Meu texto de apresentação do livro "Uma Intuição de Portugal" de Sebastião Formosinho (Edições Artez):Foi neste mesmo Anfiteatro do Laboratório Chimico que conheci o Doutor Sebastião Formosinho (SF), no ano lectivo de 1973-1974 – o ano lectivo da Revolução – quando fui seu aluno na disciplina de Química Geral. Devo-lhe por isso a minha formação em química no ensino superior. Se bem me lembro, consegui então uma nota razoável (o que não foi fácil, lembro-me de me embrenhar no manual do Pimentel). Estou-lhe por isso muito grato. E é, portanto, com a obrigação de pagamento de dívida que um discípulo tem sempre para com o mestre que me encontro hoje aqui a apresentar o seu último livro,
“Uma Intuição por Portugal”. A minha tarefa não é fácil: o livro proporciona múltiplas leituras. Se a história do declínio e queda do projecto que SF impulsionou no Pólo das Beiras da Universidade Católica, quando o dirigiu, parece constituir a motivação principal do livro, o autor soube apresentar esse caso, decerto sintomático, como instrumento para um exame mais profundo – aproveita-o para ensaiar um diagnóstico cultural do país, um diagnóstico que é ao mesmo tempo político e social, académico e científico, cultural e filosófico. O livro fala sobretudo de um problema que nos interessa a todos – que nos devia interessar mais a todos – que é o do défice do desenvolvimento português e das razões desse défice. Porque é que alguns países se desenvolveram e desenvolvem mais do que nós?
Cito o poeta Alexandre O’ Neill que escreveu em “
Feira Cabisbaixa”:
“Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, /golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,/ rocim engraxado,/ feira cabisbaixa,/ meu remorso,/ meu remorso de todos nós...”
O nosso remorso em relação a Portugal será não o termos desenvolvido o suficiente. SF tenta compreender porquê...
Antes de entrar na análise do livro falarei do autor. O discípulo não pode ser isento a falar do mestre. Depois de ter estado sentado nos algo desconfortáveis bancos desse anfiteatro, tive a sorte de ter podido beneficiar ao longo dos anos do confortável convívio do autor. Não pude seguir a sua curta experiência no governo por na altura estar a fazer o doutorarento na Alemanha. Mas segui com interesse, bem mais tarde, a sua presidência da Comissão de Incineração de Resíduos Perigosos – devo dizer que apoiei e apoio, no essencial, as teses tão mal compreendidas dessa Comissão. Beneficiei a sua companhia em Comissões de Avaliação e, actualmente, estou com ele na Comissão Científica do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra (UC), que está a fazer o programa museológico do Museu que tem a pré-figuração neste mesmo espaço. Fiquei contente quando fui tendo notícia das várias distinções que foi obtendo, das quais destaco o Prémio da Fundação Gulbenkian para as Ciências Básicas, de 1994, e o Prémio Estímulo à Excelência da Fundação para a Ciência e Tecnologia, de 2004. E que distinção maior do que a sua nomeação recente, por escolha dos pares, para Presidente do Departamento de Química da UC?
Levaria tempo a falar da sua carreira científica, que muito ficou a dever ao Prémio Nobel da Química de 1967, George Porter, com quem se doutorou em Londres. É uma carreira assinalada em mais de 160 artigos científicos, alguns deles com abundantes citações. Mas, como agora tenho à guarda a Biblioteca Geral, seja-me permitida uma menção especial à sua bibliografia. “
Uma intuição por Portugal” é apenas o mais recente de uma série de duas dezenas e meia de títulos, que todos esperamos que prossiga. Como bibliotecário arrumo esses livros em quatro estantes diferentes:
1- Os manuais escolares, tanto para o ensino básico e secundário como para o ensino superior. Entre outros, no primeiro grupo, refiro:
Problemas e Testes em Química Geral, Coimbra Editora, 1981, com A. C. Cardoso e F. Pinto-Coelho;
Química do Quotidiano, Almedina, 1994, com A. C. Cardoso,
Química para Ti, Livraria Minerva, 1984, com V. M. S. Gil, J. J. Teixeira Dias e A. C. Cardoso. E, no segundo grupo:
Fundamentos de Cinética Química, Fundação Gulbenkian, 1983, e
Estrutura Molecular e Reactividade Química, na mesma editora, 1986, com A. J. C. Varandas e
Cinética Química. Estrutura Molecular e Reactividade Química. Imprensa da UC, 2003, com L. G. Arnaut, que deu lugar a uma edição internacional:
Chemical Kinetics. From Molecular Structure to Chemical Reactivity, Elsevier, 2007, com o mesmo coautor e H. Burrows.
