sábado, 31 de março de 2007
É demais!
Verdade seja dita, em dois anos as minhas únicas contribuições foram sugerir que fossem retiradas da publicação patetices pseudo-científicas, como um texto completamente insano sobre astronomia/astrologia e uma "notícia" que dizia ter sido provado na China que a acupunctura cura 437 doenças. E quando se vai ver a fonte da "notícia", ela não passa de uma entrevista com um senhor que, na China, pratica acupunctura. Mas no Ciência (?) Hoje (??) aparecia como "a Ciência provou que..." (só a afirmação mostra que quem a faz não sabe a menor coisa sobre o que é a ciência normal, no sentido popperiano do termo - e, extrapolando um pouco, sobre o que é fazer Ciência).
Em ambos os casos eram pecadilhos. Mas o facto de as minhas advertências terem sido totalmente ignoradas, e os textos terem continuado online, fazia-me temer o pior.
Mas nunca imaginei que chegasse a este ponto. É demais!
Criacionismo puro e duro
A publicação deste dislate deu-me ensejo para continuar a expôr o criacionismo puro e duro, versão Terra jovem, como defendida pelo devoto jurista. Depois de explicada a génese do criacionismo verificaremos agora que este não evoluiu, apenas embrulhou a «visão» original de Ellen Gould White num invólucro mais atraente, o criacionismo anti científico.
Como já referi, os mentores da primeira ofensiva criacionista disfarçada de ciência, o oxímoro criacionismo científico, são o primeiro presidente do Institute for Creation Research, ICR, Henry Morris, e John C. Whitcomb, Jr., o teólogo que o arregimentou para a causa criacionista.
Em 1961, Morris e Whitcomb publicaram o livro «The Genesis Flood», designado por Stephen Jay Gould como «o documento fundador do movimento criacionista», em que é citado George McCready Price, o tal autodidacta que traduziu em livro o transe da fundadora dos Adventistas do 7º dia. O livro é uma demonstração do empenho de Morris em «provar» que o Génesis é factual, «um livro da verdade histórica, independentemente dos problemas científicos ou cronológicos que tal acarreta». Morris acreditava que os cristãos que consideram alegórico o Génesis não se apercebem que tal «mina o resto das Escrituras. Se Adão não é um personagem real, então o 2º Adão não é real e não há necessidade de um Salvador».
Para dar conta dos tais «problemas científicos e cronológicos» no que à geologia diz respeito, os autores inventam um nonsense a que chamam «catastrofismo bíblico», propagado até hoje em imbecilidades nunca antes imaginadas como a Tectónica de Placas Catastrófica - que, de forma absolutamente hilariante, pretende explicar como em meia dúzia de dias se separaram os continentes e se formaram cadeias montanhosas como os Alpes ou os Himalaias - ou a sismografia apocaliptíca.
Mas a pérola de todos os dislates é talvez a forma «airosa» como os autores resolveram Génesis I: 6-7: 6- E disse Deus: haja um firmamento no meio das águas, e haja separação entre águas e águas; 7- Fez, pois, Deus o firmamento, e separou as águas que estavam debaixo do firmamento das que estavam por cima do firmamento. E assim foi.
Que levantava um problema sobre o que cargas de água seriam aquelas que ficavam debaixo do firmamento. Especialmente porque a leitura literal do Génesis nos seus pontos 2:5 e 2:6 excluía nuvens, já que as referidas revelações dizem claramente que «o Senhor Deus não tinha feito chover sobre a terra» e que era «um vapor» que «subia da terra» o responsável pela rega de «toda a face da terra».
A solução encontrada por Morris foi rodear a Terra por uma bolha gigantesca e invísivel de água «divina» que assumiu essa disposição mercê da «criatividade» igualmente divina, que supostamente só sujeitou a água às leis da física no pós-dilúvio. Uma alfinetada na dita bolha foi quanto bastou a Deus para despoletar o Dilúvio, naqueles tempos em que o criador brincava com a gravidade, forças intermoleculares e demais leis naturais que hoje enganam os mais cientificamente informados.
Aliás, a inexplicável insistência dos cientistas nas continuidades histórica e das leis da física - com que, por exemplo, datam biblicamente «impossíveis» rochas e fósseis - é carpida por Morris como sendo assente em «pressupostos tão dogmáticos como os nossos». Dogmas que não aceitam, por exemplo, que a segunda lei da termodinâmica só tenha sido «inventada» por Deus pós-Criação ou que as constantes físicas, como a velocidade da luz, constante de Planck ou a constante de Newton tenham variado por milagre. E especialmente não aceitam que Deus pode intervir a nível das forças nucleares, aumentando vertiginosamente o tempo de meia vida, isto é, diminuindo muitas ordens de grandeza a constante de decaimento radioactivo, dos isótopos utilizados nos métodos de datação. Só não percebo se esta intervenção na interacção nuclear fraca se verificou só na Terra pré-diluviana ou se Deus até ao Dilúvio andou a dar uma ajudinha às estrelas consubstanciado imaterialmente em bosões de vector...
Claro que são igualmente dogmas ateus que impedem os cientistas de aceitar que o registo fóssil é uma consequência do Dilúvio, e apenas um milagre, estranhamente em completa discordância com o proposto por Morris , justifica, por exemplo, que todas as trilobites surjam nos estratos inferiores sem vestígios do Homo Diluvii testis. Não importa que um dos mais vocais denunciadores destes dislates fósseis seja o biólogo católico Kenneth R. Miller...
Não obstante no livro de 1974 «Troubled Waters of Evolution» Morris considerar que «É mais produtivo encarar a Bíblia literalmente e depois interpretar os factos reais da ciência dentro do seu enquadramento de revelação» já que, como tinha apontado em 1961, «O cristão instruído sabe que as evidências para uma completa inspiração divina das Escrituras têm muito mais peso do que as evidências para qualquer facto da ciência», Morris tentou vender o seu livro Scientific Creationism como puramente secular e científico e como tal perfeitamente apropriado para uso nas salas de aula das escolas públicas americanas.
Isto é, expurgou Deus do texto original substituindo-o por um «criador» anónimo, transformando «No princípio, Deus criou os céus e a terra» em «No princípio, um certo Criador cujo nome a 1ª Emenda não nos permite mencionar criou os céus e a terra», o que, segundo os criacionistas, transforma igualmente este amontoado de inanidades num livro científico. A mesma táctica usada umas décadas depois com a IDiotia ou desenho inteligente, como iremos ver.
