículo para transportar ideias. Gonçalo M. Tavares, pelo contrário, serve-se de uma prosa arrebicada, contorcida, pretensiosamente oracular, própria de uma pitonisa em elevado grau de intoxicação. Provincianamente cheia de palavras “técnicas” e muito sonoras que me fazem voltar a um delicioso “récit” de André Gide, com um título roubado a Molière: LÉcole des Femmes (A Escola das Mulheres). Nessa saborosa narrativa, sob a forma de um diário escrito por uma mulher, esta observa, a certa altura, que o seu pai gostava muito de polvilhar a sua conversa de palavras difíceis ou pouco habituais, como “habitat”, talvez para provar a si mesmo que não tinha medo delas. Tavares, no texto que agora nos ocupa, utiliza, intrepidamente, por bem mais do que uma vez, o termo “algoritmo”, para deixar bem claro, a si e a quem o lê, que a palavra o não amedronta. Mas, por acaso, deveria até intimidá-lo um bocadinho, o que o teria tornado mais cauteloso e o impediria de o empregar, desastradamente, a despropósito, tendo-lhe previamente investigado o significado. 

Orwell, como romancista, como jornalista, como extraordinário ensaísta, sempre deu o exemplo daquilo que aconselhava: uma prosa de cristal impoluto, uma prosa de uma beleza que se nutria de despretensão e muito devia a uma tremenda honestidade. Tavares, a pretexto de o elogiar, passa o tempo a traí-lo, com a sua prosa que parece bebida no que há de mais doentiamente obscuro numa certa filosofia alemã. Aquela filosofia que levava o acutilante Nietzsche a dizer que, sempre que via um alemão, mesmo a grande distância, se lhe atrasava a digestão. Na mesma ordem de pensamento, afirmava também, com acinte, que nunca um bebedor de cerveja ascenderia jamais à dignidade de um pensamento subtil. Mas Tavares parece seguir, obedientemente, tanto estes alemães que obstruíam a digestão fluente do autor de A Origem da Tragédia, como também os imoderados bebedores de cerveja, incapacitados de produzir subtileza. 

A prosa oracular, pretensiosa, indigesta e, por fim, provinciana, de Tavares, parece ser muito apreciada em certos meios lusíadas. Mau sinal, acho eu, para o estado mental da nossa grei. Por detrás de muita prosa pomposa, esconde-se muitas vezes uma enorme trapalhada. Bertrand Russell, grande lógico/matemático, denunciava, na aclamadíssima filosofia de Sartre, um mero e patético acervo de “extravagâncias linguísticas”. Tavares cultiva muito este universo de puras extravagâncias linguísticas. E, por favor, não me respondam com argumentos de autoridade, do género: ele é muito traduzido. Paulo Coelho e Barbara Cartland também o são. Qualquer bom oficial de relações públicas consegue milagres. 

Dizia Buffon que o estilo é o homem. Aconselharia, de bom grado, a Tavares, que não fosse o homem que o seu estilo inculca. Mude de estilo e seja, de caminho, outro homem. Leia a prosa lavada de Descartes, de Voltaire, de Stendhal, de Julien Benda, de Bergson, de Bertrand Russell, do admirável historiador inglês A. J. P. Taylor (cito quase ao acaso), de Benjamin Constant, de António Sérgio, de Sílvio Lima, de Antero, de Orlando Ribeiro… Deite fora a gordura e a caspa que lhe sujam o estilo. Deixe entrar sol na sua prosa e fuja do escuro insalubre das cavernas: nestas, tropeça-se e contraem-se doenças de cura difícil e demorada. Leia Orwell com olhos de ver e não como simples pretexto de pseudo-filosofar, no pior alemão que já se congeminou. Olhe que há outro alemão mais nobre e mais luminoso: o de Goethe, o de Schiller, o de Schopenhauer, o de Thomas Mann. Orwell detestava a prosa oracular, pastosa e obscura, boa para uso de tiranetes e charlatães. 

Resumindo muito, eu diria que a maior parte do que GMT escreve não se entende (e olhe que sou um leitor treinado) e o que se entende é pior. Para ser franco, nunca percebi bem se o que ele escreve é alemão arcaico ou volapuque, a língua que falava o Minotauro, com o qual Jorge de Sena quis tomar café em Creta. De qualquer modo, tudo quanto posso dizer é que, ao ler GMT, coloca-se entre mim e ele uma distância de vários algoritmos, tenha isto o significado que tiver, se é que tem algum, mas é, de certeza, uma enviesada homenagem ao estilo peculiar do autor de Viagem à Índia. O qual parece ter grande aceitação, junto de uma vasta camada de jovens lusíadas, que nada entendem do que ele diz mas têm fortes palpites de que aquilo seja profundo.

Eugénio Lisboa

NADIR AFONSO E A TEORIA DA ARTE

 


Minha recensão no I de quinta-feira:

Nadir Afonso (Chaves, 1920 – Cascais, 2013) foi um dos mais notáveis artistas portugueses do século XX. Já formado em Arquitectura pela Escola Superior de Belas Artes da Universidade do Porto, foi para Paris em 1946 estudar pintura, tendo nessa altura colaborado com o famoso arquitecto suíço-francês Le Corbusier. Em 1951 haveria de ir para o Brasil para trabalhar com outro arquitecto, igualmente famoso, o brasileiro Óscar Niemeyer. Contactou também, no estrangeiro, com nomes destacados da arte contemporânea como o francês Fernand Léger, cubista, e o húngaro-francês Victor Vasarely, o “pai” da op art. Regressado a Portugal, o arquitecto já tinha dado lugar ao pintor.

