Meu artigo saído no As Artes entre as Letras:
No ano da celebração dos 150 anos do neurologista António Egas Moniz (1874-1955) e os 75 anos do seu Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina (1949), o único até agora obtido por um português em áreas das ciências, convém lembrar que ele era um homem das «duas culturas», ainda que esta expressão só tenha surgido em 1955 (foi cunhada pelo escritor inglês Charles P. Snow numa famosa conferência em Cambridge).
Falando apenas de literatura (nas artes plásticas, abordou as obras do pintor António da Silva Porto e do escultor Maurício de Almeida), Egas Moniz foi não só biógrafo e crítico do escritor Júlio Dinis, pseudónimo de Joaquim Gomes Coelho (1839-1871), como prefaciador de uma boa parte da sua obra. Além disso, tratou nas suas conferências e escritos de autores como Gil Vicente (c. 1465 – c. 1536), Padre António Vieira (1608–1697), Camilo Castelo Branco (1825–1890), João de Deus (1830–1896), Abílio Guerra Junqueiro (1850–1923), Teixeira de Pascoaes, pseudónimo de Joaquim Teixeira de Vasconcelos (1877–1952), e Júlio Dantas (1876–1962). Um padrão que ressalta é o apego do laureado Nobel a autores clássicos. E os estilos dos dois nomes seus contemporâneos eram de algum modo tradicionais. Na primeira metade do século XX, quando a arte fervilhava de novas correntes, Egas Moniz não mostrou grande gosto pelas novidades, não se aventurando na apreciação e divulgação de autores mais revolucionárias. É certo que conheceu pessoalmente Fernando Pessoa (1888–1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890–1916), mas isso aconteceu no seu consultório, sendo eles pacientes. É paradoxal que um autor de inovações na ciência médica (a arteriografia cerebral e a leucotomia pré-frontal, esta última conducente ao Nobel) tenha primado por escolhas estéticas conservadoras. Mas o mesmo aconteceu com cientistas seus contemporâneos, dos quais o maior, Albert Einstein (1879–1955), tinha gostos musicais que não iam, na linha do tempo, muito além de Schubert.
Mas, mais do que este desajuste relativamente à evolução da arte no seu tempo, importa realçar o facto de Egas Moniz ter sido, além de médico e investigador, arguto crítico literário, e o facto de ter uma escrita elegante – basta ler A Nossa Casa, de 1950, o seu livro com reminiscências da juventude, passada em boa parte em Avanca, Estarreja. Nunca foi, porém, um ficcionista. O escritor Alexandre Cabral, pseudónimo de José dos Santos Cabral (1888 – 1935), especialista na obra de Camilo, numa conferência que deu em 1950, portanto logo após o Nobel de Moniz, intitulada Aspecto literário da obra do Professor Egas Moniz, n’A Voz do Operário em Lisboa, publicada pela Portugália, refere textos do laureado onde descortina recursos estilísticos que são mais próprios da ficção do que do ensaio. Escreveu: «Surpreende verificar como o Prof. Egas Moniz tem encontrado, fora das suas ocupações de médico e de investigador, o tempo suficiente para se dedicar à literatura e à crítica de arte, o que de resto tem feito com imenso brilho.» Egas Moniz, além de veia científica, também tinha veia literária.
Sabendo que estou bem longe de ser o primeiro, interessa-me realçar aqui o valor que Egas Moniz acrescentou ao legado de Júlio Dinis, o médico-escritor portuense que morreu de tuberculose aos 31 anos. Egas Moniz terá encontrado afinidades com ele por ambos serem médicos e por Júlio Dinis ter vivido em Ovar, terra próxima de Avanca (foi em Ovar que Júlio Dinis escreveu As Pupilas do Senhor Reitor), embora não tenham convivido: o escritor morreu três anos antes de Egas Moniz nascer.
Há poucas semanas, nos alfarrabistas que gosto de frequentar, veio ter às minhas mãos o volume de Egas Moniz Júlio Dinis e a sua Obra (Livraria Civilização, do Porto), na 6.ª edição, revista e actualizada pelo autor, que, embora sem indicação de data pela editora, tem uma «advertência» inicial do autor que data de 1946. Esta obra é abrilhantada por uma carta-prefácio de Ricardo Jorge (1858–1939), onde este médico (do Porto como Júlio Dinis) exibe a sua extraordinária qualidade literária. Escreve Ricardo Jorge: «A Medicina e os médicos têm invadido em onda crescente o âmbito da crítica histórica, artística e literária – volta-se aos tempos da Renascença em que letras e ciências, humanismo e hipocratismo, se irmanavam como filhos do mesmo Apolo.» Em particular, ele chama a atenção para a leitura psicanalítica que Egas Moniz fez de parte da obra de Júlio Dinis (o cap. XVIII é sobre «Júlio Dinis e a Psicanálise», tema de uma conferência que Egas Moniz deu em 1924, ano da 1.ª edição de Júlio Dinis e a sua Obra, na Casa Ventura Abrantes, de Lisboa). De facto, Egas Moniz foi pioneiro na recepção de Sigmund Freud (1856-1939) em Portugal. Júlio Dinis e a sua Obra, ao mesmo tempo biografia e análise crítica, está enriquecido com textos inéditos do romancista. Com efeito, Egas Moniz procurou junto de familiares e amigos do médico-escritor o espólio não publicado.
Na badana direita deste livro, a editora Livraria Civilização, dirigida por Américo Fraga Lamares, filho do fundador, lista as Obras Completas de Júlio Dinis. Depois das obras saídas em vida, bem conhecidas (As Pupilas do Senhor Reitor, Os Fidalgos da Casa Mourisca, A Morgadinha dos Canaviais, Uma Família Inglesa, e o primeiro volume dos Serões da Província), a editora elenca os outros volumes de Júlio Dinis, todos eles apresentados e organizados por Egas Moniz. A saber: Serões da Província (2.º volume, contendo as novelas póstumas), Cartas e Esboços Literários, Poesias, Teatro Inédito (em três volumes, contendo peças por ordem cronológica de edição) e, finalmente, como «complemento indispensável» à edição das Obras Completas de Júlio Dinis, é incluída Júlio Dinis e a sua Obra. Assim, os nomes de Júlio Dinis e de Egas Moniz ficaram ligados para sempre, dando um bom exemplo da junção entre a ciência e a arte. Muitas edições se seguiram, com os dois nomes juntos.