2- Dois livros sobre o processo da coincineração, um contributo de um cientista que na minha opinião não foi suficientemente agradecido para a resolução de um problema nacional – acho que a autarquia de Coimbra se portou mal nesse processo, tendo desperdição uma boa oportunidade para apostar na ciência e tecnologia:
Parecer Relativo ao Tratamento de Resíduos Industriais Perigosos. Principia, 2000, com C. Pio, H. Barros, J. Cavalheiro; e
Co-incineração. Uma Guerra para o Noticiário das Oito, com os mesmos autores e R. Dias e M. Rodrigues, Campo de Letras, 2003.
3- Uma trilogia de livros sobre o modo como se faz ciência, em particular o processo de avaliação pelos pares (o autor propôs uma teoria rival da do Nobel da Química de 1992, Rudolph Marcus, que, na sua opinião, era merecedora de um outro acolhimento – aqui, apesar de achar a polémica interessante, não me posso pronunciar por ignorância da matéria):
Nos Bastidores da Ciência. Resistência dos Cientistas à Inovação Científica. Gradiva, 1988;
O Imprimatur da Ciência. Das Razões dos Homens e da Natureza na Controvérsia Científica. Coimbra Editora, 1994; e
Nos Bastidores da Ciência. Vinte Anos Depois, Imprensa da UC, 2007.
4- Uma outra trilogia, esta de índole filosófico-teológica, que analisa as relações entre ciência e religião, de colaboração com o P. Oliveira Branco:
O Brotar da Criação. Um Olhar Dinâmico pela Ciência, a Filosofia e a Teologia. Universidade Católica, 1997;
A Pergunta de Job. O mistério do mal, na mesma editora, 2003; e
O Deus que não temos. Uma história de grandes intuições e mal-entendidos, Bizâncio, 2008. Nesta área acresce o título:
Ciência e Religião. A modernidade do pensamento epistemológico do Cardeal Cerejeira. Principia, 2002.
É imediata a conclusão que só dificilmente se poderia ter maior amplidão de títulos e de assuntos. Todos eles diversos mas todos eles com uma escrita competente. SF é pedagogo, cientista, tecnólogo, sociólogo da ciência e filósofo. Costumo queixar-me de não ter mais espaço para livros na Biblioteca Geral, mas prometo que não me vou queixar – antes pelo contrário – da chegada de mais livros deste professor, que tem colocado o nome da sua universidade mais alto na cotação nacional e internacional.
Mas é tempo de entrar no livro que nos traz aqui, uma bela edição da Artez. Já disse que o falhanço da experiência de instalação da Medicina Dentária e da Arquitectura na Universidade Católica em Viseu não passará de um meio para o autor colocar uma questão mais profunda: o que nos falta, como país, para sermos não só mais ricos como mais felizes? Sabendo pouco dessas disciplinas, só posso dizer que fiquei surpreendido com a ambição do projecto – sobre este aspecto é deveras eloquente o prefácio de Werner Schneider, professor da Universidade de Uppsala.
