Falaises près de Pourville, por Claude Monet (1840-1926) |
sexta-feira, 29 de maio de 2020
A HISTÓRIA ENSINOU-NOS QUE QUEM FAZ A LÍNGUA É QUEM A FALA E ESCREVE
"A universidade light" - 2
Jesús Gijón Maestro - professor de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da Faculdade de Filologia e Tradução da Universidade de Vigo -, partindo desse livro, faz uma reflexão sobre a universidade que é de teor algo diferente daquela que Francisco Esteban Bara faz, por escrito.
Complementam-se as reflexões, contribuindo para uma compreensão muito completa do estado e do funcionamento de uma instituição escolar que vemos perder identidade e diluir-se na confusão da pós-modernidade (ou da pós-pós-modernidade que é deste século).
Daisy Miller: o turismo popular e (sem nada que ver) as doenças ainda sem cura
“Daisy Miller” é a novela de Henry James (1943-1916) mais conhecida, a qual aponta para as diferenças entre americanos e europeus e para a igualdade das mulheres, numa altura em que esta quase não existia. Também pode ser vista assim, claro, mas não foi isso que mais me chamou a atenção. Foi, por um lado, a popularização do turismo e, por outro, as doenças que existiam e ainda não tinham cura.
Escrita em 1878, a novela refere como o narrador encontrou Daisy Miller, uma jovem americana normal e independente, de certa forma ingénua e sem malícia, com pais ausentes e um irmão mal-educado. Sem pensar nisso nem o desejar propriamente, Daisy causa escândalo. Alguns querem proteger a sua reputação enquanto outros evitam encontrá-la. Curiosamente, Henry James coloca-a como turista americana num hotel (Trois Couronnes) da mesma cidade de Julie ou a Nova Eloisa de Rousseau, Vevy, perto do lago Lemano, em Genebra, agora com muitos turistas americanos. Uns anos antes, Lord Byron alugou um casa, a Vila Diodati, a cerca de cem quilómetros, no mesmo lago. Nesta, esteve com Mary Shelly, Percy Shelley e John Polidori, sendo nesta escrito o “Franskestein” de Mary Shelly e o “Vampiro” de Jonh Polodori.
Havia turistas de todos os países, claro, mas não tantos como os americanos. Desde meados do século dezanove que o turismo americano era uma indústria em grande crescimento. Os nobres e intectuais ricos faziam o que ficou conhecido como o “grand tour,” como parte da sua formação, mas é com os americanos que a actividade de visitar se torna verdadeiramente popular. Por exemplo, Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), último presidente da primeira república, antes da ditadura de Oliveira Salazar, trabalhava alguns meses a gerir os negócios e depois viajava durante o resto do ano. Vamos encontrar reflexos dessas viagens nas pitorescas “Novelas Eróticas” onde conhece e foge na Holanda com uma jovem judia, encontra num barco uma jovem brasileira e, em Sevilha, onde encontra uma jovem cigana, entre outras. Sabemos que Teixeira Gomes viajava muito e que tinha até uma mala especial. Por outro lado, no “Moby Dick” vamos encontrar Ismael que nunca pagava para ver o mar e viajar. Vários autores vão escrever sobre as suas viagens. As viagens eram realizadas e comentadas, mas por um grupo restito. Vai ser com os americanos que a actividade de viajar se vai generalizar como indústria. Os mais cultos seguiam os percursos dos seus autores favoritos, enquanto os outros seguiam os primeiros ou compravam os programas das agências. Gerou-se assim um grande fluxo de turistas americanos conhecidos pelo menos até aos anos setenta como “camones”. É muito curioso tentar perceber esse fluxo popular do turismo que se vai estender a todos e agora com a covid-19 está algo parado. E vai haver uma reacção contra a massificação e popularidade desta actividade. Os intelectuais achavam que viajar por motivos “fúteis” era absurdo. Ralph Waldo Emerson (1803-1883), por exemplo, escreverá que "viajar é o paraíso dos tolos." Ele refere-se a encontrar a felicidade em locais longinquos mas a ideia é generalizávela outras actividades turisticas.
Na mesma altura passavam-se fomes periódicas na Europa. Ainda não tinham sido inventados os adubos sintéticos. Os alemães, suecos, irlandeses, italianos, judeus e polacos, entre outros, vendiam-se quase como escravos para viajarem até ao novo mundo. Os portugueses iam mais para o Brasil, mas alguns também foram para a América. Muitos não tiverem sucesso, quase todos mudaram de nome ou engrossaram os conhecidos bairros étnicos, alguns tiveram sucesso e muitos foram vítimas de xenofobia. É aliás curiosa a pergunta do irmão "se o narrador era mesmo americano." Mas não se julgue que na América tudo eram rosas. A alimentação era má e perigosa. Os medicamentos um risco sem controlo. Nos anos sessenta do século XX, as coisas já tinham melhorado muito para todos, com as férias pagas na Europa os turistas europeus poderão ultrapassar os americanos, Mesmo noutras coisas, como é sabido, a América ficou para trás.