AS BOAS E OS MAUS
Minha crónica do "Público" de sexta-feira passada:
Jorge de Sena, depois de zurzir longamente o romance "Domingo à Tarde" de Fernando Namora, rematava assim:
«E concluamos com uma nota comprovativa da total isenção com que foi escrito este artigo: eu nunca li nenhum romance de Namora, e muito menos este de que me ocupei. De onde deve concluir-se que a diferença fundamental entre a literatura autêntica e a literatura de consumo está em que, para falarmos desta última, não é necessário lê-la."
O mesmo digo do programa "A Bela e o Mestre" que está no ar na TVI. Eu nunca vi esse programa nem faço tenções de ver mas, como se trata de um programa de consumo, pelos vistos de grande consumo, para falar dele nem preciso vê-lo. Contaram-me o pior e imagino até que possa ser pior do que me contaram.
O título remete para “A Bela e o Monstro”, um conto ancestral que foi reescrito no século XVIII por Madame de Beaumont e que deu o bem conhecido filme dos estúdios Walt Disney de 1991. Mas as belas do programa pouco têm que ver com a menina do filme. Esta era até bastante inteligente, lia livros e, no castelo do monstro, ficou excitadíssima com a enorme biblioteca. E é a sensibilidade ligada à inteligência que a levou a amar o monstro, fazendo com que ele deixasse de o ser. Era bem diferente das raparigas estupidamente bonitas por fora e completamente ocas por dentro que imagino - repito que não vi - fazem as delícias dos “voyeurs” televisivos.
Já muita gente que viu o programa se insurgiu contra a imagem estereotipada e retrógrada da mulher que o programa transmite. “A Bela e o Mestre” é um verdadeiro regresso ao passado. No final do século XIX, Ramalho Ortigão, o macho lusitano que se bateu com Antero de Quental em duelo antes de se juntar aos “vencidos da vida”, escrevia: "Pobres mulheres! Elas são-nos bem inferiores (...) pela anatomia dos ossos e dos músculos e pela constituição do cérebro. Elas têm a cabeça mais pequena, como as raças inferiores (...) não sabem compor óperas e nunca chegam a entender a matemática". Ramalho falava sem ponta de ironia: a mulher era mesmo considerada por ele e pelos seus contemporâneos um ser inferior. Sabemos hoje que ele estava redondamente enganado, e os seus descendentes intelectuais, que ainda não passaram do século XIX, estão tão enganados como ele. Ou melhor: estão ainda mais enganados, pois durante o tempo que passou ficou amplamente demonstrada a desrazão ramalheana. Quanto à ópera, confesso que não sei o suficiente, mas posso assegurar que alguns dos nossos melhores matemáticos são mulheres. Algumas bastante belas, de acordo com os cânones passados ou actuais, se é que isso interessa.
Um mestre aparece identificado com um monstro na versão portuguesa do telelixo norte-americano. Como muita gente e muito bem já defendeu as mulheres da acusação de ignorância, mas ainda ninguém defendeu os mestres, não tanto da acusação de fealdade mas mais da de maldade que está implícita no título português (um monstro é não só feio como mau!), venho eu defendê-los. Apesar de não ter o grau de mestre, tenho o de doutor, e sinto-me metido no mesmo saco. As belas são as boas e nós somos os maus. Mas que mal fizemos nós? E por que motivo o mestre ou, por maioria de razão, o doutor aparece associado ao terror e ao mal?
Esta injusta associação tem, de facto, uma longa história, na qual se incluem o Doutor Fausto, um homem de ciência que fez um pacto com o demónio, e o Frankenstein, um estudante de ciências que criou um monstro no laboratório (a criatura acabou por tomar o nome do criador). A propósito, foi uma rapariga inglesa de 19 anos, Mary Shelley, que escreveu, pouco antes de Ramalho nascer, “Frankenstein”, um clássico universal, ao passo que o escritor português, goste-se ou não dele, nunca escreveu uma obra que atravessasse fronteiras.
Mas muito tempo passou desde o Doutor Fausto e o Frankenstein. E, assim como as belas já não são vistas como eram, já é tempo de mudar a má fama dos mestres!
sexta-feira, 30 de março de 2007
Lafforgue, ou o aquecimento global do eduquês
Dizia o Eça que “Portugal é um país que copia tudo, até as formas das botas”. Para quem ainda não percebeu que os problemas da Educação em Portugal, em particular os que o Desidério descreve, provêm da importação serôdia de modas patetas que finalmente estão a ser expostas pelo que são – um atentado -, vale a pena considerar o que se passou há pouco mais de um ano em França.
Laurent Lafforgue é um dos maiores matemáticos de hoje. Trabalha no mundialmente famoso IHÉS (Institut des Hautes Études Scientifiques) e é um dos galardoados com a maior distinção mundial na área da Matemática, a medalha Fields.
Na sequência do seu envolvimento em questões ligadas à educação, Lafforgue foi convidado em 2005 a integrar o Conselho Superior de Educação criado em 8 de Novembro de 2005 e que reuniu pela primeira vez a 17 de Novembro de 2005. No dia seguinte o seu presidente, Bruno Racine, exige a demissão de Laurent Lafforgue. Porquê?
Ou seja: alguém, convenientemente sem cara, achou boa ideia promover uma fuga de informação de um documento confidencial para fazer rolar a cabeça de um especialista brilhante, incómodo, com ideias perigosamente diferentes, que poderiam pôr os dedos nas feridas do eduquês e, quem sabe, ser mesmo bem acolhidas. Parece uma purga estalinista. Mas os tempos são outros, e Lafforgue não foi para a Sibéria: publicou todos os documentos, incluindo o email que deveria ter permanecido confidencial (e se não ficou, não foi por ele!) na sua página Web. Recomendo o mais vivamente a consulta deste e dos outros documentos por ele disponibilizados.
Lafforgue diz no mail que a ordem de trabalhos da referida reunião o mergulha no desespero. De facto, “apelar aos especialistas da educação nacional: inspecções gerais e direcções da administração central, em particular direcção da avaliação e de prospectiva e direcção do ensino escolar” é, diz ele, exactamente como se se formasse um “Conselho Superior para os Direitos do Homem” e se apelasse aos Khmers Vermelhos para constituir um grupo de especialistas para a promoção dos direitos humanos. Não é simpático, mas ele não foi convidado para a Comissão pelos seu lindo sorriso e cabelo loiro.
