sexta-feira, 1 de setembro de 2023

ANTES ONTEM QUE AMANHÃ

Um dos livros de poesia que li recentemente foi antes ontem que amanhã, de Mónica Vieira-Auer, publicado pela Imprensa Nacional na sua colecção “Comunidades Portuguesas”, que se destina a divulgar criações literárias e ensaios de portugueses espalhados pelo mundo, dando visibilidade acrescida à nossa diáspora (alguns desses livros estão disponibilizados livremente em PDF na página Web da Imprensa Nacional). A colecção tem incluído obras premiadas com o prémio Ferreira de Castro, instituído pela Imprensa Nacional e pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros para distinguir trabalhos de autores nacionais emigrados. 

Mónica-Vieira-Auer, nascida nas imediações de Espinho, mas emigrada há muito na Alemanha, mais precisamente na Baviera, foi justamente premiada na segunda edição desse prémio, em 2020, com este seu primeiro livro de poemas, que começou por se intitular A Parte pelo Todo e que saiu em 2021 com o novo título.

Nunca é tarde para se começar como poeta. António Gedeão, pseudónimo do professor de Físico-Química Rómulo de Carvalho, só se estreou aos 50 anos, em 1956, com Movimento Perpétuo, que teve a continuação e o êxito que se conhecem (o seu ex-aluno Jorge de Sena deu uma ajuda com o seu notável prefácio de Poemas Completos).

Sei que a nova poeta, se formou em Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses e Alemães na Universidade do Porto e que emigrou nos anos de 1990 para a Alemanha, onde hoje ensina Português como língua estrangeira na Universidade Friedrich-Alexander de Erlangen-Nuremberga. Erlangen é, para mim, a terra do físico George Ohm, cujo nome é uma unidade de resistência eléctrica, e da matemática Emmy Noether, uma mente brilhante no tempo em que as mulheres eram ignoradas, ao passo que Nuremberga, que evoca para todos os julgamentos dos nazis, é, para mim, a terra de Albrecht Dürer, o pintor do nosso rinoceronte, e do geógrafo e cosmógrafo Martin Behaim, ou Martinho da Boémia, que navegou com os portugueses e viveu nos Açores. Nuremberga é também a terra onde veio a lume em 1543 uma das mais famosas obras de ciência de sempre, a Revolução dos Orbes Celestes, de Nicolau Copérnico.

Vieira-Auer escreve na sua língua-mãe longe da pátria. Os seus poemas são em número de 28, que corresponde ao número de anos que ela já leva de vida no estrangeiro. A primeira parte, sem título, tem a ver com a suas vivências pessoais e do mundo (incluindo a continuada crise dos refugiados na Europa e o grande incêndio de Pedrógão Grande) e a segunda parte, intitulada “Biografias De Mulheres Que Não Existem”, é uma homenagem às mulheres sofredoras de todo o mundo (elas existem!). 

Escreve, no poema “ir e não vir”: “respiro um certo estrangeirismo/ que há dentro de mim”.  Quando se está tanto tempo fora não se pode deixar de respirar estrangeirismo. Também eu vivi durante quase quatro anos na Alemanha, não no estado da Baviera mas no do Hessen, em Frankfurt em Main, a terra do escritor Johann Wolfgang von Goethe, o autor de Fausto, e do químico Otto Hahn, o descobridor da cisão nuclear, pelo que também respirei e respiro um certo estrangeirismo. Quando aprendi alemão, pude entrar na extraordinária cultura germânica, que primeiro estranhei e depois entranhei. 

No livro premiado, reparei nas várias referências à cultura alemã. Logo o título me evocou o livro do poeta e satirista berlinense Kurt Tucholski: Hoje entre Ontem e o Amanhã. Na primeira parte, o Homem sem Qualidades do austríaco Robert Musil é referido no poema “antes ontem que amanhã” que dá o título à colectânea poética em apreço; e o poema “quase-distopia” abre com o mote “Antigamente o futuro era melhor” do comediante de Munique Karl Valentin. A segunda parte, na qual a autora assume uma voz declaradamente feminista, abre com a inovação do poeta e ensaísta de Dortmund Peter Ruehmkorf: “Sê comovível e resiste”. Todas estas expressões têm uma outra sonoridade na língua de Goethe. O som é parte da cultura.

O livro abre, porém, com uma citação da portuguesa Florbela Espanca: “Deixa dizer-te os lindos versos raros/ Que a minha boca tem para te dizer!/ São talhados em mármore de Paros/ Cinzelados por mim pra te oferecer”. Já conhecia esta quadra do poema “Os versos que te fiz” da autora de Vila Viçosa que estranhei da primeira vez que a li, porque o mármore da terra dela não fica atrás do mármore grego de Paros, o qual serviu para moldar a Vénus de Milo e a Vitória de Samotrácia. Só percebo “Paros” por “Viçosa” não rimar com “raros”. Mas os “versos raros,” a “minha boca” e o “por mim” denotam a singularidade da poeta alentejana. Espanca foi, no seu tempo, uma voz original, e o mesmo acontece, agora, com Vieira-Auer.