A paisagem é bela. Temos o lago, as montanhas e a neve. Mas os mosquitos e as doenças espreitam. A tuberculose, a malária e outras infecções. Algumas pessoas procuram tratamentos, outras a beleza. O lago fica no sopé dos Alpes, onde se situa Davos, a cerca de 300 km, outro local mítico, onde uns anos mais tarde será escrita a “Montanha Mágica”. Chamonix fica a cerca de cem quilómetros. Tudo parece bem. Só que não.
Em Roma, Daisy Miller vai morrer rapidamente de malária (conhecida ali como febre italiana). Como referi, é triste, mas não era uma morte inesperada. As doenças eram muito comuns. O homem mais rico do mundo, um Rothschild, morreu nessa altura de uma infecção, por exemplo. Mais tarde vieram as guerras e a gripe pneumónica.
Na véspera da segunda guerra mundial ainda havia paludismo, ou, o que e sinónimo, malária, junto aos rios e lagos da Suíça, Itália, Espanha e Portugal. Eram as febres tercãs e as sezões. Foi o DDT que acabou em boa parte com o paludismo nestes paises. Podemos agora saber e dizer coisas que na altura não sabíamos, mas não deveremos esquecer as lições da história da ciência.
quinta-feira, 28 de maio de 2020
"A universidade light" - 1
Pode haver uma ou outra faculdade, um ou outro departamento, um ou outro instituto, uma ou outra disciplina (deveria dizer unidade curricular), um ou outro professor, que vai mantendo a resistência possível, a resistência possível até à desistência, que sabem ser certa.
Sim, sem esquecer a importância que o conhecimento tem nos diversos sectores da sociedade, incluindo o produtivo, mas distanciando-se de interesses restritos e poderosos que impõem o urgente, o pragmático e o utilitário como critérios absolutos de decisão, ao ponto de fazerem parecer o trabalho em certas áreas, sobretudo as humanidades e as artes, como opções inconsequentes, perturbadoras da ordem instalada, quando não indícios de insubordinação, a silenciar o mais depressa e eficazmente possível.
* Martínez, F.; Esteban, F. (2013). De qué comunidad hablamos cuando nos referimos a la universidad Apuntes en relación a la formación ética. Ibáñez-Martín, J.A. (Ed). Educación, Libertad y Cuidado (89-94). Madrid: Dykinson.
NOVO LIVRO DO RÓMULO EM ACESSO ABERTO DE JOSÉ TEIXEIRA DIAS
O autor presenteou o Rómulo - e portanto todos os amigos da Ciência - com o texto de um livro com todas essas palestras (incluindo não só o texto como figuras, referências, etc.).
O Rómulo, nesta altura que ainda é de algum confinamento, orgulha-se não só de fazer uma edição limitada em papel do livro, com o título "Química-Física Molecular : palestras no Rómulo", indo um exemplar enriquecer as suas estantes, mas também de o divulgar, em formato electrónico disponível AQUI.
O Rómulo agradece ao autor a atenção e a amabilidade. E, claro, decerto em nome de todos, a sua obra de divulgação da ciência. Boa leitura!
Carlos Fiolhais
NOVOS CLASSICA DIGITALIA
Os Classica Digitalia têm o gosto de anunciar 2 novas publicações com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os volumes dos Classica Digitalia são editados em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital, em Acesso Aberto.
Além do usual circuito de distribuição da IUC, a versão impressa das novas publicações encontra-se disponível nas lojas Amazon.
NOVIDADES EDITORIAIS
Série “Dramaturgia” [Edição de textos teatrais, com introdução e notas]
- Francisco Dias Gomes, Duas tragédias clássicas: ‘Ifigénia’ e ‘Electra’. Introdução e edição de texto de José Augusto Cardoso Bernardes, Maria de Fátima Sousa e Silva & Maria Fernanda Brasete (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2020). 198 p.
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1622-3
[A obra inclui um estudo introdutório sobre a receção de temas do teatro clássico na produção dos membros da Arcádia Lusitana, em geral, para situar a produção de Francisco Dias Gomes. Segue-se-lhe a edição de duas tragédias ‘Ifigénia’ e ‘Electra’, em ambos os casos acompanhada de um amplo estudo introdutório, cujo objetivo central é o de identificar a relação entre as produções oitocentistas e os seus modelos da Antiguidade grega.]