Lafforgue reconhece que este movimento de degradação educativa é muito generalizado, fazendo-se sempre em nome do “progresso” e da “modernização”. Existem contudo excepções: países que não se deixaram contaminar pela ideologia dominante, como Singapura. Curiosamente, ou talvez não, Singapura aparece há dez anos em primeiro lugar nos estudos comparativos internacionais de desempenho escolar TIMMS e PISA.
E termina recomendando páginas Web de instituições em quem confia na descrição dos problemas da Educação em França, como o GRIP, Sauver Les Lettres (SLL), e a Association des Professeurs de Lettres (APL). Valem bem uma visita. Finalmente, recomenda a página pessoal de Michel Delord, “simples professor de matemática do secundário mas com um conhecimento impressionante da história do nosso sistema educativo”. A página de Delord tem como dedicatória “Página dedicada a pais que se inquietaram por as suas crianças não saberem fazer uma divisão no Ensino Secundário e a quem foi respondido: “Os senhores são uns retrógrados”. Alguém se reconhece nisto? Eu sim.
O caso Lafforgue foi convenientemente ignorado pelos media portugueses. Mas o que Lafforgue descreve podia ser a nossa situação. Falta traduzir o aquecimento global do eduquês para Portugal. Temos, na minha estimativa, 20 anos de atraso. Mas as botas são importadas.
GRANDES ERROS 2
Transcrevo notícia do "Diário de Notícias" de hoje. Será que ouvi bem: a culpa foi dos alvos? Porque não viram antes o prazo de validade dos alvos? Os alvos fora do prazo fogem? Era a fingir, mas os alvos reais também têm prazo de validade? O título do exercício não ficaria melhor "Relâmpago 00"?
"Exército faz treino com mísseis terra-ar e não acerta num único alvo
Um exercício militar com mísseis terra-ar de curto alcance realizado ontem na Marinha Grande falhou os objectivos do Exército, já que nenhum dos oito alvos foi destruído.
O exercício Relâmpago 07, para testar com fogo real o sistema de míssil antiaéreo Chaparral, não cumpriu os objectivos iniciais e os militares responsabilizaram os alvos utilizados, cuja data de validade expirava este ano. "Falhou o espectáculo mas valeu o treino", disse o comandante do Regimento de Artilharia Antiaérea 1, coronel Vieira Borges, que endereçou as responsabilidades dos erros para os alvos LZS 5000.
O balanço deste exercício "será devidamente analisado", afirmou o oficial, que destacou os "factores aleatórios" que contribuíram para o falhanço dos disparos. No total, foram apenas lançados quatro mísseis - um dos quais detonou no areal enquanto os outros seguiram para o mar - já que nas outras situações os artilheiros não conseguiram fixar os alvos para disparar os projécteis."
Eram "alvos que tinham alguns anos e com data de validade até este ano", e os mísseis não os conseguiram fixar, explicou Vieira Borges."
Livros e ministério da educação
O mais simples de tudo — pôr os professores e estudantes a estudar por bons livros, promover a edição de bons livros para professores e estudantes — é coisa que não lembra aos originais pedagogos que mandam no ministério. É caso para dizer que com cães destes mais vale ir à caça com gatos.
Imagine-se como seriam as coisas se desde há 20 anos o Ministério da Educação se tivesse limitado a fazer a gestão das colocações dos professores e a mandar pintar paredes e mudar sanitas partidas, sem fazer qualquer intervenção no ensino propriamente dito — sem mexer nos programas, nos manuais, no desenho curricular, em nada que diga respeito ao ensino propriamente dito. Está a imaginar? Óptimo. Agora pergunte-se isto: seria possível estarmos hoje pior do que estamos? Eu não tenho dúvidas de que estaríamos pelo menos, na pior das hipóteses, na mesma. Mas quero crer que estaríamos bem melhor, pois no nosso país, os muitos professores de alto profissionalismo — e que estudam por bons livros, sobretudo estrangeiros — têm de lutar contra o ministério da educação para fazer um bom trabalho. Se os pedagogos do ministério estivessem quietos, tudo andaria sobre rodas. Nomeadamente porque os muitos professores de excelência que temos por esse país fora teriam mais tempo para estudar por bons livros estrangeiros e assim preparar aulas de excelência, em vez de andarem afogados em nova legislação todas as semanas, novos programas, novos manuais, novas brincadeiras na biblioteca, novas disciplinas de fantasia.
quinta-feira, 29 de março de 2007
O PROGRESSO DA AVIAÇÃO
Em Setembro de 1956 a IBM lançou o primeiro computador com um disco duro: o 305 RAMAC. O disco, que armazenava cinco megabytes, pesava mais de uma tonelada! Para o transportar era preciso um avião de carga. Hoje em dia há portáteis com discos de 50 gigabytes (dez mil vezes mais) e que só pesam poucos gramas (dez mil vezes menos). Levamo-la na mão numa viagem de avião.
O mais curioso é que, em comparação, o avião está praticamente na mesma. Não progrediu quase nada!
O NASCIMENTO DA QUÍMICA
O ano de 1789 foi o ano da Revolução Francesa e o primeiro do novo calendário francês. Foi também o ano um de uma nova disciplina. Com efeito, foi nesse mesmo ano que o francês Antoine-Laurent Lavoisier, então com 51 anos, publicou o Traité Élementaire de Chimie, o livro fundador da Química. Mas a Revolução que viu nascer a Química conduziu à morte do pai dessa ciência. No dia 8 de Maio de 1794 rolava em Paris, na Place de la Révolution, a cabeça mais famosa que a invenção do Dr. Guillotin vitimou.
A Física conheceu um grande desenvolvimento no século XVII, sob a égide de Newton, unindo a matemática com a observação experimental dos movimentos dos corpos. Por sua vez a Química nasceu, sob a égide de Lavoiser, unindo a matemática com a observação experimental da transformação da matéria. O uso de instrumentos de medida e a indução de leis a partir dos dados empíricos foi, em ambos os casos, essencial para o nascimento de uma nova ciência.