A sua arte, sempre com características geométricas bem vincadas, desdobrou-se ao longo das décadas da sua longa vida artística em períodos com estilos diferenciados. Começou com obras tradicionais e evoluiu para o surrealismo. Mas, no período de abstraccionismo geométrico, deu cor a círculos, losangos, quadrados e triângulos, em padrões muito harmónicos. No período barroco, soube transpor para a tela, de modo estilizado, formas barrocas da arquitectura do Porto. Depois inovou com composições ditas de espacillimité, onde era nítida a inspiração da arte cinética. Seguiram-se os períodos ditos ogival, devido à presença de arcos, perspéctico, devido à explosão de elementos geométricos, organicista, onde ganham lugar as curvas sobre skylines urbanos, e, finalmente, já no século actual, o período fractal, no qual as cidades continuam a ser o leitmotiv, mas agora com um maior emaranhado. Como mostra essa sucessão de períodos, Nadir embrenhou-se continuamente numa procura estética. Mas ressalta uma evidente unidade: os traços geométricos são muito seus e as cores são muito vivas. Neste século, sucederam-se as exposições antológicas e o reconhecimento do artista. Destaco em 2010, porque a vi, a exposição “Sem Limites” no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, e no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, em Lisboa. E em 2012 as suas exposições em Roma e Veneza.

Quem quiser deleitar-se com a obra de Nadir o melhor é o Museu de Arte Contemporânea que tem o seu nome num edifício desenhado pelo arquitecto, seu amigo, Álvaro Siza, em Chaves, e inaugurado em 2016. Já o fiz várias vezes, numa delas amavelmente guiado pela sua mulher, Laura Afonso, que tem peleado pela manutenção da memória do artista e da sua obra através da Fundação Nadir Afonso.

Uma marca distintiva de Nadir é a sua actividade como teórico da arte. Mais do  que qualquer outro artista português, ele procurou sempre uma definição do belo. O seu primeiro ensaio sobre este tema foi publicado em Neuchâtel, na Suíça (La Sensibilité Plastique, Presses du Temp Present, 1959) e a última, já póstuma, em Lisboa, A Invenção do Tempo (Universidade Lusíada, 2014). Entre uma e outra obra encontra-se nas bibliotecas toda uma bibliografia, cerca de duas dezenas de títulos, que dão conta da sua procura do que é – ou deve ser – a arte. Mas a maioria desses títulos são difíceis de encontrar nas livrarias (pode-se tentar a loja do Museu Nadir Afonso).

A Universidade do Porto, alma mater do artista e escola que lhe conferiu o grau de Doutor honoris causa em 2012, acaba de publicar quatro belos volumes contendo obras escolhidas da sua vasta produção ensaística em torno da estética. São volumes muito bem produzidos pela Universidade do Porto Press (o design é de Eugénia Rocha e Jorge Moreira, muitos parabéns!), que se distinguem pela forma geométrica escolhida para a capa, o círculo vermelho, o losango azul turquesa, o rectângulo azul eléctrico e o triângulo amarelo.

A publicação dos volumes, que integram a colecção “Arte e Pensamento”, teve o apoio da Fundação Nadir Afonso e integrou-se na comemoração, que decorreu em 2020, do centenário do artista. Também não são fáceis de encontrar, mas, no Porto, o sítio indicado é a Loja da Universidade do Porto, na Praça dos Leões (há sempre a possibilidade de comprar on-line, muito conveniente nestes tempos de confinamento, mas a Wook não tem nem esta nem outras obras de editoras académicas). Na mesma loja encontra-se o livro 100 Anos Nadir, Inéditos, da Universidade do Porto Press, de novo com o apoio da Fundação Nadir Afonso, que é o catálogo da exposição com a qual, em 2020, a Universidade do Porto homenageou o seu ex-aluno.

Vejamos como foram arrumados os títulos principais da bibliografia nadiriana:

I - O Sentido da Arte e Outros Textos. Este volume inclui três livros: A Sensibilidade Plástica (tradução do original saído na Suíça), Os Mecanismos da Criação Artística (publicado originalmente em francês em 1970 pelas Éditions du Griffon, de Neuchâtel, em francês, inglês e alemão) e O Sentido da Arte, publicado em francês em 1983, pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda e republicado em português pela Livros Horizonte em 1999. O prefácio foi de Celina Silva, professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e especialista em teoria da literatura e teoria da arte. Entre o prefácio e o corpo dos livros surge uma curta biobibliografia de Nadir que se repete nos volumes seguintes (embora com uma fotografia diferente do artista)

II - Da Intuição Artística ao Raciocínio Estético e As Artes: Erradas Crenças e Falsas Críticas. Reúne os dois livros com esse nome, publicados pela Chaves Ferreira Publicações respectivamente em 2003 e 2017 (esta última edição bilingue em português e inglês). Na versão original eram edições de luxo, revalorizadas por reproduções de obras do autor, e que não estavam ao alcance de todas as bolsas (este volume custa só 14,40 euros). O prefácio é de Adelaide Ginga, historiadora de arte e curadora do Museu do Chiado, em Lisboa.

III - Universo e Pensamento e Outros Textos. O editor (deve ser referido o nome de Isabel Pacheco, coordenadora editorial) juntou aqui os três livros de Nadir mais relacionados com a ciência: Universo e Pensamento, Nadir Face a face com Einstein e O Tempo Não Existe: Manifesto. Tive a honra de escrever o prefácio. Universo e Pensamentos tinha saído em 2000 nos Livros Horizonte, e em 2020 na Afrontamento. Nadir Face a face com Einstein foi mais uma edição de luxo da Chaves Ferreira (2008), com ilustrações de quadros do autor representando cidades. Por último, O Tempo Não Existe: Manifesto saiu em 2010 na Dinalivro. Todos estes livros discutem a relação da arte com a ciência. O autor coloca em causa a teoria da relatividade de Einstein e até a existência do tempo como grandeza física independente. Mas é óbvio que ele não procurava fazer ciência, antes filosofia da arte iluminado por aquilo que ele entendia vir da ciência. Nadir, sabendo que a sua foice não era para a seara da ciência, nunca reclamou ter realizado descobertas que mudassem a ciência vigente. Sorvendo a física moderna a partir de livros de divulgação científica, tentou apenas pensar a ciência de fora, com todos os naturais condicionalismos das suas formação e experiência.