[Fora de Série - Estudos]
- Nair de Nazaré Castro Soares, Mostras de sentido no fluir do tempo: estudos de Humanismo e Renascimento (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2020). 539 p. 2ª ed. [1ª ed. 2018]
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1885-2
[O presente volume reúne um conjunto de artigos sobre Tradição Clássica, Humanismo e Renascimento, constituindo uma mostra do trabalho científico desenvolvido pela autora ao longo da sua atividade como investigadora e docente da Faculdade de Letras da Universidade Coimbra. Organizada no momento da sua jubilação, a obra divide-se em dois grandes temas – Teatro e História das Ideias.]
Votos de boas leituras.
UM FILÓSOFO COMBATIVO
Mas. antes dessa louvável “descoberta” da filosofia de Onésimo, JMB já tinha obra: tinha publicado o ensaio “O
pensamento insuportável de Émile Cioran. Um itinerário do desespero à lucidez”
(Campo das Letras, 2006), sobre as ideias do filósofo franco-romeno, a quem já
chamaram o “rei dos pessimistas” e “A importância da desconfiança” (Veja, 2010),
um livro que infelizmente me passou despercebido e que acabo de comprar para ficar com a
quase totalidade das obras do autor. Depois escreveu “O Negativo. A importância do conceito na
cultura e na história”, com prefácio de Manuel Curado (Theya, 2017), uma obra influenciada
pelos trabalhos de José Eduardo Franco sobre o negativo (um parênteses só para
dizer que a capa, com os Jerónimos invertidos, é um verdadeiro achado), e “O Mundo
às Avessas. O manicómio contemporâneo” (Opera Omnia, 2018), um ataque cerrado à
pós-modernidade, que eu já louvei num curto vídeo de recensão chamando a
atenção para alguns exemplos pitorescos. Logo os títulos de algumas secções dão
para perceber as intenções do autor: “Em todo o homem que come carne há um violador e um pedófilo”, “Os
direitos de autor dos macacos”, “A ecossexualidade e a salvação da Terra” e “O Pénis é uma construção social”. Ri-me
muito, apesar de se tratar de uma tragédia espalhada por aí.
JMB publicou agora, ou melhor há escassos meses, um
novo livro, “Os Democratas que destruíram a democracia” (Opera Omnia, 2019), para o qual gostaria de chamar a
atenção, uma vez que o acabo de ler. Não são muitas as recensões de livros
de filosofia entre nós e este é um pequeno contributo de um leitor leigo..
Quem é o autor? JMB, nascido
em Sines, é doutorado em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e
investigador no CLEPU – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, da Universidade de
Lisboa. Foi discípulo do Prof. Fernando Gil, um filósofo sábio e rigoroso de quem
todos temos saudades.
JMB continua no seu
mais recente volume o combate do livro anterior contra um rol
de ideias pós-modernas, que se têm disseminado perigosamente, a ponto de nalguns
sítios se terem tornado pensamento único. Devo dizer que concordo na
maioria das vezes com as objecções que JMB levanta ao pensamento dominante e à
sua estapafúrdia linguagem. Concordo absolutamente quando ele diz que “a crença
de que tudo é possível e nada é verdadeiro, praticada pelos progressistas, é o
que nos resta quando já não acreditamos em mais nada.” (p. 9) O relativismo, isto é. a igualização por baixo de tudo, cultivado por esses soi disant “progressistas”, é a negação da pensamento cientifico:
não está tudo certo porque a ciência procura e descarta os erros, distinguindo
afirmações certas de afirmações erradas: Einstein emendou Newton, mantendo uma parte. E mesmo fora da ciência não são a mesma
coisa Shakespeare, que já cá está há três séculos, ou um escriba qualquer que
chegou agora ao mundo.
Apresento, para abrir a recensão, três excertos do livro, para o leitor perceber melhor do que trata. O primeiro é:
“O civilizado descobriu que a cultura ocidental
afinal era obsoleta e má, racista, machista, sexista, homofóbica, patriarcal,
heteronormativa e egofalocêntrica”. (… ) Descobrimos o fim da história, o fim
do homem, o fim da metafísica, que a ciência é ideologia, que não há verdade,
nem objetividade, nem realidade, que tudo é cultural, político e construção social”
(respeito o novo acordo ortográfico que ele usa, apesar de não o seguir) (p. 10).
O segundo:
“E este é o tempo do estatuto superior da opinião.