Os conteúdos essenciais do Traité tinham surgido vários anos antes. Em 1772 o jovem Lavoisier interrogava-se sobre a razão de um metal calcinado pesar mais, no fim da reacção, apesar de ter perdido, segundo a teoria da época, uma substância a que se chamava “flogisto”. Uma série de pesagens precisas levaram-no a crer que o ar ou uma parte dele se combinava com o metal. E confiou essa descoberta à Academia das Ciências sob a forma de um pli cacheté, um documento selado que permitia mais tarde reclamar a prioridade. Em 1773 refere, no seu caderno de laboratório, uma revolução na física e na química. E permite a abertura da nota escondida. De facto, sabemos hoje que não há nenhum flogisto e que a parte do ar responsável pelas combustões é o oxigénio, uma substância então desconhecida, mas que era elementar ao contrário do ar. O sábio francês com essas e outras experiências concluiu que nas reacções químicas havia conservação da massa.
Mas do lado de lá da Mancha também emergia a ciência química. No ano de 1772, em Inglaterra, um clérigo dissidente, Joseph Priestley, escrevia um artigo intitulado Impregnating water with fixed air baseado nas suas observações do processo de fabrico da cerveja em Leeds. O “ar fixo” é o que chamamos hoje dióxido de carbono e a “água impregnada” é o que hoje chamamos água gaseificada. Ao contrário do oxigénio, o dióxido de carbono consegue apagar uma chama. Em 1774 o mesmo Priestley, desconhecedor de que a descoberta tinha sido feita um pouco antes pelo farmacêutico sueco Carl Scheele, encontrava o oxigénio. Ao aquecer óxido de mercúrio com a luz solar focada por uma lente verificou que se saía um gás que avivava uma chama - precisamente o oxigénio. Em 1775 anunciou essa nova em Experiments and observations on different kinds of air.
Um português “estrangeirado”, João Jacinto Magalhães, eleito membro da Royal Society de Londres em 1774, desempenhou um papel charneira ao transmitir de Inglaterra para França as ideias priestleyanas. Em 1772 enviou para Paris o artigo do “ar fixo” de Priestley, que Lavoisier leu na Academia das Ciências, em 1773 conheceu Lavoisier pessoalmente, e em 1774 apresentou Priestley a Lavoisier em Paris.
A descoberta quase simultânea do oxigénio por Scheele e Priestley haveria de ser confirmada por Lavoisier (uma peça de teatro moderna – Oxigénio - glosa estas peripécias). Mais: ele identificou o oxigénio (cujo nome ele próprio introduziu) como um agente activo de todas as combustões. E verificou que as plantas, ao contrário dos animais, no processo de respiração, absorvem durante o dia dióxido de carbono libertando oxigénio. A combustão de hidrogénio com oxigénio dá origem a água, uma experiência de síntese que Lavoisier realizou com cuidado em 1783: eram precisas duas partes de hidrogénio para uma de oxigénio de modo a formar água. Tal como o ar, também a água – esse outro “elemento” dos antigos gregos – não era elementar. E o oxigénio fazia parte tanto do ar como da água...
Em Portugal 1772 foi o ano da Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra. Depois de ter mudado a cidade de Lisboa, o poderoso ministro de D. José reformou a Universidade de Coimbra, criando a Faculdade de Matemática e a de Filosofia. Estabeleceu uma cadeira de Química, para a qual chamou um professor italiano, Domingos Vandelli. Para dar aulas práticas dessa cadeira mandou erguer um novo edifício, o Laboratório Chimico, hoje magnificamente reconstruído para dar lugar ao Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. A construção começou em 1773, tendo a obra ficado praticamente concluída em 1775. É claro do que ficou dito que o edifício foi construído enquanto se construía a própria química. Não admira, por isso, que seja o mais antigo edifício do mundo construído para o ensino experimental da química.
Hoje o visitante do Museu encontra réplicas de duas famosas experiências dos primórdios da química: a descoberta do oxigénio por Priestley e a síntese da água por Lavoisier. E encontra também o livro de um discípulo de Vandelli – Vicente Seabra – os Elementos de Chimica cujo primeiro volume antecipa de um ano a obra maior de Lavoisier. Tanto para Seabra como para Lavoisier – crentes na “idade da razão” – a experiência é que dizia quem tinha razão...
Ciência e banha da cobra
A ideia é que tanto faz se estamos a fazer ciência, história, arqueologia ou filosofia ou matemática — o que faz a diferença é a abertura à discussão pública. Mill viu isso com uma clareza assombrosa, mas infelizmente o positivismo de Comte foi muito mais influente, tal como os neo-positivistas. A ideia de todos os positivismos é que podemos eliminar o factor humano, podemos inventar métodos automáticos de produção de Ciência (com maiúscula, claro): de um lado entram os dados (experiência), acrescentam-se uns pós de raciocínio lógico e matemático, e do outro lado sai a Ciência, objectiva e indisputável, a Verdade verdadinha mais verdadeira que há, sem que nos tenhamos de dar ao trabalho de discutir, duvidar, errar.
Acontece que isto é uma fantasia. Fazer ciência é como fazer qualquer outra coisa intelectualmente séria: temos de avaliar as coisas cuidadosamente, tenhamos ou não metodologias pré-determinadas, navegando muitas vezes à vista e sem bússola. Porque queremos descobrir verdades, procuramos também descobrir metodologias apropriadas ao que estamos a estudar. Mas para nenhum estudo é a leitura de livros sagrados e o respeito reverente pela autoridade um bom método, e para todos os estudos a base de qualquer método sério é a análise crítica das provas e da argumentação.
Nada há de especial na ciência que a diferencie da filosofia ou da matemática ou até da teologia. Todas estas actividades ou se fazem com pés e cabeça — abrindo-se à crítica, à correcção de erros, apoiando-se em provas e na argumentação — ou são fantasias semelhantes à bruxaria. É tão simples como isto. Tanto faz se estamos a discutir a existência de Deus, do calórico ou dos quarks, da Arca de Noé ou do Pai Natal, tanto faz se estamos a tentar descobrir a cura da tuberculose ou a natureza do tempo ou os benefícios do reiki. Em todos estes casos ou se trabalha seriamente — e fazer isso é fazê-lo com abertura crítica, como Mill tão claramente percebeu — ou é uma farsa.