IV - Reflexões Estéticas e Sobre a Vida e Sobre a Obra de Van Gogh. Este livro abre com o volume Sobre a Vida e Obra de Van Gogh, 2002, que é acompanhada por algumas reproduções de quadros do pintor holandês e, sob o título Reflexões Estéticas alinham-se a seguir um conjunto de 22 textos, curtos, cuja data de publicação alarga um vasto intervalo temporal, de 1959 (“Objectividade e Inobjectividade”) até 2013 (“Síntese estética”). O prefácio é de António Quadros Ferreira, professor emérito da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e ele próprio artista (publicou há meses, na Universidade do Porto Press, o ensaio Nadir mestre de si mesmo).

Permito-me transcrever aqui um excerto do meu prefácio, esperando o que possa servir como apetite à leitura do livro:

“Tal como Le Corbusier e Niemeyer, Nadir vê pontes entre arte e ciência, mas a uma profundidade maior. Cultivador da filosofia da arte, como aliás está bem patente em O Sentido da Arte, ele tenta entender a ciência, a partir da sua experiência estética. A sua atitude é filosófica, de inquietação, de indagação. O seu interesse pelos fundamentos da ciência e da arte ressalta da seguinte citação: A solução do problema cósmico, na mesma via perceptiva do fenómeno artístico, requer, à partida, um acto de reflexão fundado sobre o conceito de elementaridade e de simplicidade.’ Só vejo, entre os artistas plásticos portugueses, um interesse pela ciência de dimensão semelhante em Fernando Lanhas (1923-2012), que foi arquitecto e pintor tal como Nadir Afonso. Os dois artistas, ambos do Norte, estudaram quase ao mesmo tempo na Escola Superior de Belas Artes do Porto. E os dois foram pioneiros da arte abstracta em Portugal.”

Termino, com um excerto do último texto de Nadir, escrito no ano da sua morte, em “Síntese estética”. Pergunta ele:

“Porque é que o verdadeiro artista é universal? Porque atinge a exactidão. Exactidão da natureza, desconhecida dos estetas inteligentes e cultos; exactidão que os seres sensíveis, após longos anos de percepção, acabam, por sentir; exactidão de leis matemáticas, impossíveis de compreender e incapazes de definir.”

A ciência tenta penetrar no mistério do Universo. A arte ensaia também entrar no mistério do belo. Um outro? Para Nadir, estes dois mistérios são, no fundo, um só.

"Ética Racional para um Mundo Irracional" no RÒMULO


No d
ia 2 de Fevereiro, às 18h realiza-se via Plataforma Zoom a apresentação do livro "Homo Ignarus:
Ética Racional para um Mundo Irracional
" da autoria de Steven Gouveia, com prefácio de Peter Singer, editado pela Minerva Coimbra em 2020.

A sessão de apresentação contará com as participações do autor Steven Gouveia, especialista em Filosofia da Universidade do Minho e André Dias Pereira, Professor de Direito da Universidade de Coimbra, Presidente do Centro de Direito Biomédico e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida com a moderação de Carlos Fiolhais, Professor de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, Director do RÓMULO e membro do Conselho de Ética do Instituto Politécnico de Viseu.

Destinada ao público em geral, a sessão é de participação livre e não necessita de inscrição. No fim da apresentação dos oradores, os participantes poderão colocar questões e fazer comentários.

Acesso à sessão no Zoom:  https://videoconf-colibri.zoom.us/j/83716137066
ID da reunião: 837 1613 7066

Resumo:
Como mitigar a nossa ignorância? Como limitar a onda de irracionalidade? Para isso é imprescindível a ética, esse ramo da filosofia que Steven Gouveia  ilustra em oito exemplos práticos suscitados pela realidade actual. A eutanásia, a inteligência artificial, a liberdade de expressão, os direitos dos animais, as eleições, etc. colocam-nos sérios dilemas éticos, ficando o leitor mais bem preparado para os desafios contemporâneos depois de ler os argumentos do autor. O livro tem prefácio de Peter Singer e posfácio de Viriato Soromenho Marques.

Introdução do livro:
"(...) Este livro é sobre oito problemas éticos da sociedade actual com que qualquer um dos leitores já foi confrontado, tenha formação académica ou não. Provavelmente, terá uma opinião sobre cada um destes temas, e a sua vida é influenciada por pressupostos filosóficos que assume com mais ou menos reflexão e sentido crítico. Assim, este livro é uma obra de ética aplicada que procura mostrar que é necessário, cada vez com mais urgência, pensar racionalmente e baseado na melhor evidência científica disponível diversos desses problemas. Claro, esta forma de pensar está muito longe do Homo Ignarus actual: como a fast food, grande parte dos indivíduos prefere uma versão analógica de conhecimento. Uma meia-verdade basta, não importando parar para pensar, ou sequer averiguar se há especialistas com formação sobre o tema. Desde que se tenha uma gravata bonita ou um belo sorriso, tudo servirá para engolir os “calcitrins” retóricos deste novo mundo que é ampliado pelo mundo digital. Mas será que tem mesmo de ser assim? Homo Ignarus é um conceito original em latim para referir o que diversos estudos empíricos apontam: o ser humano comum é estruturalmente ignorante, despreza informação empírica para tomar decisões e é influenciado por falsa informação e retóricas (ver capítulos seis e oito). Por si só, tal não parece um problema. Mas o caso muda de figura quando o cidadão comum tem impacto em diversos problemas éticos, como apresentados neste livro. (...)"