Aboliu-se o legado da religião, dos grande romances, dos tratados filosóficos,
dos intelectuais verdadeiros e temos o predomínio da opinião. Não é a opinião
de A ou B, mas a opinião que circula como conhecimento e esta é a substância da
ideologia progressista” (p. 77).
E o terceiro:
“A lengalenga do novo
mundo neoprogressivo diz-nos que não há verdade, mas apenas verdadezinhas,
tonalidades que refletem o que funciona, como pregam os neopragmáticos” (p.
171).
O leitor estará já a
perceber que JMB está a falar daquelas pessoas que vêem racismo e machismo em todo o lado, dos que trocam um facto comprovado por qualquer
opinião, dos que querem mandar a verdade
para o caixote do lixo, ao inventarem o conceito de "pós-verdade". Entre eles estão aqueles que querem
reescrever a história, por esta ter sido escrita por “homens brancos de meia
idade”. Em Portugal, incluem-se nesse grupo os que querem derrubar a estátua do
Padre António Vieira em Lisboa, poe ele ter sido esclavagista, ou que recusam um Museu das Descobertas por
acharem as descobertas uma violência.
JBM usa uma linguagem propositadamente forte para designar o mundo em que vivemos, onde certas vozes imperam, sendo tremendamente
amplificadas pelos mediam em particular pela Internet:
“Transformámos o mundo
numa fusão indistinta de casino, manicómio e supermercado. Nada de novo. Todos os
tempos têm os seus delírios e os seus prosélitos. A novidade reside na
capacidade tecnológica e científica inédita que transformou totalmente o nosso
modo de vida” (p. 10-11).
É uma imagem que eu não
usaria, mas que o autor tem todo o direito a usar. Insiste na imagem do manicómio, que
será, segundo ele, governado pelos próprios doentes: “A pós-modernidade é, em
muitos dos seus aspectos propagandeados, a visão de um conjunto de loucos sem profundidade
que exaltam as suas taras particulares. Novos radicalismos e fundamentalismos
com os seus messianismos e escatologias laicas bloqueiam totalmente a lucidez,
a razão e a sensatez” (p. 18).
JMB invoca, para se sustentar,
em Cioran, que ele bem conhece, e cujo “Breviário
da Decomposição” cita: “Escrevia Cioran que
lhe bastava ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, ouvi-lo dizer
´nós‘ com um tom de segurança, invocar os ‘outros’ e sentir-se seu intérprete,
para que o considerasse não só um perigo como um inimigo. É essa a matéria de
que são feitos os carrascos e os tiranos, que dividem a humanidade entre os puros
e os ímpios” (p. 23).
JMB arrasa o filósofo
norte-americano Richard Rorty, o qual, segundo ele, foi caminhando de filósofo
analítico para pensador pós-modernismo, por lhe terem estendido uma “passadeira
vermelha”: “transformou-se num culturalista relativista ignorante e cínico. Como
todos o são.” (p. 29) JMB tem, como se vê, um estilo
declaradamente provocador. Encontrei-me várias
vezes a concordar com o que ele diz, mas não com a maneira como ele o diz.
Não sei, por exemplo, se todos os relativistas são cínicos, quero acreditar que
alguns sejam ingénuos.
E também se mete com o
filósofo francês Bruno Latour, popular nos círculos pós-modernos, no meu entender muito a propósito. Quando historiadores chegaram
à conclusão de que o faraó Ramsés II, no Antigo Egipto, tinha morrido de tuberculose, Latour ripostou, uma vez que o bacilo da tuberculose (uma bactéria) só foi descoberto pelo alemão Robert Koch em 1882.
Antes dessa descoberta, não poderia existir a bactéria, porque a bactéria seria um conceito… Chama-se a este pensamento “construtivismo”. As coisas não existem, são inventadas.
Não há nenhuma realidade, mas sim e apenas construções mentais e sociais.
Os maniqueístas que
dividem o mundo entre esquerda e direita não deixarão de notar que JMB cita,
por vezes em tom simpático, pensadores conotados
com a direita como John Gray (um filósofo político inglês que eu gosto de ler,
apesar de não concordar com o seu ultra-pessimismo: ele tenta ultrapassar Cioran!),
Roger Scruton (um filósofo conservador inglês, falecido no início deste ano) e Jordan
Peterson (um psicólogo guru norte-americano, que ainda não li). Esses, tal outros
autores (alguns deles conotados com outras bandas do espectro político), têm, mesmo que nao se concorde com o que eles dizem, o
grande mérito de nos fazerem pensar.
Falo por mim: mesmo quando tenho alguma convicção, gosto de ouvir os argumentos
dos que têm convicções opostas.