O pano de fundo filosófico da reflexão de SF, na sequência aliás de outros seus livros, é o pensamento de Michael Polanyi (1891-1976), químico húngaro de origem judaica, que aos 28 anos se converteu ao catolicismo, que aos 42 anos, a viver em Berlim, fugiu ao regime nazi, encontrando refúgio na cidade inglesa de Manchester, e que aos 67 anos publicou a sua obra mais famosa “
Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy”, uma referência para vários pensadores cristãos. Confesso que tenho alguma dificuldade em acompanhar o pensamento de Polanyi (estou a falar do pai, pois há um filho também famoso, laureado com o Nobel da Química em 1986), por não me conseguir identificar com a sua tese fundamental: a de que todo o conhecimento, mesmo o científico, é de natureza pessoal, exigindo um envolvimento e compromisso do sujeito. A mim parece-me uma afirmação excessivamente pós-moderna, próxima do relativismo. Revejo-me mais na tradição iluminista da objectividade do conhecimento científico, um conhecimento que resulta mais de uma aquisição colectiva do que pessoal. Concordo que o compromisso intelectual e a busca apaixonada são elementos da descoberta científica, mas a ciência vai, na minha opinião, para além do compromisso e da paixão individual: É um compromisso e uma paixão colectiva. O mundo em que vivemos e que é objecto da nossa ciência tem uma existência objectiva que ultrapassa as nossas visões subjectivas. Mas percebo que o autor do livro que hoje aqui apresento se interesse por Polanyi: ao fim e ao cabo os dois dedicaram-se à cinética química e os dois propuseram uma teoria mal compreendida, sendo também fácil depreender alguma identificação do ponto de vista filosófico-religioso. O Cap. 8 é dedicado ao
“conhecimento tácito” de Polanyi, que passou em Manchester de professor de Química a professor de Ciências Sociais (o contrário seria talvez mais difícil...). É recompensador ler esse capítulo, tal como os dois seguintes, para perceber melhor as pontes que o pensamento de Polanyi permite fazer entre ciências e humanidades. A causa é boa e aliás muito actual - este ano celebramos os 50 anos da famosa conferência sobre as duas culturas do cientista e escritor inglês C. P. Snow, com quem Polanyi teve divergências (também as teve com Popper).
O título “
Intuição por Portugal”, ao usar a palavra intuição no título, revela-se devedor das teses de Polanyi. Mas que intuição tem o nosso autor por Portugal? A intuição de que somos um país bloqueado e que o desbloqueamento pede uma mudança de atitudes. SF, depois de, no Cap. 1, fazer uma esclarecedora exposição sobre “
os invariantes da sociedade portuguesa” refere no Cap. 2 a falta de coesão social do país, apontando o dedo à centralização desmesurada na capital (um factor que não terá sido estranho ao encerramento do projecto de Viseu, tratado nos Caps. 3 a 5 e que se pode comprovar pelo desclocamento do centro demográfico em direcção a Sul e ao Oeste). Mas fala sobretudo de um problema de cultura, um conceito sempre difícil de definir mas sobre a qual todos temos um conhecimento que se poderá chamar “
tácito”. É evidente para o autor – e nisto estou obviamente de acordo com ele - que a ciência é parte e condição da cultura. Afirma – estou de novo de acordo com ele - que há um afastamento continuado do nosso país dos grande centros europeus de cultura e ciência.