Biografias resumidas:

Steven S. Gouveia é investigador doutorando na Universidade do Minho. É investigador-visitante na Minds, Brain Imaging and Neuroethics Unit do Royal Institute of Mental Health na University of Ottawa. É investigador no Mind, Language and Action Group, Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, e no Lisbon Mind & Reasoning Group, IFILNOVA – Universidade Nova de Lisboa. Em 2016, organizou a obra “Filosofia e as Artes”, tendo convidado artistas relevantes, como Joana Vasconcelos, Valete, Fernando Ribeiro e Leonel Moura. Em 2017, co-editou a obra colectiva “Pensar a Democracia” com prefácio de Noam Chomsky e, com Ana Figueiredo Sol, editou “Bioética no Século XXI”. Nesse ano, editou “Philosophy of Mind: Contemporary Perspectives”, com Manuel Curado na Cambridge Scholars Publishing, incluindo investigadores internacionais de renome. No ano seguinte, publicou a sua primeira obra a solo na Húmus “Reflexões Filosóficas: Arte, Mente e Justiça” com prefácio de João de Fernandes Teixeira sobre vários temas, desde a definição da arte, a mente consciente e a inteligência artificial, e a validade da meritocracia ou da democracia actual. Em 2019, publicou três obras internacionais: “Perception, Cognition and Aesthetics” e “Film and Philosophy: Bridging Divides”, na editora  Routledge e, na Vernon Press, co-editou, com Manuel Curado, “Automata’s Inner Movie: Science and Philosophy of Mind” e “The Age of Artificial Intelligence: an Exploration”, incluindo alguns dos mais influentes pensadores e transhumanistas da actualidade, como Daniel Dennett, Ben Goertzel (criador da robot Sofia), David Pearce, Natasha Vita-More, Roman V. Yampolskiy e Vernor Vinge, etc. Publicou ainda, em 2020, a obra colectiva na Bloomsbury  “The Science and Philosophy of Predictive Processing”, com  investigadores como Karl Friston, Richard Menary ou Shaun Gallagher.

André Dias Pereira, Doutorado em Direito em 2014 com uma tese sobre Responsabilidade Médica e Direitos do Paciente”, é Professor de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), Diretor do Centro de Direito Biomédico e Investigador do Instituto de Investigação Jurídica da Universidade de Coimbra. Foi Membro do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa Clínica e é membro do Conselho Nacional de Ética para Ciências da Vida, Presidente do Comitê de Ética em Pesquisa da AIBILI, membro do Comitê de Ética do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, membro da Comissão de Ética do Instituto Politécnico de Coimbra, membro do Conselho de Bioética da Sociedade Portuguesa de Genética Humana. Foi membro da Comissão Executiva da Associação Mundial de Direito Médico e Presidente do 21º Congresso Mundial de Direito Médico e é Membro do European Center of Tort and Direito dos Seguros (Áustria), membro do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (IBERC), membro do Instituto Ibero-americano de Direito (IDIBE), Vice-Presidente e Fundador da Associação de Língua Portuguesa de Direito da Saúde (ALDIS), membro do Luso- Instituto Brasileiro de Direito Comparado e membro da International Academy of Comparative Law.

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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A bateria do ião de lítio | Ciência às Seis online

O ESPÍRITO DE CRISTAL

 

Do poeta e ensaísta Eugénio Lisboa recebemos este belo texto que assinala a entrada em livre circulação das obras de George Orwell: 

Acabam de ser postas no domínio público as obras desse grande escritor e grande cidadão que foi George Orwell, um dos mais destemidos e autênticos defensores da liberdade, mas de uma liberdade incontaminada pelos miasmas que frequentemente a pervertem. 

Conceitos como “democracia” e “liberdade” e outros igualmente egrégios foram abusivamente apropriados e conspurcados pelos habituais promotores de infernos concentracionários.