De resto, a divisão
entre direita e esquerda é hoje questionável. Um eleitor pode ter algumas ideias
geralmente atribuídas à direita e outras geralmente atribuídas à esquerda. Concordo sem hesitação com JBM, quando ele diz : “É bom lembrar que as grandes questões do
século XXI não são entre a esquerda e a direita, o centro e os extremos, os
democratas e os fascistas, mas entre lucidez, razoabilidade e sensatez e ignorância ou mesmo
imbecilidade disfarçada de ilustração, irracionalidade e emotividade” (p. 47). A referida divisão não passa, muitas vezes, uma arma de arremesso. Cola-se um rótulo em vez de discutir seja o que seja.
O problema, por exemplo, com Trump e Bolsonaro não é serem de direita – ou “fascistas”, como alguns afirmam, esquecendo que essa categoria política surgiu num certo contexto histórico e que hoje é anacrónica, mas sim serem grandes ignorantes, fazendo contínuo e grande alarde da sua ignorância. Basta olhar para a sua atitude perante a epidemia que estamos a viver: os seus países estão no topo da lista das vítimas graças em boa parte devido à desvalorização que eles fizeram do vírus.
JMB desmonta o modo
como a linguagem do “politicamente correcto” é usado para o exercício do controlo
mental: “A novilíngua progressista é o novo idioma oficial” (p. 47). Ilustrando
este controlo o autor conta logo no início uma anedota verdadeira passada com
ele enquanto escrevia o livro. O corrector ortográfico da Microsoft emendou onde
ele tinha escrito “pessoas normais e comuns”, avisando que devia ser inclusivo,
isto é, pretendia que escrevesse “pessoas normais e anormais, comuns e não
comuns”. Mas por que raio o corrector da novilíngua quer coagir o autor e não referir “pessoas normais e comuns”? Será
ofensivo para alguém usar esses termos?
Uma das tácticas dos soi-disant
progressistas é a vitimização. O apoio à vítima está na moda, mesmo quando não há vítima. Escreve JMB: “Ser vítima é ser civilizado. É criminoso ou
suspeito quem não é vítima de qualquer opressão, presente ou passada. A leitura
caricatural da dialética do senhor e do escravo é a única chave para a compreensão
da história e vai repetindo diversos protagonistas em variáveis infinitas. Os
alunos são vítimas dos professores, as crianças dos adultos, os negros e os ciganos
dos brancos, os homos dos héteros, os democratas dos fascistas, os ateus dos crentes,
os vegans dos animalistas, etc.” (p. 178)
Mas JMB vai mais longe,
ao afirmar que as políticas identitárias, em geral ligadas a vitimização, estão
a destruir a democracia. Numa nota da p. 66 refere a existência de pós-graduações
em gestão só para gays na Universidade de Yale. Curiosamente o corrector deixou
passar uma gralha na palavra “universidade”; talvez o autor o tenha simplesmente
desligado. Gralhas como esta servem para mostrar que o autor é humano: o texto
não foi escrito por nenhum robô. Encontrei outra, mais adiante, no nome de Lysenko, o charlatão soviético cuja cegueira ideológica fez morrer à fome os seus compatriotas.
Lembrando as distopias
de Aldous Huxley, George Orwell e Michel Houellenbecq, JMB fala da opressão que
o pensamento dominante procura exercer através da linguagem, usando uma metáfora
que nos tempos de hoje se torna muito clara: “A ditadura do pensamento pós-moderno progressista
existe. É gente boa, culta, inteligente, reproduz uma mundividência e as suas
pragas como doentes contaminados por uma peste da qual não conseguem fugir” (p. 52).
Num mundo tolhido pela
ideologia e controlado pela linguagem, a democracia encontra-se, portanto, em risco. Segundo
o autor, que gosta de expressões retumbantes, ela foi “traída” (p. 78). Como anuncia o título do livro: “Sabemos que aquilo a que chamamos
democracia nos sistemas políticos ocidentais, e considerando a melhor aceção do
conceito, já pouco tem de democracia,
pois vivemos num simulacro perfeito desse ideal” (p. 99). E a “traição” foi
perpetrada pelos democratas, ou melhor pelos soi-disant “democratas”. Como
o autor lembra noutro passo, Sócrates, o filósofo grego, foi condenado à morte
pelos democratas. E, entre nós, houve outro Sócrates que ainda não foi condenado,
ou só o foi de um modo muito leve, por muitos democratas no poder.
Mas qual é a solução
para recompor um “mundo às avessas”? JMB indica-a. O que precisamos, agora e sempre?