Como um escultor, a poeta vai à pedra bruta da língua portuguesa e tira o que está a mais para nos deixar com um conjunto de palavras que estavam lá, anónimas na montanha lexical, mas que agora ficam numa relação umas com as outras que suscita sentidos nos leitores que não se podem expressar de outro modo.  Como disse o matemático e crítico literário britânico Jacob Bronowski: "A poesia é um tema maravilhoso que deveríamos considerar sempre que falamos de ideias científicas, porque nos relembra que se pode comunicar uma verdade de indubi­tável valor intelectual sem necessidade de ser complementada por qualquer sistema de equações." Não sendo eu versado em arte poética, parece-me que andou bem o júri do prémio em reconhecer o valor e a proporcionar-nos a leitura desta nova voz.

Os temas de antes ontem que amanhã estão entre o universal e o pessoal, como de resto convém á poesia. O poeta vê no pessoal algo de universal e no universal algo de universal. A poesia é sempre essa dupla tentativa de visão.  O tempo, esse grande mistério, é um tema tanto universal como pessoal, não sendo portanto por acaso que eletransparece em várias partes do livro. Alguns poemas têm mesmo títulos que remetem para o tempo, como: “´é meia-noite e meio -dia” (um paradoxo que diria quântico),  “o hoje deixou de mexer comigo”.

Talvez por defeito profissional, procurei e descortinei aqui e ali influências da linguagem científica, como também se encontra noutros poetas, por exemplo, entre nós, em António Gedeão e Vitorino Nemésio (ou, mais recentemente, em Jorge Sousa Braga e Rui Lage) e, na literatura alemã, no recentemente falecido escritor bávaro Hans-Magnus Enzensberger. Dou alguns exemplos: o poema “a escala da dor” abre com o verso “dói do lado anterior à célula ora espedaçada” (“espedaçada”, e não “despedaçada”, é a mesma coisa e poupa-se uma letra; devemos ser económicos com as letras tal como com as palavras); o poema “ocaso caso” fecha com as linhas “libertando-se da votação das marés e/ gravitando exponencialmente a qualquer temperatura” (aqui estão três palavras da física que só na poesia poderão aparecer juntas eeu não vejo nenhuma razão para aí não se juntarem); e o poema “um par” inclui no meio os versos “absortas numa unidade sem nomes/medidas em ondas gravitacionais só nossas” (as ondas gravitacionais são uma ideia antiga de Einstein, mas uma descoberta recente da física). Um outro poema tem um nome de um fenómeno físico: “osmose.” Enfim, ciência e literatura não têm de estar apartadas. Acho, por exemplo, muito poético o título "Revolução dos Orbes Celestes."

Dos poemas dedicados às mulheres distingo um que é quase uma lenga-lenga ”Margarida”, mas que tem a virtude de nos lembrar a tragédia que é, muitas vezes, a situação feminina.  Fez-me lembrar a repetição do poema “Calçada de Carriche” de António Gedeão, que fala da Luísa que “sobe a calçada,” ou “Poema de andar à roda,” o último poema dos Novos Poemas Póstumos do mesmo autor, que termina com o “movimento perpétuo” das bordadeiras, que é equiparado ao movimento monótono e eterno dos astros.

Finda a leitura pausada de Verão, pergunto a mim mesmo: que poemas devo distinguir? Não sei explicar, mas dois dos poemas que mais me tocaram são duas composições breves em que a autora se dirige a alguém na segunda pessoa: em “ir e não vir” escreve “para que tu ainda húmida [a roupa do estendal]/  ma apanhes/ e me vistas nua” e em “sobremesa” escreve “não, não é pudim / sou eu mais o caramelo”. Assoma Eros, uma presença constante na poeta de Vila Viçosa. Mas também gostei do poema que dá o título a “antes hoje que amanhã,” que contém uma frase algo ambígua como convém à poesia: “quero-me preparar hoje para as partidas de amanhã.” 

A autora apresenta aí um certo inventário do seu passado, ciente de que ele lhe pode vir a valer no futuro. Sim, é sempre o nosso passado que nos pode valer no futuro. O futuro é um sítio perigoso, um sítio  no qual não sabemos se e como sobreviveremos. E a nossa grande consolação é que, no passado, de uma ou de outra maneira, conseguimos sobreviver. Portanto, antes ontem que amanhã. Percebo muito bem a autora.

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