segunda-feira, 11 de setembro de 2023

OS ALIMENTOS, PORTUGAL E O MUNDO



Meu artigo no último JL:

O historiador norte-americano Raymond Grew, professor emérito da Universidade de Michigan e especialista em história social da Europa Mediterrânica, escreveu na abertura do livro que coordenou Food and Global History (Routledge, 1999): “A história da alimentação é um assunto da moda e também o é a história global. Embora os dois se juntem naturalmente, a sua combinação é explosiva. Intersectam-se tão facilmente já que cada um estende tentáculos relevantes que ultrapassam as fronteiras convencionais de tempo, regiões e especialização académica. (…) É notável que estes tópicos complexos, eruditos e exigentes sejam apelativos para um vasto público. (…) Leitores que normalmente fugiriam das abstracções da análise social e para quem os pormenores da história constituiriam um fardo têm, no entanto, especial apetite por ler sobre os alimentos e os hábitos alimentares de outras eras e culturas.”

Em Portugal, apesar de haver numerosos estudos parcelares, ainda não há uma história da alimentação portuguesa. Mas uma obra muito recente avança decididamente nessa direcção. Dirigido por José Eduardo Franco e coordenado por Isabel Drumond Braga, o primeiro professor de História da Universidade Aberta e a segunda professora de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, intitula-se História Global da Alimentação Portuguesa (Temas e Debates). Com 608 páginas e 69 autores (59 nacionais e 10 estrangeiros) é um painel de 101 artigos temáticos, de meia dúzia de páginas, apresentados numa sequência cronológica (embora a data escolhida para cada artigo seja, por vezes, meramente convencional). Trata-se de um bom aproveitamento da tal “combinação explosiva” de que fala Grew entre alimentação e história do mundo. O livro, que pretende chegar a um grande número de leitores sem abdicar do rigor científico, oferece um menu muito variado, onde cada um poderá “deglutir” o que for mais do seu agrado.

O modelo do livro é a História Global de Portugal, saída na mesma editora (e também no saudoso Círculo de Leitores) em 2020 e que teve a direcção de José Eduardo Franco, José Paiva (professor da Universidade de Coimbra) e de mim próprio, que, por sua vez, se inspirou na Histoire Mondiale de la France (Éditions du Seuil, 2017), da responsabilidade do historiador francês Patrick Boucheron. A História Global é uma corrente recente da historiografia que privilegia as circulações e os contactos, em vez de se ater às fronteiras nacionais. A História Global de Portugal já continha artigos sobre alimentação, entre os quais um da própria Drumond Braga sobre o arroz português, que resulta de uma circulação global (há outros sobre: o açúcar da ilha da Madeira; as especiarias da Índia em Garcia de Orta; o vinho do Porto, que originou a primeira região demarcada do mundo; e o bacalhau, um peixe de águas remotas que se tornou uma marca da cozinha nacional). Mas, no volume agora vindo a lume, a coordenadora soube reunir-se de um conjunto de autores que nos fazem, metaforicamente falando (pois é de «pão» para o intelecto que se trata), “crescer a água na boca”. Merece encómio o trabalho dos responsáveis desta edição pelo modo como prepararam este lauto repasto.

O livro começa no alvor da nacionalidade com alimentos muito antigos: o pão, o mel e o queijo. Podia – foi uma opção editorial – ter começado antes, como começou a História Global de Portugal, dizendo como se comia na pré-história (há revelações recentes de restos de caranguejo comidos por neandertais numa gruta de Sesimbra, há 90.000 anos) ou pela Antiguidade Clássica (no ano passado foi em Braga recriado um banquete romano, com Gustatio, Primae-Mensae e Secunda-Mensae). Mas, a História Global da Alimentação Portuguesa contém vários outros alimentos: na linha cronológica seguida, açúcar, leite, caça, especiarias, caldos, azeite, sal, café, cacau, cerveja, água, vinho, chá, conservas, arroz, fruta, peixe, frango e ovos (a edição beneficiou do mecenato da empresa Lusiaves), hambúrguer (sim, do McDonald’s!), batata e cuscuz (estes dois vêm no fim só por causa dos recentes Anos Internacionais da UNESCO sobre eles). Mas o livro também aborda a cozinha e a mesa: o fumeiro; a mesa régia; os ofícios de cozinha; a matança de animais; os conventos; a comida de rua; a comida em barcos e aviões; os cafés, tabernas e restaurantes; o gelo e a refrigeração; as porcelanas e pratarias; a etiqueta e os menus; os mercados; os electrodomésticos; o vegetarianismo e a comida biológica; a comida no teatro, cinema e televisão; a higiene e regulação, a dieta mediterrânica, etc. Encontram-se múltiplas ligações da comida à religião, não só católica, mas também judaica e muçulmana. Enfatizam-se os cruzamentos protagonizados pelos portugueses com povos de outros continentes, em especial da América do Sul (Brasil), mas também de África e do Extremo Oriente: os portugueses descobriram comidas alheias e proporcionaram a descoberta das suas. O leitor interessado por livros de cozinha encontrará referências aos clássicos: O Livro de Receitas da Infanta D. Maria (1565, manuscrito); a Arte de Cozinha (1680, primeiro livro impresso), de Domingos Rodrigues; as Receitas… (1715, manuscrito), de Francisco Borges Henriques; a Arte do Cozinheiro e do Copeiro (1841), do 1.º Visconde de Vilarinho de São Romão; a Arte da Cozinha (1876), de João da Matta; A Cozinheira das Cozinheiras (1932), de Rosa Maria (pseudónimo do editor); O Livro de Pantagruel (1945), de Bertha Rosa Limpo; os livros de Maria de Lurdes Modesto e de Maria Odette Cortes Valente, desde os anos de 1960; e as revistas Banquete e Teleculinária, nos anos de 1960 e de 1970.

Um artigo que me suscitou particular atenção, entre tantos e tão saborosos, é o que aborda o restaurante português em Roma, aberto em 2010. Achei curiosa a escolha, já que, embora a cozinha portuguesa nunca se tenha internacionalizado como a italiana, existem vários restaurantes portugueses espalhados pelo globo. Quando estudava na Alemanha ia de propósito a Mainz comer no restaurante “O Galo.” E, um dia, de visita a Silicon Valley, comi, em São José da Califórnia, o melhor bacalhau à Gomes de Sá da minha vida, num restaurante madeirense. Esqueci-me do nome, mas não do sabor.

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