O autor não faz essa afirmação à laia de conversa de café, mas, vestindo a bata branca de cientista, com base em estudos cuidados de bibliometria que tem efectuado e publicado nos últimos tempos. A análise de indicadores de ciência e tecnologia usando a técnica dos dendrogramas permite encontrar “
clusters” de países com afinidades (Caps. 6 e 7). E – esta é uma das conclusões mais interessantes do livro – Portugal aparece associado, nem sempre à Espanha, como seria normal pela geografia e história comuns, mas à Hungria e à República Checa, ambas situadas do outro lado da Europa. SF encontrou no historiador Oliveira Martins – cuja biblioteca se conserva na Biblioteca Geral, tendo sido há pouco editado o respectivo catálogo – fundamento para uma ligação entre Portugal e a Hungria, um fundamento que terá a ver com a proximidade entre cristãos e árabes: “
Por duas vezes a Espanha representou para a Europa o mesmo que no oriente mais tarde coube à Hungria: foi a atalaia avançada e como que baluarte da sociedade europeia contra as invasões sarracenas” ("História da Civilização Ibérica").Estaremos condenados à periferia da Europa, entre as civilizações ocidental e árabe? Aceitando a tese do autor sobre a nossa proximidade científico-cultural com a Hungria, queria deixar uma nota de optimismo. É que se, de facto, somos semelhantes à Hungria, não estaremos tão mal assim. Para isso basta pensar que este país tem uma forte tradição na ciência: entre as duas guerras mundiais foi um autêntico viveiro de cientistas. Um grupo de húngaros que nasceu e estudou em Budapeste foi até chamado de “marcianos”, pois não pareciam deste mundo: Eugene Wigner, um físico (originalmente engenheiro químico) que desenvolveu a teoria quântica e lançou as bases da engenharia de reactores nucleares, tendo alcançado o Nobel da Física; John von Neumann, um dos grandes responsáveis pela computação moderna e talvez o maior matemático do século XX; Edward Teller, um físico que explicou a origem da energia das estrelas e desenvolveu armas termonucleares, etc. Todos eles emigraram para os Estados Unidos, à semelhança de outros cientistas europeus confrontados com a ameaça nazi. Budapeste é ainda a terra de Dennis Gabor (inventor da holografia, o que lhe valeu o Nobel da Física), Andrew Grove (fundador da empresa de microprocessadores Intel), Leo Szilard (cientista que pediu a Einstein para escrever a Roosevelt alertando-a para a possibilidade da arma atómica), Albert
Szent-Györgyi (o médico que identificou a vitamina C, conseguindo assim o Nobel da Medicina), etc.
Como explicar esta autêntica proliferação de cientistas? Porque a Hungria, e em particular a sua capital, teve, no século XX, uma boa escola, uma escola que permitiu desenvolver as potencialidades dos alunos que a frequentaram. E a boa escola é, claro, feita pelos bons professores. Wigner escreveu a este propósito:
“Raramente deixo passar uma oportunidade de expressar a minha gratidão aos meus professores e ao Liceu Luterano de Budapeste. Nunca esquecerei os meus professores, entre os quais o meu professor de matemática László Rácz, um pedagogo autêntico e um homem muito cordial, que despertou em mim o amor pela matemática”(...) “Tenho orgulho em dizer que depois de dois anos de estudo da Física no liceu, os cursos de Física na Universidade Técnica de Budapeste e na Escola Técnica Superior de Berlim pareciam quase ser uma mera repetição.”O segredo dos “marcianos” de Budapeste reside, portanto, nos professores que tiveram. Nós, tal como eles, não somos nada sem os nossos professores. Termino agradecendo ao meu ex-professor a estimulante reflexão, bem documentada e concatenada, contida neste seu novo livro. Ao lê-lo impressionou-me sobretudo uma outra citação de Oliveira Martins, retirada do
“Portugal Contemporâneo”:“A nós, sucede-nos que além de nos faltar o carvão, matéria-prima industrial, nos faltam matérias primas incomparavelmente mais graves ainda: juízo, saber, educação adquirida, tradição ganha, firmeza de governo e inteligência no capital”.
Este “
Portugal Contemporâneo” de há mais de cem anos é, infelizmente, ainda o nosso Portugal contemporâneo. Que fazer? Pois, se a Hungria é nosso vizinho cultural, porque não inspirarmo-nos na escola desse país para fazer uma escola melhor aqui? SF sempre procurou assegurar uma boa escola. Bem haja!