Pensamento claro, pensamento livre. Este é o pensamento que, há séculos, foi reclamado pelo
holandês Bento Espinosa, invocado logo no início do livro (e também na contracapa). Disse Espinosa: “Num Estado Livre,
todos os homens podem pensar o que querem e dizer o que eu pensam” Não podemos
ter medo de pensar. Pensar não é “fascista”.
No parágrafo final encontra-se uma das mais fortes metáforas do livro, que o leitor pode sentir como um verdadeiro “murro no
estômago”: segundo JMB, tal como foi desmembrado um jornalista saudita num
consulado da Arábia Saudita em Istambul,
na Turquia, em 2018, “também a nossa
cultura vai sendo silenciada e desmembrada por uma estranha forma de democracia”
(p. 189).
João Maurício Brás é um
homem livre e tiro-lhe o chapéu por isso. Não há muitos homens livres por aí. Pensa
o que diz e diz o que pensa. Resiste a uma vaga que engoliu muita gente. Pois faz
muito bem e oxalá o continue a fazer.
quarta-feira, 27 de maio de 2020
MEU PREFÁCIO A "NEUROMITOS" DE ALEXANDRE CASTRO CALDAS E JOANA RATO
NEUROMITOS O CONFRONTO DA INTUIÇÃO COM A REALIDADE
(prefácio a "Neuromitos. Ou o que realmente sabemos sobre como funciona o nosso cérebro", que acaba de sair na Contraponto)
Vivemos num tempo de proliferação acelerada da informação, usando meios que a ciência e a tecnologia colocaram à disposição de todos: já havia a imprensa, a rádio, a televisão, e agora há também os computadores e a Internet, todos eles servidos por meios de comunicação extremamente rápida, que podem ser os cabos ópticos que atravessam os oceanos ou o próprio espaço vazio, quando se usam frequências de microondas e de rádio. O mundo é hoje uma aldeia global.
Tudo isto poderia ser uma possibilidade fantástica de enriquecimento da humanidade, diminuindo até as gritantes desigualdades entre povos e países não se desse o facto de que muita informação que circula não tem fundamento ou suficiente fundamento. Eu diria que é a maior parte. Vivemos na época das notícias falsas (fake news), que por serem falsas nem sequer deviam merecer o nome de notícias, e da “verdade alternativa” (alternative truth),” um termo enganador pois a verdade não tem qualquer alternativa. Há quem diga que vivemos num tempo de pós-verdade (post-truth), um mundo tão estranho quanto perigoso em que a distinção entre a verdade e a mentira já não interessa. Não interessa, em particular, a alguns dirigentes políticos.
Sempre houve informação errada a circular, usando meios técnicos primitivos. Muitas vezes o erro devia-se a ignorância, como, por exemplo, no domínio das neurociências, pensar que a gaguez se deve a um susto. Mas o fenómeno comunicativo actualmente mais relevante, para além da escala enorme a que se dá a difusão informativa, é o facto de qualquer pessoa poder emitir qualquer tipo de mensagens. Qualquer um de nós diz o que quer para quem o queira ouvir, aqui ou noutro sítio, agora ou mais logo. Como bem mostram as redes sociais, que rapidamente ganharam um vulto inesperado, os intermediários deixaram de ser precisos.
Acresce o facto – e os neurocientistas sabem bem isso – de o nosso cérebro ter uma avidez para o que é, ou parece ser, singular e maravilhoso, ou mesmo simplesmente curioso e engraçado. Uma coisa mirabolante tem muito mais procura do que uma coisa normal: neste livro os autores comparam o número de aparições na Internet do termo “unicórnio” – que designa um animal mitológico - e ornitorrinco – um animal estranho mas real: acontece que a primeira é cerca de 20 vezes maior. Se alguém experimentar colocar uma notícia falsa – sei lá, que Madona teve um filho de um extraterrestre, o que é evidentemente falso, por não existirem extraterrestres – é fácil verificar que essa notícia se propaga mais rapidamente do que outra qualquer que seja verdadeira – como, por exemplo, que Madona teve um filho que marcou dois golos num jogo pelo Benfica, o que, por estranho que possa parecer, é absolutamente verdadeira. O algoritmo do Google ao colocar mais acima no ecrã e, portanto, mais apetecíveis ao olho sítios mais procurados favorece a difusão de erros.
Como o uso da Internet ilustra, se é certo que o nosso cérebro é um instrumento de racionalidade, não é menos certo que ele é capaz das maiores irracionalidades. Procuramos padrões reconhecíveis onde eles não estão. Como disse o filósofo escocês David Hume, vemos “caras na Lua e exércitos nas nuvens”. Construímos e divulgamos histórias e acreditamos sem discutir em histórias que nos são contadas. Desenvolvemos e interiorizamos mitos, histórias fabulosas, por vezes com requintes de magia. Os seres humanos têm uma clara propensão para a superstição e a magia.