Arriscando a própria vida, no meio da guerra civil espanhola, combatendo ao lado dos republicanos, ironicamente, viu-se mortalmente perseguido, não pelos fascistas, mas sim pelos comunistas. É o preço que pagam os intrépidos espíritos de cristal, cujo verbo diamantino não se prostitui no uso das palavras em sentido perfidamente distorcido. Em forma de homenagem, transcrevo, a seguir, passagens de um artigo que publiquei, em 1984, assinalando a publicação do livro cujo título é, precisamente: 1984. 
Como muitos privilegiados, Eric Blair – era esse o seu verdadeiro nome – frequentou Eton, mas não teve o benefício de estudos universitários: em vez disso, foi polícia na Birmânia, teve, por algum tempo, um gosto (amargo) do império, e regressou, por fim, à Europa, onde passou fome e solidão, entre Londres e Paris. 
Como tantos intelectuais ingleses (e não só), nos anos trinta, foi socialista. Mas, ao contrário da maioria deles, nunca o seduziu a «tentação totalitária». Combateu em Espanha, ao lado dos republicanos, foi seriamente ferido na garganta e escapou, por um triz, às purgas que os «camaradas», teleguiados de Moscou, desencadeavam, com desenvoltura, nas hostes que combatiam Franco. O seu antifascismo vinha de longe e era de boa cepa. 
O percurso de Orwell não foi nunca o de uma típica desilusão de amor [isto é, não veio para o socialismo libertário, por rotura com a ortodoxia comunista]: o seu socialismo foi, desde o começo, o de um intemerato amante da liberdade. Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha) é, além do mais que também é, um impressionante documento e um livro que foi difícil a uma certa esquerda digerir. 
Admirado pela sua coragem e lucidez, Orwell pagou, em boa e amarga medida, o preço da sua vontade de chamar as coisas pelo seu nome. A sua prosa foi sempre de uma beleza difícil de definir, simples, clara, directa, um perfeito instrumento de comunicação de ideias, sem a hipocrisia febril das circunvoluções. 
Num famoso ensaio sobre Swift, o autor de 1984 afirmará que o criador de Gulliver “não desperdiça palavras” e, noutro ponto do mesmo ensaio, fala de “todo o poder e simplicidade da prosa de Swift”. Elogios que a ele próprio assentam como uma luva. Da leitura, tanto dos romances, como da sua vasta obra de jornalista e ensaísta, desprende-se um dos mais fortes aromas de integridade intelectual, de firmeza, de convicção, de quase aterradora lucidez, que me tem sido dado confrontar, no decurso de um já longo percurso de leituras. 
Dizia um escritor francês, deste século, que não sabia como era o espírito de um canalha do baixo mundo, mas que sabia muito bem como era o espírito de um homem honesto: era simplesmente aterrador (...). 
Num seu texto célebre, Politics and the the English Language, Orwell devastava, nestes termos, a hipocrisia linguística dos políticos e da intelligentsia inglesa da época: 
“No nosso tempo, o discurso e a escrita dos políticos são largamente a defesa do indefensável. Coisas como a continuação do domínio britânico na Índia, as purgas e deportações na Rússia, o lançamento de bombas atómicas no Japão, podem realmente ser defendidas, mas só com argumentos que são brutais para que a maior parte das pessoas os consiga encarar, e não dizem bem com os objectivos que os partidos políticos dizem visar. Por isso a linguagem política tem que viver largamente de eufemismos (...) e de puras vacuidades nebulosas. Bombardeiam-se, do ar, aldeias indefesas, empurram-se os seus habitantes para o campo aberto, metralha-se o gado, deita-se fogo às cabanas com balas incendiárias: chama-se a isto pacificação. Roubam-se as quintas a milhões de camponeses e mandam-nos trotar para as estradas apenas com aquilo que levam nas mãos: chama-se a isto transferência de população ou rectificação de fronteiras. Metem-se pessoas na cadeia, durante anos, sem julgamento, ou dá-se-lhes um tiro na nuca ou mandam-nos morrer de escorbuto em campos de madeira no Ártico: chama-se a isto eliminação de elementos que não merecem confiança. Uma tal fraseologia é necessária quando se quer nomear as coisas sem trazer ao espírito a clara fotografia delas. Considere-se, por exemplo, um confortável professor de inglês defendendo o totalitarismo russo. Não poderá dizer abertamente: “Eu acho que é aconselhável liquidar os nossos adversários, se com isso obtivermos bons resultados.” Por conseguinte, dirá provavelmente qualquer coisa como isto: “Conquanto conceda livremente que o regime soviético exibe certos aspectos que os humanistas podem sentir-se inclinados a deplorar, devemos, penso eu, concordar que uma certa redução do direito à oposição política é uma componente inevitável de certos períodos de transição e que os rigores de sofrimento a que o povo russo tem sido submetido têm sido amplamente justificados na esfera dos resultados concretos conseguidos.” 
Orwell acreditava, e com razão, que a clareza do discurso se perverte sempre que o totalitarismo se propõe avançar. Ou, por outras palavras, que a liberdade política e a simplicidade de linguagem estão, por força, interligadas. A simplicidade do discurso é própria de quem nada tem a esconder (…) Por isso observava Vauvenargues que “a clareza é a boa fé dos filósofos”. 
Dela, com efeito, só têm medo os pervertidos, os opressores e os charlatães. O contorcionismo linguístico é sempre um sinal de doença: a má fé anicha-se, de preferência, no enredado e no arrendado das palavras. (…) A limpidez da linguagem é a maior homenagem que o homem livre pode oferecer ao homem livre. 
Por isso, a uma amiga a quem se declarava, Orwell informava-a, com lisura e candura, de tudo quanto nele era pouco recomendável, concluindo: “Falei-lhe de modo chão porque sinto que V. é uma pessoa excepcional.” 
Toda a obra de Orwell é, portanto, na sua cristalina inteireza, uma declaração de apreço pelo leitor. (…) 
À memória de um amigo que conhecera nos primeiros dias da sua estadia em Espanha, Orwell dedicou um poema que concluía assim: Mas àquilo que vi no teu rosto nenhum poder pode fazer mal: não há bomba, por mais que rebente, que destrua o espírito de cristal. 
O seu “espírito de cristal”, a sua intrépida lucidez, o magnetismo potente do seu falar inteiro, o seu ódio saudável ao Newspeak [a odiosa e mentirosa “novilíngua” dos opressores] (…) – são, afinal, o seu melhor e mais durável legado. Como ele próprio dizia, não há bomba que destrua o espírito de cristal. 
Eugénio Lisboa


 Sueltos

VERGONHA!

De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto (Rui Barbosa).

Envergonhado na minha condição de cidadão deste país, começo por citar este naco de prosa sobre  um deputado do Partido Socialista, eleito pelo círculo eleitoral do Porto, cidade de gente honrada e trabalhadora, Eduardo Barroco de Melo que defendeu, esta terça-feira, na sua conta pessoal Twitter, a inclusão dos deputados nos grupos prioritários da vacinação contra o coronavírus, tendo chegado ao desplante inominável de criticar os seu pares de bancada que, “ad contario”, em  nobre atitude de amor ao próximo,  rejeitaram a sua administração prioritária em benefício pessoal. Os seu nomes, brevemente, cairão no esquecimento mas o nome de Eduardo Barroco de Melo perdurará em gente com memória porque o tempo nem sempre é uma esponja que apaga da memória situações deste tipo.   

Espero que António Costa para tentar, ainda que em vão, salvar a honra do PS, qual casa em ruínas,  que aparece constantemente em notícia públicas  de escândalos ventilados nos media não lhe desculpe esta vergonha chamando-o ao seu gabinete oficial para lhe dar um puxão de orelhas que ele, em boa verdade merece.

O destino olhou por ele embalando-o em berço de rendas ao não lhe permitir a veleidade de estudar na Escola Náutica para vir a desempenhar funções  de comandante de navio de passageiros sendo o último a abandoar um barco prestes a soçobrar. O não cumprimento deste preceito  faz com esse poltrão seja demitido sem demora.

Mas ele, deputado,  não está neste salve-se quem puder por haver já uma lista de políticos, logo de deputados,  para passarem à frente de trapos velhos, alguns verdadeiros farrapos humanos, depois de uma vida de sacrifícios prestados ao país que serão ultrapassados por a maioria deles com  honrosas  execepções que,  com muita dignidade ,se recusarem a entrar nessa lista.

Lista que, finalmente, como eu já defendi publicamente passará a englobar os bombeiros que transportando nas ambulâncias doentes do coronavírus pertencem ao número da população  que corre mais risco e que muito  necessários são num ocasião de verdadeira calamidade cujos efeitos finais se desconhecem e  em que Portugal ocupa o primeiro lugar de mortes pelo coronavírus por milhão de habitantes. Esta  a verdade nua e crua!