Popper, não sendo positivista lógico, acabou por contribuir para mentalidade positivista actual por causa do seu simples e provavelmente errado critério de falsificabilidade. Entre outras coisas, Popper usa a falsificabilidade para distinguir a ciência de pseudociências como a psicanálise ou o marxismo (os exemplos são de Popper). Só que tem o defeito terrível de dar às pessoas a sensação de que uma coisa pode não ser ciência, por não ser falsificável, mas ser respeitável enquanto actividade intelectual. Mas mesmo que Popper tenha razão — e eu penso que não tinha porque em muitos casos a ciência não é falsificável — o que não é ciência não é coisa alguma de intelectualmente respeitável: é lixo intelectual. O grão de verdade no critério de falsificabilidade é apenas a abertura à crítica e a procura activa de alternativas credíveis. Mas se uma dada actividade intelectual não faz isto, não se pode dizer que é respeitável, apesar de não ser ciência; não é nem ciência nem qualquer outra coisa séria, é uma mera fantasia. É como o leite; se estiver estragado, está estragado, ponto final — não é queijo nem manteiga, nem água-pé. É apenas leite estragado.
quarta-feira, 28 de março de 2007
EPICURO E EPICURISTAS
Epicuro foi contemporâneo do grande matemático Euclides e antecedeu um dos primeiros grandes sábios do helenismo, Eratóstenes de Alexandria, que na senda das ideias epicuristas escreveu o livro Sobre a Libertação da Dor. Epicuro era, de certo modo, um físico-químico, tendo retomado as ideias atomistas do filósofo pré-socrático Demócrito, conhecido por "o filósofo que ri", embora não haja representações fidedignas da sua face. Para Demócrito e para Epicuro todo o mundo é composto por átomos. "Tudo é átomos e espaço vazio", disse Demócrito. Ele tinha boas razões para rir uma vez que a sua ideia estava certa, apesar de na época não ser passível de confirmação experimental.
A mesma ideia foi depois celebrada pelo poeta latino Lucrécio no belo poema De Rerum Natura. Porém, só no século XIX, com o químico inglês John Dalton, o atomismo ficou alicerçado pela interpretação de experiências de química. Hoje sabemos de experiência feita que tudo é feito de átomos e espaço vazio. Por exemplo, nós somos feitos de átomos e espaço vazio, embora os nossos átomos estejam organizados de uma maneira prodigiosa no espaço vazio.
Epicuro foi atomista ao ponto de imaginar que também os deuses, que na altura estavam no Olimpo, eram feitos de átomos e espaço vazio. Mas os átomos dos deuses não se combinavam de nenhuma forma com os átomos dos homens. O filósofo recusou, portanto, a ideia de os deuses serem senhores das acções dos homens. Estes eram livres e não tinham que ter medo dos deuses, não tinham que sofrer a dor devida a eventual castigo dos deuses. O prazer, no sentido de ausência de dor, foi erguido como trave-mestra da sua filosofia: a procura dele era o impulso para uma vida que merecesse a pena ser vivida. A ideia é tão simples e atractiva que não se estranha que os seus seguidores se tivessem multiplicado e chegado até aos nossos dias. Só se estranha é que não haja mais.
Um dos grandes prazeres da vida é saber. O prazer da descoberta científica está bem patente na moderna obra do físico norte americano Richard Feynman, que é o autor do livro O Prazer de Descobrir as Coisas. Quando Feynman recebeu a notícia do Prémio Nobel, ficou naturalmente contente, mas disse que não lhe interessava ir recebê-lo porque o verdadeiro prazer tinha sido antes, precisamente o "prazer de descobrir as coisas". Mudou de ideias - tendo ido levantar o avultado prémio - depois de a mulher lhe ter explicado que a sua obsessão pelo prazer solitário estava a retirar prazer a outros... Não foi decerto por acaso que Feynman foi buscar inspiração às doutrinas de Demócrito, Epicuro e Lucrécio, quando afirmou numa famosa palestra de 1959: "Há muito espaço lá em baixo!". Queria ele dizer que os átomos muito pequenos vogavam no imenso espaço vazio, pelo que era possível movê-los e arranjá-los. Foi o início da nanotecnologia, a engenharia que pretende fazer objectos átomo a átomo e que nos promete "admiráveis mundos novos". Se com a ciência o mundo é compreendido, com a técnica ele é transformado, desejavelmente para benefício do homem, mas aí já não se trata apenas de uma questão de ciência. Somos feitos de átomos, regulados por leis, mas dotados de livre arbítrio. Os deuses não mandam em nós!
UM LIVRO QUE É UM LABORATÓRIO
Trancrevo uma das minhas últimas crónicas quinzenais do semanário "Sol". A próxima sai no sábado e intitula-se "Há grandes cientistas portugueses?"
Não é novidade para ninguém que o ensino das ciências está mal
Da Natureza do Homem: lendas urbanas e outras histórias
Segundo Ashley Montagu (in «The Nature of Human Aggression») na sociedade ocidental este pessimismo em relação à natureza humana foi secularizado ao longo dos séculos, o que explica que tenha marcado mesmo as lucubrações de pensadores ateus como Freud, Thomas Huxley (que introduziu o termo agnóstico), Herbert Spencer, Konrad Lorenz, Niko Tinbergen ou Desmond Morris. O facto de os autores citados serem cientistas de renome, autores de obras com grande divulgação entre o público em geral, contribuiu para o sedimentar desta descrença na bondade do Homem.
Todos estamos familiarizados com a cena de abertura do famoso filme de Stanley Kubrik «2001, Odisseia no Espaço» que corrobora esta noção da violência inata do Homem, que o acompanha desde os primórdios da evolução. Mas poucos saberão que com esta cena estão a assimilar as teorias (erradas) de um antropólogo australiano, Raymond Dart. Em 1924, Raymond Dart fez a descoberta que o tornou famoso. Dart estava interessado nos fósseis descobertos numa exploração de pedra em Taung, África do Sul, e descobriu entre eles o fóssil de um primata a que chamou Australopitecus africanus.
A descoberta por Dart do Taung Boy e a sua persistência em ir contra o que a comunidade científica defendia na época, determinado essencialmente por aquele que é hoje reconhecido como uma fraude grosseira, o suposto fóssil baptizado homem de Piltdown, foram determinantes no esclarecimento da evolução do homem. Mas as suas teorias sobre a selvajaria destes antepassados do Homem, amplamente divulgadas e amplificadas pelos media e passadas para as telas de cinema em filmes de culto, foram tão perniciosas na opinião pública quanto o Piltdown o foi para a ciência.