A ciência é o mais bem sucedido empreendimento do cérebro humano, pois nos tem permitido desde a Revolução Científica, nos séculos XVI e XVII, viver mais e melhor. A ciência é bem mais do que um corpo de conhecimentos, pois este está em constante mutação. É um método, que é uma fonte constante de conhecimentos. Funda-se na observação, na experimentação e no raciocínio lógico. É validado através da revisão pelos pares, isto é, a vigilância activa da comunidade científica. O método permite ir para além das aparências, do senso comum. Permite superar mitos. Permite ir para além da superstição e da magia.
No livro que o leitor tem entre mãos – cujo título Neuromitos é um curioso neologismo que o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa não contempla, mas que já se encontra profusamente na Internet - Joana Rato e Alexandre Castro Caldas, respectivamente psicóloga educativa e professor de Neurologia na Universidade Católica Portuguesa que já tinham sido coautores de um livro com outro título curioso, Quando o cérebro do seu filho vai à escola (Verso de Capa, 2017), procuram desmontar algumas informações falsas sobre o cérebro humano que por aí circulam. A obra, escrita com a mestria de quem domina os assuntos e de quem tem notável habilidade para os comunicar, lê-se muito bem, podendo ser útil a todas as pessoas curiosas a respeito do funcionamento do nosso cérebro. Desnecessário será lembrar que, embora nem sempre o usemos bem, todos temos um. Nas últimas décadas, avanços extraordinários das Neurociências – uma área de ponta da ciência contemporânea, pois o cérebro é uma das “últimas fronteiras” – foi possível validar um corpo de conhecimentos que desmente muitas ideias feitas que grassam socialmente, que são em muitos casos histórias inventadas, que com propriedade podem ser chamadas “mitos” (o referido Dicionário dá como um dos significados de mito “formulação do espírito sem fundamento; o que apenas existe na imaginação = ficção, utopia”).
O nosso cérebro engana-se a respeito de várias coisas e também a respeito dele próprio. Há erros famosos da história da ciência, que são absolutamente normais dados os recursos limitados de épocas recuadas– como os de Aristóteles, René Descartes, Leonardo da Vinci e Franz Joseph Gall – e há outros com origem mais recente, que ganharam rapidamente raízes populares - por exemplo, o “efeito Mozart”, segundo o qual a inteligência de um bebé melhora quando ele ouve música do famoso compositor austríaco. A credibilidade deste mito foi tal que um governador do estado americano da Geórgia propôs que se oferecesse um disco de música clássica a todas as grávidas georgianas. A proposta não passou no crivo do orçamento estadual que é feito pelo congresso local, mas o governador obrigou os legisladores ouvir uma peça de música, perguntando-lhes se não se sentiam mais inteligentes após aa audição… Este caso mostra como a demagogia e a retórica política podem invocar a ciência para enganar os cidadãos. Os políticos não perdem a ocasião para obter ganhos de popularidade.
Se há mitos velhos e relhos sobre o funcionamento do cérebro como aquele que diz que “usamos apenas 10% do nosso cérebro” ou que o “canhotismo é um defeito”, não valendo a pena gastar muita tinta com eles, há outros mais sofisticados, por lhes ter sido atribuída uma densa fundamentação científica- como aquele a que os autores dedicam todo um capítulo – a tese do psicólogo cognitivo norte-americano Howard Gardner, autor entre outras obras de A Nova Ciência da Mente (Relógio d´Água, 2002), segundo a qual existem dez tipos de inteligência humana, que vão da inteligência linguística à inteligência existencial, seja lá o que isto for, passando pela inteligência lógico-matemática e pela inteligência espiritual, que também deve ser de difícil definição. Os dois autores nacionais discutem no livro que o autor tem entre mãos essa tese das inteligências múltiplas, que é transmitida em muitas das nossas escolas superiores e, pior do que isso, tem servido de base à formação de professores e a reformas educativas. De facto,revisões críticas recentes fundadas nas neurociências não têm dado a razão a Gardner, pelo que a sua teoria é considerada em círculos cada vez maiores uma “pseudo-ciência”, quer dizer, uma teoria que tem todo o aspecto de ser científica, mas que não resiste a testes empíricos bem conduzidos. No entanto, o autor norte-americano, laureado internacionalmente em diversas ocasiões, não reconhece os erros que lhe apontam, conforme assinalam Joana Rato me Alexandre Castro Caldas. Reclama, em particular, que uma coisa são as suas ideias e outra é a sua aplicação na Pedagogia. Quem procurar por “inteligências múltiplas” na Internet, encontra na Wikipedia um resumo dessas críticas, nas várias línguas ocidentais, mas não na entrada em língua portuguesa. Na minha opinião, a pedagogia e a política de educação em Portugal – e também no Brasil - teriam muito a ganhar se passassem a basear-se em provas científicas mais sólidas, designadamente nos contributos das modernas neurociências. Recomenda-se este livro a todos os detentores de cérebros, não só pela apresentação resumida e clara do exemplo da teoria das inteligências múltiplas de Gardner, mas também por outras relativas a muitos outros exemplos (como “jogos violentos não têm efeito sobre o comportamento”, “as pessoas podem aprender enquanto dormem”, ou “os tumores cerebrais são consequência do uso excessivo do telemóvel”). Recomendo, em particular, este livro a professores e, mais em geral, a educadores, que são todos os pais e encarregados de educação. E, já agora, embora sejam menos, a políticos, a ver se aprendem alguma coisa, passando a acreditar mais na ciência do que em mitos. É um livro de cultura científica – o único antídoto contra a ignorância e a mitologia - para todos.