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

O ANO DE DOSTOIÉVSKY E OUTROS

 


Texto meu sobre efemérides de 2021 que acaba de sair na revista "As Artes entre as Letras" do Porto (não houve espaço para outras efemérides, como os 100 anos do Nobel de Einstein, os 200 ano da morte de Napoleão, e os 700 anos da morte de Dante) 

Se 2020 foi o ano Beethoven para assinalar os 250 anos do seu nascimento, 2021 é – vai ser – o ano do russo Fiodór Dostoiévsky, o autor de Crime e Castigo, O Jogador e Os Irmãos Karamazov, um gigante da literatura mundial. O escritor nasceu em 11 de Novembro de 1821 e morreu quase 60 anos depois. Entre nós a Presença vai reeditar uma dezena das suas obras, que vale a pena ler ou reler. Destaco a edição em dois volumes, na Presença, dos Irmãos Karamazov com tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra, tradutores premiados pela Associação Portuguesa de Escritores e pelo Pen Clube Português. Mas há edições de outras editoras como a Relógio d‘Água.


As comemorações literárias não se ficam, porém, por aqui. Passam os 400 anos do nascimento do francês Jean de la Fontaine (1621-1695), o autor das famosa Fábulas, escritas entre 1169 e 1694, e os 150 anos do nascimento de Marcel Proust (1871-1922), o autor de Em Busca do Tempo Perdido, escrito entre 1908 e 1922 e publicado em sete volumes entre 1913 e 1927.


Entre nós assinala-se o centenário de Carlos de Oliveira (1921-1981), nascido em Belém do Pará, no Brasil, de emigrantes portugueses, mas associado à Gândara, no concelho de Cantanhede. É o autor dos livros Uma Casa na Duna, Uma Abelha na Chuva e Finisterra, entre outros, além de um trabalho poético num só volume. E passa também o centenário de Rui Grácio (1921- 1991), nascido em Lourenço Marques (hoje Maputo), que foi pedagogo e estudioso de Ciências da Educação – a minha selecta de Filosofia do liceu foi organizada por ele.


Para Coimbra, 2021 é um ano marcante, embora a cidade permaneça culturalmente apática. Passam-se so 800 anos da Fundação do Mosteiro de Celas, uma casa da Ordem de Cister, que foi fundada pela beata D. Sancha, filha de D. Sancho I, em Vimaranes, no que eram então arredores de Coimbra, mas que hoje pertence à cidade. Recomendo uma visita ao claustro que é do início do século XIV e que tem belos capitéis com cenas da vida de Cristo. Sugiro sobre esse mosteiro o belo livro Santos, Heróis e Monstros. O Claustro da Abadia de Santa Maria de Celas, de Carla Varela Fernandes, Edições Colibri (2020).


Por outro lado, passam 750 anos do nascimento da  Rainha Santa Isabel ou Rainha Santa (1271-1336), a aragonesa que casou com D. Dinis e que foi canonizada em 1625, sendo hoje padroeira da cidade de Coimbra. Foi sepultada no mosteiro de Santa-Clara-a-Velha, que esteve muitos anos inundado pelo Mondego e que foi exemplarmente reconstruído (vale a pena a visita!), mas, devido à subida do nível das águas fluviais, foi transladada para o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, no alto de uma colina próxima, onde está hoje (a Igreja pode ser visitada, mas o gigantesco edifício do mosteiro não, ou melhor só pode em circunstâncias especiais, como têm sido as da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra).


Em 2021 passam, a 19 de Dezembro, os 500 anos da coroação de D. João III (1502 -1557), o filho mais velho de D. Manuel I, que se tornou um dos reis mais poderosos do mundo. Passam também os 500 anos da chegada, em 16 de Março, de Fernão de Magalhães (1480-1521) às Filipinas. O navegador português que empreendeu a primeira viagem de circum-navegação não a completou: morreu em Mactan, na ilha de Cebu, no arquipélago filipino, num confronto com os locais, no mês seguinte ao da chegada.


No ano seguinte aquele em se comemoraram os 200 anos da Revolução Liberal, há duas datas relevantes para a história da liberdade em Portugal: assinalam-se os 200 anos da extinção da Inquisição em Portugal. Instituído em Portugal por D, João III em 1536, esse tribunal só foi extinto em 31 de Março de 1821. Assinalam-se também os 200 anos da Liberdade de Imprensa em Portugal: com efeito, foi a 4 de Julho de 1821 que foi promulgada a primeira lei de liberdade de imprensa. Essa lei logo no seu primeiro artigo assegurava a qualquer pessoa a possibilidade de imprimir, publicar, comprar e vender em Portugal e nos Estados Portugueses quaisquer livros ou escritos sem censura prévia. Dez dias depois era criado o Tribunal Especial da Proteção da Liberdade de Imprensa.


Em 2021, comemoram-se os 150 anos do nascimento de Alfredo da Silva (1871-1042), o grande industrial que fundou a Companhia União Fabril - CUF, entre outras grandes empresas que deixaram marca no panorama económico e social português. É ainda o ano do centenário da revista Seara Nova, fundada em Lisboa em 1921 por iniciativa de Raul Proença, onde pontificaram intelectuais como Jaime Cortesão, António Sérgio, Raul Brandão e Aquilino Ribeiro. A revista, que foi um baluarte da luta contra o Estado Novo, ainda hoje existe. Acresce que passa o centenário do jornal vespertino Diário de Lisboa, cujo primeiro número saiu em 7 de Abril de 1921 (sendo primeiro director Joaquim Manso) e o último em 20 de Novembro de 1990. A integridade das edições esta disponível nas páginas web da Fundação Mário Soares. Lembro-me de ter mandado um artigo para o Diário de Lisboa Juvenil, mas não sei se saiu…


Do ponto de vista científico, 2021 é o ano do centenário do físico russo e activista político Andrei Sakharov (1921-1989), que foi prémio Nobel da Paz e que tem o nome num prémio da União Europeia. Entre nós é o centenário da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, a mais antiga faculdade de Farmácia do país em funcionamento contínuo.