Dart concluiu erradamente dos fósseis de animais trucidados de forma violenta descobertos nas imediações dos fósseis Australopitecus, que estes antepassados do Homem eram caracterizados por uma cultura «osteodonkeratic« (ossos, dentes e chifres), isto é, eram caçadores cruéis cujas tendências sanguinárias deixaram marcas indeléveis no comportamento humano. E escreveu em 1953, ano em que que foi reconhecido publicamente ser o Piltdown uma fraude:
«Os arquivos manchados de sangue e atrocidades - The blood-bespattered, slaughtergutted [sic] archives of human history, no original - da História da Humanidade, desde os mais antigos registos egipcios e sumérios até às mais recentes atrocidades da II Guerra Mundial, estão de acordo com o primitivo canibalismo universal, com as práticas de sacrifícios animais e humanos ou seus substitutos em religiões formalizadas, e com as práticas generalizadas de escalpelizar, caçar cabeças para reduzi-las, mutilar corpos, e com as actividades necrófilas da humanidade revelando esse hábito predatório, essa marca de Caim, essa sede de sangue que separa dieteticamente o homem dos seus parentes antropóides e o aproxima dos mais mortíferos dos carnívoros».
A influência da concepção judaico-cristã do Homem em Dart é evidenciada pela epígrafe deste artigo, «A Transição Predatória de Macaco a Homem», uma citação de Baxter, um famoso teólogo inglês do século XVII: «De todas as feras, a fera homem é a pior. Para as outras e para si mesma, o mais cruel inimigo».
A visão dos «macacos assassinos» de Dart foi popularizada pelo escritor Robert Ardrey em livros como «African Genesis» que por sua vez serviram de inspiração para a cena de abertura do filme «2001: A Odisseia no Espaço». Estas ideias sobre os Australopitecus foram fortemente criticadas na época e estudos posteriores provam que estão totalmente erradas - os fósseis de animais encontrados nas imediações foram mortos por predadores que não este antepassado do homem (que era muito provavelmente uma presa, não um predador).
Para desmistificar as lendas urbanas sobre a natureza malévola do Homem, recomendo o livro de Robert W. Sussman e Donna Hart «Man The Hunted: Primates, Predators, and Human Evolution». O livro «Biological Basis of Human Behavior: A Critical Review», e em especial o capítulo 20, intitulado «The myth of man the hunter/man the killer and the evolution of human morality», igualmente de Robert Sussman - disponível em formato pdf - é muito interessante porque sugere que as teorias de Dart, completamente erradas, prevalecem na opinião pública e mesmo em alguns membros da comunidade científica apenas porque «reflectem, reforçam e reiteram as nossas crenças culturais tradicionais».
Na realidade, não obstante todas as evidências em contrário, para o público em geral a imagem que perdura incontestada é a da violência primeva do Homem, a sua tendência intrínseca para o mal, um assassino da própria espécie.
O cientista dogmático e outras aventuras
“Podemos passar a pente fino o que chegou até nós da medicina, matemática e astronomia egípcias e babilónicas à procura, em vão, de um único exemplo de um texto no qual um autor individual se distancie explicitamente e critique a tradição por forma a reclamar originalidade, ao passo que as nossas fontes gregas o fazem repetidamente.” (G. E. R. Lloyd, The Revolutions of Wisdom, p. 153.)
Eu diria que nessas civilizações nunca houve ciência: houve apenas resultados científicos, porque não podemos viver sem eles e sem tropeçar neles, mas não houve ciência. Tal como não houve filosofia, apesar de ter havido algumas ideias filosóficas.
A atitude reverencial é natural — mas impede o fluxo de ideias. O que podemos fazer quanto a isso? Podemos divulgar melhor a importância da discussão crítica, ensinar as pessoas a discutir, dar-lhes instrumentos críticos. E podemos divulgar a diferença entre um sistema no qual se estimula e premeia a discussão crítica e um sistema no qual se premeia o respeito pelas autoridades e pela tradição. É precisamente porque as pessoas são naturalmente dogmáticas que precisamos do primeiro sistema.
O sistema de abertura crítica permite o seguinte: imaginemos que somos os dois biólogos. E eu sou um biólogo tonto, que encaro Darwin como a palavra do Senhor. O leitor é crítico e tem tendência para avaliar criticamente as coisas. Eu nunca vou pôr Darwin em causa, mas o leitor descobre um aspecto da teoria que não parece funcionar. Fica curioso. Prossegue a sua investigação. E acaba por publicar um importante trabalho numa revista da especialidade que refuta Darwin definitivamente. E fica famoso — não será excomungado nem queimado vivo. Eu poderei resistir dogmaticamente à nova teoria, mas essa será uma causa perdida — outros cientistas menos dogmáticos do que eu percebem as coisas e abandonam a teoria de Darwin. É o próprio sistema que premeia e estimula a crítica e a mudança. Precisamente por isso, as pessoas naturalmente dogmáticas e de fraco sentido crítico não fazem grande mal.
Compare-se com um sistema no qual se premeia precisamente o inverso: o respeito pela autoridade e pela tradição, a atitude reverencial. Para se ver um sistema desses em funcionamento basta ver o que se passou com Galeno:
“Apesar de Al-Razi declarar que era um discípulo de Galeno, escreveu também livros em que critica alguns dos seus ensinamentos; foi o primeiro a distinguir a varíola do sarampo. Ibn al-Nafis criticou também directamente Galeno, fazendo notar que o sangue passa pelos pulmões e não entre as cavidades do coração, como Galeno tinha afirmado. Em contraste, as obras de Galeno eram por esta altura tratadas como textos sagrados na Europa cristã e não se fazia tentativa alguma para progredir a partir delas.” (Charles Freeman, The Closing of the Western Mind, p. 331)
Os sistemas de pensamento fechados à crítica e à discussão aberta têm evidentemente tendência para ser ultrapassados pelos outros sistemas, em regimes políticos livres. Sem a protecção da força bruta, os sistemas fechados de pensamento tendem a perder partidários.
CIÊNCIA EM PALCO
Hoje, 27 de Março, é Dia Mundial do Teatro. No Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra, foi lançado o número zero da revista "Partilha de Cena", publicada pela Máfia - Associação Cultura de Coimbra. Dedicado ao tema "Teatro e Ciência", além de três peças de teatro sobre temas científicos e de um texto do bioquímico americano Carl Djerassi, a revista inclui o seguinte texto meu. Como falo do "Hamlet", aproveito para referir que essa peça está em cena no Teatro da Trindade em Lisboa, com tradução, cenografia e interpretação no papel principal de André Gago.