Carlos Fiolhais
Professor de Física da Universidade de Coimbra e divulgador científico
QUE TESTES EXISTEM PARA O NOVO CORONAVÍRUS SARS-COV-2?
(Artigo primeiramente publicado na imprensa regional de todo o pais.)
terça-feira, 26 de maio de 2020
O COSMOS DE ANN DRUYAN
Saiu há dias em português, quase ao mesmo tempo que a edição original, o livro “Cosmos. Mundos possíveis”, de Ann Druyan (National Geographic e Gradiva, 2020), numa altura em que está a passar a série televisiva, com 13 episódios, com o mesmo título no National Geographic Channel. Druyan, viúva de Carl Sagan, tinha ajudado a escrever a série “Cosmos” original, transmitida na PBS – Public Braoadcasting Service também com 13 episódios, que teve no original o subtítulo “Uma viagem pessoal.” Também escreveu e produziu a sequela, “Cosmos. Uma Odisseia no Espaço-Tempo”, ainda com 13 episódios, em 2014 (34 anos depois da primeira série e 18 anos após a morte de Sagan!), que passou na Fox e na National Geographic, apresentada por Neil deGrasse Tyson, o director do Planetário Hayden no Museu de História Natural de Nova Iorque, que conheceu Sagan em adolescente. Não houve livro dessa vez. Na segunda sequela (40 anos depois da primeira série e 24 anos após a morte de Sagan!) “Cosmos. Mundos Possíveis” volta a ser apresentado por DeGrasse Tyson, mas, tal como no “Cosmos” original, há um livro que acompanha a série. E o livro é, todo ele, de Ann.
Os capítulos do livro de Ann incluem novidades científicas que não estão porque não podiam estar no “Cosmos” original: por exemplo, a preocupação com as alterações climáticas, a descoberta das ondas gravitacionais originadas pela espectacular junção de dois buracos negros, os exoplanetas, alguns dos quais poderão albergar vida, os progressos das neurociências (no capítulo V, sobre o cérebro, aparece a história clínica do filho Sam; o médico colombiano que o tratou quando se apercebeu de quem era filho disse-lhe que tinha seguido uma carreira científica por causa do pai, um dos seus heróis de juventude!), etc. Não devo roubar o prazer da novidade na leitura. As histórias são atraentes, assim como as grandes metáforas, como a da comparação das navegações de povos primitivos no oceano Pacífico, fixando-se em ilhas longínquas, com as futuras viagens interestelares com que Ann sonha.
O Desporto Escolar Numa Perspectiva Histórica, Jurídica e Política
segunda-feira, 25 de maio de 2020
In Memoriam José Cutileiro (1934-2020)
“Em todos os países que tiveram a Reforma, que foram luteranos ou calvinistas, uma pessoa não se pode gabar de perjurar num tribunal. O tipo gabava-se disto num desses sítios e levava um pontapé no cu e ia para a rua. E talvez o pudessem denunciar. E esta espécie de indiferença pela verdade e a mentira em relação ao Estado é uma grande falha nacional. E isto continua a ser assim.”
Na nota "Vergonha na cara" de 10 de Agosto de 2016, que não está no livro, mas está na Internet, escreve: "O país mais parecido com Portugal depois do 25 de Abril é o Portugal antes do 25 de Abril".
O corpo e a mente
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