Uma vida humana pode abranger um século. Edgar Morin, o sociólogo francês que tive o gosto de conhecer pessoalmente e que é autor de numerosos livros traduzidos entre nós, nasceu em Paris em 8 de Julho de 1821. Daqui a cerca de seis meses vai soprar cem velas…

NOVA "EUREKA" (Revista em espanhol de ensino e divulgação das ciências a cujo comité editorial pertenço)

 Publicado nuevo número de Revista Eureka sobre Enseñanza y Divulgación de las Ciencias: Vol 18, nº 1, enero de 2021

https://revistas.uca.es/index.php/eureka/issue/view/415


Visite la web de nuestra revista para leer el aviso completo.

NOVOS CLASSICA DIGITALIA

 Os Classica Digitalia têm o gosto de anunciar 2 novas publicações com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os volumes dos Classica Digitalia estão disponíveis em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital, em Acesso Aberto.

[Fora de Série]

Correia Martins & Adriano Scatolin: O discurso inaugural do real colégio dos nobres (1766), por Miguel Antonio Ciera. Introdução, tradução e estabelecimento do texto latino (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2021). 110 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1938-5

 [O italiano Miguel António Ciera profere a 14 de abril de 1766 o Discurso Inaugural do Real Colégio dos Nobres, instituição impulsionada pelo Ministro Sebastião Carvalho e Mello, sob o patronato régio de D. José I. O Discurso, escrito em latim e estruturado em doze capítulos, apresenta reflexões em prol das Letras e das Humanidades, discorre sobre questões de Filosofia Política, num equilíbrio sensato entre críticas e elogios a uma classe privilegiada que se almeja que seja cada vez mais versada nos diversos assuntos de Estado. Este panegírico incide sobretudo sobre a imprescindibilidade de uma formação integral, como se de uma segunda natureza se tratasse, fortalecida nos princípios da ética e da moral para que os jovens nobres pudessem desempenhar de forma ativa e competente os papéis para os quais estariam destinados. A eloquência do orador, a estrutura argumentativa da preleção, tão ao estilo ciceroniano, comprovam que tanto ao nível da ‘res’ como dos ‘verba’ este discurso é de assinalável relevância para o estado de arte e para o estudo da História da Pedagogia no século XVIII, em Portugal.]

 

Série “Ideia” [Estudos]

Luís António Umbelino (coord.): Corps ému: essais de philosophie biranienne / Corpo abalado: ensaios de filosofia biraniana (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2021). 592 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1992-7

[Este volume pretende demonstrar de modo renovado a “inatualidade” de Maine de Biran, entendendo-se por tal o seguinte: em Biran há algo que se torna conhecido pela primeira vez, algo que não foi percebido no seu tempo, mas continua a chamar a pensar; talvez a aparente inatualidade de Biran seja, pois, na contraluz do modo como veio a nutrir subterraneamente a contemporaneidade filosófica, o modo de um pensamento original ensaiar recorrentemente o seu regresso em tempos mais propícios ao reconhecimento do seu alcance e do seu vigor.] 

domingo, 24 de janeiro de 2021

SUELTOS (1)

 Dada a velocidade meteórica com que se sucedem os escândalos políticos  na casa portuguesa, decidi deixar de escrever  textos extensos,  escrevendo sueltos. Publico  o primeiro:

Acabo de ler que os políticos passam a ser prioritários na vacinação do corona vírus.

Pelo sim pelo não,  em habilidosa jogada de antecipação, o presidente da Câmara de Reguengos de Monsaraz já se vacinou. Se a legislação em causa passar  a ter efeitos rectroactivos (como é uso do PS quando lhe convém) estará salva a honra do seu convento autárquico.

Um convento permissivo em que a vergonha é palavra vã, ao contrário do país vizinho em que numa situação idêntica se  demitiu um general espanhol.

Aqui chegado surge-me inevitável a definição de político para evitar abusos de interpretação não vá alguém querer antecipar-se ao processo de vacinação alegando, a exemplo de Aristóteles,  que “o homem é um animal político”. Há gente para tudo”!

P.S.: 1. Os familiares dos políticos beneficiam dessa vacinação, a exemplo da herança de pais para filhos ou cônjuges em cargos ministeriais? É que, como nos diz a sabedoria popular, “gato escaldado de água fria tem medo”!

2. Em atitude humanitária muito louvável, que me apraz registar, o presidente da Câmara da Lousã, Luís Antunes, do PS, escreveu uma carta a António Costa a pedir a vacinação dos  bombeiros.

sábado, 23 de janeiro de 2021

MORAL DA HISTÓRIA, NÃO CHEGA PROIBIR!

“Acreditai que nenhum mundo que nada nem ninguém vale mais do uma vida ou a alegria em tê-la” (Jorge Sena)


Há certas situações em que eu gostaria de não ter razão ouvindo bichanar, ao lado e em surdina, deixá-lo falar que ele há-de cansar-se de falar contra a parede do silêncio. Mas ainda bem que eu não me calo numa situação em que está em causa o maior bem do mundo, a vida humana.


Neste circo de palhaçada em que se tornou a política  portuguesa, eu sou o pobre palhaço, citando Charles Chaplin, “o que me coloca a nível bem mais elevado que o de qualquer outro político”. Sou palhaço, sim, mas refractário às perigosas palhaçadas que se passam na  vida política portuguesa.


Elas são tão trágico-cómicas e tão constantes que seria fastidioso e difícil enumerá-las. Basta ler os jornais ou ouvir a televisão. Por exemplo, no género de uma verdade à Monsieur de la Palisse, acabo de ler “que o voto é mais seguro do que a maior parte dos actos que praticamos fora de casa (“Sapo 24”). Mas sem os especificar para que não corramos esses riscos, muito menos quais as justificações científicas que sustentem uma mera opinião.


Mas hoje, finalmente, li, no “Diário de Notícias”, uma notícia que sustenta o que humildemente na minha santa ignorância tenho defendido: “PSP cria ‘equipas covid’ e requisita  Polícia Municipal do Porto que só nos últimos quatro dias deteve 22 pessoas”. 