A arte tem em comum com a ciência a criatividade e a procura do belo, embora o façam por caminhos diferentes. A arte tem a capacidade de tocar as pessoas ao transmitir sentimentos e emoções. Não admira por isso que a cultura científica, que é a ciência no seio da sociedade, encontre um meio privilegiado de expressão através da arte. Entre as várias formas artísticas, o teatro ocupa um lugar único. O teatro, que é a representação da vida, transmite sentimentos e emoções através de pessoas vivas e ao vivo.
É sintomático da aproximação entre teatro e ciência que aquele que é considerado o maior dramaturgo de todos os tempos – William Shakespeare (1564-1616)– tenha sido contemporâneo da revolução que marcou o início da ciência moderna. O bardo inglês viveu no tempo do astrónomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), no intervalo temporal entre Nicolau Copérnico e Galileu Galilei. E escreveu, provavelmente em 1600-1602, o “Hamlet”, a história da terrível vingança de um príncipe da Dinamarca que contém várias referências astronómicas: é famosa, por exemplo, a asserção “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”. E não é menos sintomático que o pai do teatro português, Gil Vicente (1465-1536?), também tenha recorrido, no seu “Auto da Feira”, que foi representado para o rei D. João III no Natal de 1527, a um discurso de teor astronómico. Diz Mercúrio, o deus-mensageiro: “E porque a astronomia/ anda agora mui maneira / Mal sabida e lisonjeira / Eu à honra deste dia / Vos direi a verdadeira. / Muitos presumem saber / As operações do céu.”
Clássicos do “teatro científico” (expressão que se entende, mas decerto inadequada, pois o teatro, como qualquer outra forma artística, pouco tem de científico mesmo quando aborda temas de ciência) são as peças em língua alemã “Galileu” de Bertolt Brecht, sobre a vida do grande sábio italiano, “In der Sache J. Robert Oppenheimer”, de Hainer Kipphardt, sobre o físico norte-americano que dirigiu a equipa científica do projecto da bomba atómica, “Os Físicos” de Friedrich Dürrenmatt, uma comédia em que Newton e Einstein são malucos internados num manicómio, ou mais recentemente, e em língua inglesa “Copenhaga”, de Michael Frayn, “Einstein”, de Gabriel Emanuel, e “QED” (sobre Richard Feynman), de Peter Parnell.
O Teatro Aberto de Lisboa teve em cena com assinalável êxito em 2003 a peça “Copenhaga”, sobre um famoso encontro na capital dinamarquesa entre os físicos Werner Heisenberg e Niels Bohr, com encenação de João Lourenço e participação de Cármen Dolores. Desse espectáculo o encenador partiu para a montagem de “Galileu”, com Rui Mendes no principal papel, que esteve, também com êxito, em palco em 2006. Merecem ainda referência de entre o teatro representado entre nós as peças do bioquímico norte-americano Carl Djerassi, como “Esse espermatozóide é meu”, pela companhia do Teatro Trindade de Lisboa, e “Oxigénio", pela Seiva Trupe do Porto. A companhia do Teatro Trindade, dirigida por Carlos Fragateiro, desenvolveu um notável projecto de teatro-ciência que incluiu os musicais “O último tango de Fermat”, “Picasso e Einstein” (ver apontamentos no meu livro “Curiosidade Apaixonada”, Gradiva, 2005) e “Os sonhos de Einstein”.
Entre outros espectáculos de teatro-ciência, que nem por serem de menor projecção foram menores, merecem também destaque “Astrocirkus”, do grupo Trupilariante no Teatro Nacional Dona Maria, a “Breve história da Lua”, de António Gedeão, na Barraca, cenas de “Galileu” numa produção de Margarida Mendes Silva no Teatro Académico de Gil Vicente em Coimbra, e “Além as estrelas são a nossa casa”, pela Escola da Noite em Coimbra.
O grupo Marionet de Coimbra tem tido uma actividade de grande mérito nesta área. Depois de se ter estreado com “Revolução dos Corpos Celestes”, um original de Mário Montenegro muito bem representado pelo próprio no Museu Nacional da Ciência e da Técnica no ano de 2001, levou ao palco “O Nariz” (sobre a anosmia, a ausência de olfacto), “LED” (sobre a viagem do electrão no interior de um computador) e, mais recentemente, “Bengala de Cegos”, sobre a vida e obra do matemático Pedro Nunes (1502-1578). Todos estes textos são do autor e actor Mário Montenegro, um engenheiro electrónico de formação que encontra nos palcos a sua realização plena. Além da Marionet, dois grupos que integram a MAFIA – Federação Cultural de Coimbra também fizeram “teatro científico: "Flatland", da Camaleão, e "Câmara Escura", do Projecto BUH!.
Porque os últimos são sempre os primeiros (ou porque, como também se diz, o maior amor é sempre o último) é não só oportuna como justa uma palavra sobre a última peça da Marionet, representada em Coimbra no Teatro Académico e Gil Vicente e, a seguir, em Aveiro no Estaleiro do Teatro Efémero. O título “Bengala de Cegos” remete para o facto de os marinheiros portugueses do tempo dos Descobrimentos se terem aventurado no mar quase sempre sem terem os conhecimentos suficientes de matemática e de astronomia, que eram precisamente a “bengala” que lhes faltava e que o cosmógrafo-mor do reino lhes queria dar, apesar de nunca ter posto os pés do navio. Na peça, desafiado por sua mulher (a espanhola D. Guiomar), a embarcar para o Brasil, ele responde que só atravessará os mares quando a ciência proporcionasse a segurança necessária. Pedro Nunes, cujo nónio foi utilizado por Tycho Brahe, foi talvez o maior cientista português de todos os tempos. Só para dar um testemunho da sua relevância na cena científica internacional, refira-se que um dos maiores astrónomos que viveu entre Copérnico e Galileu, Cristopher Clavius (1538-1612), foi um admirador confesso de Nunes. Clavius, jesuíta alemão que depois de ter estudado na Universidade de Coimbra dirigiu as observações astronómicas do Vaticano e mudou o calendário de juliano para gregoriano, quase terá sido discípulo directo de Pedro Nunes em Coimbra e citou-o nas suas obras várias vezes. Clavius é um dos personagens da peça “Galileu” de Brecht, aparecendo a confirmar as observações efectuadas pelo cientista pisano com a primeira luneta.
