Publicamos com muito gosto um texto acabado de receber de Eugénio Lisboa, ensaísta e poeta que tem colaborado neste blogue, onde faz o elogio do seu gato (na foto o autor com um seu felino anterior ao actual):
Pascal sabia
Física, sabia Matemática, deixou um notável livro de pensamentos e um polémico
e saboroso livro de cartas provinciais, além de se deixar arrastar para
congeminações teológicas (ninguém é perfeito: ninguém foi intelectualmente
maior do que Newton, o que o não impediu de desperdiçar tempo com a alquimia e
com a Bíblia). Foi também Pascal quem
disse, por exemplo, esta coisa preciosa, que parece ter sido escrita para
benefício dos que atravessam este período sombrio e altamente mortífero: “É
preciso fazer um bom uso das doenças”, o que pode ser entendido, de modo mais
lato, como devendo aproveitar-se, positivamente, mesmo situações muito
negativas. Quando estamos doentes – ou, como agora, confinados, o que é uma
espécie de “doença” – temos, em muitos casos, bastante tempo à nossa
disposição, para meditarmos, lermos, escrevermos, ouvirmos música (os que dela
gostem) e até para convivermos com amigos e familiares, pela internet ou pelo
telefone.
Mas será
mesmo assim? Poderemos aproveitar, assim tão completamente, esse tempo “disponível”?
A minha experiência pessoal (pode ser que seja muito particular, mas é a
minha), de pessoa com idade avantajada e tendo em casa, como única companhia, a
minha gatinha Ísis, fez-me questionar muito seriamente o mito da produtividade
do confinamento. Tanto que nem sequer sei se terminarei este texto que comecei
agora a escrever. Eu explico (se conseguir).
Ter-se um
gato, como companhia, o dia inteiro, é um presente dos deuses. O grande Dickens
sabia isso, quando afirmava que “there is no greater gift than the love of a
cat”. O gato é um animal bonito, elegantíssimo, inteligente e extremamente
inventivo. Está sempre a ter ideias, embora muitas delas francamente
turbulentas e algo destrutivas. E, ao contrário do que dizem os ignorantes (que
nunca tiveram gatos ou os tiveram e não lhes prestaram a devida atenção), o
gato, se bem tratado e acarinhado, torna-se não só nosso amigo, como se torna
até um amigo fiel e assíduo, sendo de opinião que é mal empregado todo o tempo
que lhe não dediquemos, embora ele necessite de algum tempo para retiro,
meditação e soneca. De facto, ele só não está connosco, quando DECIDE que tem,
ELE, de fazer coisas mais importantes, como, por exemplo, partir um prato ou um
copo ou um bonito objecto de arte que seja frágil e esteja mesmo a pedi-las.
Ou, como já dissemos, dormir. Um gato pode ser muito nosso amigo, mas recusará
terminantemente ser nosso escravo: o seu orgulho felino nunca lhe permitiria
esse abaixamento, que ele vê, com desprezo, praticado pelo cão, nunca elevado
ao estatuto de deus, pelos egípcios. Mas não lhe passa pela cabeça que os
humanos tenham o mesmo comportamento orgulhoso. Quando lhe apetece – ao gato –
saltar-nos para o colo ou para as costas, dificilmente aceita que recusemos.
Ele SABE quando quer estar sozinho, mas não aceita que nós queiramos estar
sozinhos, quando a ELE lhe APETECE estar connosco. Isto pode parecer estranho a
um humano, mas o gato percebe-o perfeitamente. O homem foi feito para servir o
gato e não o gato para servir o homem: um deus manda e não é mandado! Isto está
inscrito no ADN dos felinos de salão.
Agora, um
exemplo: a minha gatinha, de pelo preto e branco, cores distribuídas pelo seu
corpo, segundo padrões que deixavam embevecidos os contemporâneos da Rainha
Vitória, não se importa nada que eu oiça música, mostrando até um interesse
cativante por um quinteto de Mozart ou por uma qualquer peça de Haydn, de
Beethoven (desde que não seja o primeiro andamento da quinta sinfonia, nunca
percebi porquê, até porque aguenta perfeitamente a nona, mesmo com o
estardalhaço dos corais), de Schubert ou de Chopin. Nunca experimentei Wagner,
por temer o pior (já me partiu um número suficiente de objectos que eu muito
estimava). Também tolera, moderadamente, que eu leia, desde que, de vez em
quando, interrompa a leitura, para lhe dizer quanto gosto dela e quanto ela é,
para mim, mais importante do que Os
Irmãos Karamazov. Mas há uma coisa que ela, decididamente, não suporta: é
que eu ESCREVA! Aí, perde completamente os pedais. Quando me sento num sofá e
abro um bloco com linhas, em cima do tabuleiro colocado em cima das minhas
pernas e me preparo para uma boa tarde de escrita, ela, esteja em que ponto da
casa estiver, apercebe-se misteriosamente do meu acto sacrílego – ESCREVER! – e
surge na sala em que me encontro, a correr em quinta velocidade, salta para
cima do tabuleiro, deita-se, em cheio, em cima do que estou a escrever e
olha-me com ar desafiante, de quem diz: “Esquece o que estavas para aí a
rabiscar. Vim para ficar!”
Agora,
pergunto: que fazer, numa situação destas? A resposta imediata do ignoramus
seria correr com o gato e retomar a escrita. Mas, quem todo o dia ouve o seu
afectuoso gato recordar-lhe que, no tempo dos faraós, ELE tinha o estatuto de
um deus e como tal era venerado, só lhe resta vergar-se e ajudá-lo a recuperar
a eminência perdida. Sim, porque os apelos do bichano são tão pungentes que,
diante deles, pergunta-se: QUE FAZER? (assim perguntava Lenine, num livro
célebre, mas com assunto de bem menor importância do que o estatuto do gato!)
Fica-se dilacerantemente perplexo. Sim, que vale um poema (mesmo sublime e
longo), um romance, um ensaio ou um verbete de um diário, comparados com o amor
de um gato? Se Camões gostasse de gatos e tivesse um gato, quando naufragou, na
foz do Mecom, que acham Vocês que ele salvaria: o gato ou os Lusíadas? Qualquer genuíno amante de
gatos conhece a resposta. Por mim, sacrifico sempre a escrita ao afecto de um
gato. Não troco esse afecto por nenhum pífio triunfo literário. Posso mesmo
afirmar, com orgulho, que os meus três últimos felinos – Jim, Secotine e Ísis –
contribuíram decisivamente para diminuir a dimensão da minha bibliografia
activa. Mas que importância tem isso?
Que vale a mais aparatosa bibliografia, em face do elegante esplendor de
um gato?
P. S.
confirmativo: escrever o pequeno texto acima consumiu-me, devido à presença da
Ísis, o triplo do tempo que me levaria a fazê-lo, se ela não estivesse
presente.
Eugénio Lisboa
1 comentário:
O felino da foto é o Jim, já há bastos anos, no Olimpo das divindades peludas. A actual ("a", não "o") é a Ísis "de pelo preto e branco, cores distribuídas pelo seu corpo, segundo padrões que deixavam embevecidos os contemporâneos da Rainha Vitória".
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