Manifesto que assinei:
A era da globalização oferece possibilidades extraordinárias de criar uma humanidade assente
na construção de uma cidadania alargada, tendo como horizonte uma vivência plena dos Direitos
Humanos, na qual o respeito pela diferença e pela pluralidade das expressões linguísticas, culturais,
sociais, políticas e religiosas seja uma pedra angular. O nosso tempo, ajudado pelos progressos
partilhados do conhecimento, é em muitos aspetos auspicioso, mas é também marcado por sérias
ameaças, designadamente por correntes hegemónicas que impõem e uniformizam, à
escala global, os modos de pensar, falar, estar, crer e fazer. Todavia, a riqueza da humanidade emana
da sua diversidade, sendo as diversas línguas que constituem o património o garante do futuro da
espécie humana em que a variedade de expressões dos povos e culturas seja valorizada.
Considerando o espaço linguístico da língua portuguesa, que se afirmou e se consolidou nos
últimos 500 anos como uma das línguas globais (é a sexta língua mais falada do mundo e a mais falada
no hemisfério Sul), com o contributo de materiais lexicais provenientes das várias línguas do mundo
com que interagiu, a valorização da diversidade linguística global passa pela defesa da língua
portuguesa, não apenas como língua de culturas e de pensamento, mas também como língua de
ciência. Porque o português sempre foi uma língua de conhecimento, podendo ser nela expresso todo
o pensamento e criações humanas. Além disso, assinala-se a importância do português como língua
de solidariedade e de resistência.
A valorização da língua portuguesa, ao lado das outras línguas, é hoje uma necessidade que se
deve opor à uniformização de todas as dimensões da existência humana imposta pela hegemonia da
língua inglesa, uma dominação que cada vez mais se afirma em âmbito global. Para além da questão
histórico-cultural e dos aspetos nacionais, está em foco a salvaguarda da diversidade das expressões
do ser humano por meio das suas línguas. Com efeito, a subalternização científica de uma língua
significa igual subalternização de povos, culturas e identidades que nela se exprimem e comunicam.
Pensar e publicar ciência em várias línguas enriquece a complexidade das expressões humanas, sendo
a generalização do monolinguismo um empobrecimento simplificador. Paralelamente, propomos um
maior investimento e valorização das traduções como meio de diálogo, conhecimento e aproximação
entre os povos e culturas, permitindo o reconhecimento da sua diversidade. É no cruzamento de
culturas que é mais fértil a criatividade humana.
Assim, vimos apelar às entidades competentes das sociedades e estados usuários da língua
portuguesa nos vários continentes que tomem medidas políticas de salvaguarda e de promoção da
língua portuguesa como língua de culturas e de pensamento e, sobretudo, como língua produtora de
conhecimento.
Para o efeito, e para alcançar este desiderato, propomos as seguintes linhas de ação:
- Promover uma política de ciência em língua portuguesa, nomeadamente por meio da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), em Portugal, do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), no Brasil, e de outras agências semelhantes, que, de forma adequada, valorize, nas prioridades
e na avaliação de centros de estudo e de projetos de investigação, o financiamento da produção
científica de qualidade em língua portuguesa, seja de revistas, artigos, livros, atas de conferências e
congressos, seja pela incorporação dessas publicações nos catálogos internacionais.
- Reconhecer e valorizar, por meio dos segmentos académico-científicos, a divulgação da
produção técnico-científca veiculada em português e produzida por investigadores lusófonos.
-
Validar, como indicador de internacionalização no meio acadêmico, a produção conjunta de trabalhos científcos desenvolvida por pesquisadores dos espaços lusófonos e de suas diásporas.
- Fortalecer o plurilinguismo e o pluricentrismo do português, legitimando e visibilizando
produções culturais e científcas desenvolvidas e disseminadas em cada variedade do português.
- Promover políticas de divulgação de produtos culturais, designadamente artísticos,
comunicados em língua portuguesa, em sua diversidade.
- Fomentar o financiamento reforçado para a tradução e publicação de obras de autores
clássicos e contemporâneos, escritas de raiz em língua portuguesa, além da produção científica de
relevo, desenvolvida em português. Em particular, devem ser procuradas formas de usar as mais
recentes ferramentas de tradução, com o devido acompanhamento e supervisão humanas, para
disponibilizar cada vez mais no espaço comum, dominado pelo inglês, o património científico e cultural
expresso em língua portuguesa.
- Garantir e intensificar a digitalização reforçada de documentos escritos e outros da cultura,
produzidos em língua portuguesa, que estejam no domínio público, num esforço conjunto das
Bibliotecas Nacionais dos vários países da CPLP, com outras bibliotecas, reforçando assim a presença
da língua portuguesa no ciberespaço. Em particular, fortalecer a disponibilização digital de livros de
culura de expressão em português, que constituam o património de diversos povos que dessa língua
se valem, quer obras originais de criação literária e artística, quer obras de estudo sobre elas.
- Desenvolver a Wikipédia em língua portuguesa, designadamente no que respeita a a figuras
da cultura e da ciência dos países de língua oficial portuguesa.
- Suscitar a criação coletiva de um dicionário técnico-científíco em português na Internet, que
se constitua como referência para a normalização dessa modalidade de linguagem em português.
- Favorecer a Lusofonia, por meio de organismos como o Instituto Camões (Portugal), o Instituto
Guimarães Rosa (Brasil), a Fundação Oriente, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa e de entidades como a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), assim como universidades,
instituições como o Museu Virtual da Lusofonia e o Museu da Língua Portuguesa, incluindo realidades
em que o português seja língua de ensino (português como língua de herança e o português como
língua adicional).
Nota: Este manifesto surgiu numa conversa entre pesquisadores e docentes universitários no âmbito do Fólio Educa 2022,
na cidade de Óbidos, Portugal. Eram eles: Luísa Paolinelli, José Eduardo Franco e Regina Brito. Rapidamente, o debate
acerca da necessidade e relevância deste documento, que destaca o papel e o valor do português também como língua
de ciência, tomou novos entusiastas, como Carlos Fiolhais, Moisés Martins e Paulo Santos, resultando no que agora
apresentamos à comunidade em geral