Solução musculada de passar da simples  dispersão os ajuntamentos de pessoas. Solução  que eu defendo  como posso testemunhar com a transcrição parcial  do meu texto aqui pulicado no  dia 20 deste mês de Janeiro, intitulado “Portugal, país com leis por cumprir em hora de verdadeira calamidade pública”. Transcrevo-o:


“Moral da história: não basta proibir. É imprescindível criar condições para que a lei seja cumprida. Tanto assim é que leis contra a corrupção, por si só, não diminuem a corrupção, por os corruptos verem as leis a não serem cumpridas sem nada lhes acontecer por acabarem, por  vezes, os delitos  por prescrever. Nesta situação, é a economia do país a ser atingida e os pobres dos contribuintes a sofrerem as consequências. Mas na pandemia do coronavírus, é bem mais grave por ser um sem número de vidas humanas que estão em risco de vida!


A solução não me parece serem as autoridades simplesmente a dispersarem as reuniões, à porta fechada ou na via pública, para os seus participantes não voltarem a reunir-se em outros locais. Mas as forças da ordem, por exemplo, Polícia e GNR, exigirem a identificação dessas pessoas para que as provas se processem na hora e “in loco”; e sejam tanto maiores as penalizações consoante haja reincidências ou não!”


Para que a justiça deixe de ser uma palavra vã parece ter chegado a hora depois de um sofrimento que teria sido evitado, ou não atingisse as proporções que atingiu, se cumpridas, na devida altura, as medidas de confinamento e não como aconteceu no Domingo passado em que as eleições antecipadas serviram de aperitivo para longos e descuidados passeios familiares ou entre simples amigos

.

Finalmente, haja Deus!, parece ter-se passado da época de ameaças à actuação sem contemplações. Para para além das nossas vidas com mais ou menos anos de existência, perigaram a vida de jovens na flor da idade também elas a passar momentos de aflição. 


Onde falta o bom senso, haja piedade pelo sofrimento do próximo e responsabilização de políticos que possam ter actuado mal, por ignorância ou não, ou pecado por omissão!

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

SOPHIA

 Sabedoria! 

Como defini-la? Como alcançá-la?  

"Só sei que nada sei", dizia o filósofo grego, e essa será a grande Sabedoria, porque "Sábio é aquele que não sabe que é Sábio"... 

E como é importante, e cada vez mais urgente, aquela máxima gravada no templo de Apolo, em Delfos, "conhece-te a ti mesmo"! O conhecimento mais difícil de alcançar, mas essencial para a nossa relação com os outros, com o mundo.


 





  Personificação da Sabedoria na Biblioteca de Celso (século III), em   Éfeso, (na actual Turquia) 

 

  imagem retirada de

   https://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_(sabedoria)

 

 

 

 

E é de Sabedoria, da Sophia grega, que nos fala Pascale Seys no seu último apontamento filosófico.



Un P'tit Shoot de Philo avec Pascale Seys, que pode ser ouvido, com acompanhamento de imagens em:

https://www.facebook.com/10784328482/videos/405413710763299

 

 

Segue o texto em tradução:

 

 

Sabiam?

Nos nomes próprios Sofia, Sania e Sofyen está escondida metade da filosofia. E a questão que a filosofia coloca é  de que se trata, ou mais precisamente: qual é a questão?

 

Os Gregos da Antiguidade chamaram “Sophia” a uma faculdade um pouco particular, uma aptidão tão rara quanto ambicionada que ninguém nunca possui verdadeiramente, que nos escapa quase sempre e que se pode definir como uma comportamento reflectido e comedido face aos vexames, às frustrações e aos obstáculos da vida.

Entender e enfrentar podem definir a sabedoria. Mas como identificar um sábio? O filósofo Aristóteles propôs uma fórmula admirável. Diz ele : “o ignorante afirma, o estudioso duvida, o sábio reflecte.” De facto, o sábio na medida em que pensa, tenta ler o mundo e os seres e a história, colocando perguntas pertinentes e, se possível, como Demócrito, rindo. Porque o sábio é aquele que não sabe que é sábio, e, por isso mesmo, ri-se. Do mesmo modo, a sabedoria excede em muito todas as riquezas das quais nos poderíamos valer, o que levava Bob Marley a dizer, num remate socrático,  que a sabedoria vale mais que o ouro ou a prata. Vemos bem isso, se a sabedoria é difícil de qualificar é porque ela é um exercício, uma ginástica da alma,  um itinerário exigente e é difícil descrever um tal actividade a não ser por analogias ou metáforas. Os historiadores avançaram a hipótese  de “Sophia” ser  a mulher que Deus agarra com um braço enquanto estende o outro para tocar a mão de Adão no fresco de Miguel Ângelo, que ornamenta o tecto da Capela Sistina.

Divindade grega, deusa dos amigos da razão, o santuário da sabedoria está implantado à entrada do estreito do Bósforo e do Corno de Ouro, na cidade de Istambul. Uma basílica construída no século IV, que foi  o mais importante lugar de coroação dos imperadores bizantinos. Segue-se toda uma história de conflitos próprios das convicções humanas: a basílica de Santa Sofia, cristã do Oriente, foi convertida em mesquita, depois da tomada de Constantinopla pelos Otomanos, em 1453, depois foi transformada em museu sob o regime laico de Mustafa Kemal Atatürk nos anos 30 do século XX. Em Março de 2019, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan  declarou que a história tinha cometido “erros” e que era tempo de a Basílica de Santa-Sofia de Istambul, Ayosofya, voltar a ser uma mesquita. O chefe de estado traz, assim, de novo a eterna querela entre a fé e a razão.

De acordo com os mitos gnósticos, Sofia amava de tal modo os humanos que, ao contrário de Deus, decidiu viver entre os homens. Mas, para sua grande surpresa, os humanos ignoraram-na, apesar dos seus conselhos e das suas imprecações. E, desiludida, a sabedoria decide então abandonar os humanos às suas dúvidas, reservando a sua benevolência e a sua ajuda apenas àqueles e àquelas que a procuravam verdadeiramente.

Sábios são aqueles que questionam e que duvidam. E, por vezes, alguns respondem com sabedoria. Mas são os outros que o dizem: porque o sábio se reconhece como aquele que não sabe que é sábio.


 

 

 

 

 

 

Imagem tirada de

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/ae/The_Creation_of_Adam_%281%29.png


O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...