Embora haja criatividade em ambas, há uma certa liberdade na arte, que não é permitida na ciência. Por exemplo, Clavius aparece a apoiar as teses de Galileu na peça de Brecht atrás referida, o que não é inteiramente verdade (Clavius era ptolomaico e não copernicano). Mas ciência em palco não significa que, apesar de se se revelar viva, a ciência seja exactamente representada em palco tal como é “ao vivo”, nos institutos e laboratórios. Ciência em palco significa trazer a ciência para diante dos nossos olhos, para o palco das nossas atenções, fazê-la passar para a sociedade. É, portanto, uma forma, uma das melhores formas, de fazer cultura científica.
terça-feira, 27 de março de 2007
MISS ÁTOMO 2007
Podia ser pior? Podia, pode sempre ser pior. Há 50 anos já foi pior. Em 1957 no Texas foi organizado (a sério, this is no joke!) um concurso Miss Bomba Atómica, pois na altura se julgava que isso poderia atrair turistas. A foto de uma rapariga americana vestida (?) com um fato de cogumelo atómico é ainda hoje o símbolo "kitsch" da guerra fria...
Razão tinha Einstein, o autor da equação mais famosa da física (que é usada para explicar a cisão nuclear), quando afirmou: "Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS
Anúncio do Astronovas, boletim electrónico do Observatório Astronómico de Lisboa (Centro de Astronomia e Astrofísica da Universidade de Lisboa)
PALESTRA PÚBLICA - 30 de Março
Alterações Climáticas Naturais e Antropogénicas
O OAL retomou as suas Palestras públicas mensais, que como habitualmente têm lugar no Edifício Central, pelas 21h30 da última sexta-feira de cada mês.
A próxima palestra terá lugar no dia 30 de Março e abordará o seguinte tema:
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS NATURAIS E ANTROPOGÉNICAS
Filipe Duarte Santos, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Componentes do sistema climático. Causas da variabilidade climática. Causas das eras glaciares e dos períodos glaciares e interglaciares. Variabilidade solar. Evolução do Sol e consequências para a vida na Terra. Balanço radiativo na atmosfera terrestre. Efeito de estufa e intensificação antropogénica do efeito de estufa. Perturbação do ciclo do carbono. Alterações climáticas antropogénicas. Cenários climáticos futuros para Portugal.
A palestra terá videodifusão ao vivo na internet no endereço
http://live.fccn.pt/oal/
A entrada na Tapada da Ajuda faz-se pelo portão da Calçada da Tapada, em frente ao Instituto Superior de Agronomia.
No final de cada palestra, e caso o estado do tempo o permita, fazem-se observações dos corpos celestes com telescópio. Nesta noite os corpos celestes alvo serão o planeta Saturno e a Lua. Convida-se o público a trazer os seus binóculos ou mesmo pequenos telescópios caso queiram realizar as suas próprias observações ou ser ajudados com o seu funcionamento.
Para mais informações use o telefone 213616730.
LIVROS EM DESASSOSSEGO
Trancrevo "newsletter" da Gradiva a anunciar evento sobre livros de ciência:
Porque será que quando se fala de cultura quase sempre se pensa apenas nas artes e nas letras? É a partir desta interrogação que se vai fazer a próxima sessão dos Livros em Desassossego, como sempre na última quinta-feira do mês. Na mesa - sob o mote “Ciência também é cultura” – vão estar os cientistas António Manuel Baptista, físico, António Coutinho, director do Instituto Gulbenkian de Ciência e Mário Ruivo, presidente da Federação das Associações Científicas Portuguesas.
Antes do debate, passa-se em revista a produção editorial do último mês, o editor (e biólogo) Jorge Reis-Sá, das Quasi Edições, escolherá os três livros recentes que gostava de ter sido ele a editar e o escritor Paulo Nogueira apresenta o seu novo romance Estamos Todos Tão Sozinhos (edição ASA). A edição de Março dos Livros em Desassossego, com a moderação do jornalista Carlos Vaz Marques, está marcada para o próximo dia 29, pelas 21h30 na Casa Fernando Pessoa e a entrada é livre.
Uma defesa do método científico
“A maior parte das instituições requerem fé ilimitada; mas, a instituição científica faz do cepticismo uma virtude”.
Robert K. Merton
Esta frase resume, de forma exemplar, o extraordinário valor da ciência. Contrariamente ao que muitas vezes se afirma, não é apenas o método científico que ajuda os cientistas a eliminar hipóteses e a revelar mais e de forma mais profunda a realidade de que fazemos parte. Há um outro elemento extremamente poderoso: a existência de uma comunidade científica que é constituída por pensadores particularmente cépticos dos achados dos outros. Para um cientista fazer passar uma ideia verdadeiramente inovadora é necessário convencer uma imensidão de cépticos. E isso, por vezes, representa várias gerações deles.
A procura do conhecimento, nas fronteiras do desconhecido requer ideias novas, métodos sólidos e medições precisas. Mas, acima de tudo, requer uma atitude de não aceitar justificações irracionais, ou presumir que o conhecimento não possa ser aprofundado e detalhado. A natureza humana tem uma grande facilidade para aceitar dogmas, mas a ciência funciona porque há comunidades científicas que não permitem que o dogma se estabilize. O famoso físico Richard Feynman sintetizou, uma vez, numa frase a sua ideia de ciência: “a Ciência é a crença na ignorância dos peritos”.
Os debates e discussões no interior da ciência são um dos indicadores mais directos da sua vitalidade. Terá a velocidade da luz sido diferente no passado, como propõe, polemicamente, o físico português João Magueijo? Durante o Séc. XIX houve um debate intenso sobre se havia átomos e moléculas; hoje o assunto está decidido. Há uma dezena de anos, questionava-se sobre se os priões realmente existiam ou se se tratava de um mero artefacto. Hoje sabemos que eles são os responsáveis pelas conhecidas encefalopatias espongiformes.
O método científico não é um dogma dos cientistas: é apenas o método mais eficaz que a humanidade já conseguiu inventar para colocar questões sobre a realidade e obter respostas consistentes. Nenhum outro lhe chega perto. Galileu é a figura que surge associada à sua criação. Mas, é herdeiro de uma tradição de quase de três mil anos.
O gene do altruísmo
Em caso de alteração drástica do ambiente, em que a mutação aleatória de genomas individuais não assegura a sobrevivência da colónia, esta funciona como um grupo. Grupo que dá conta do recado, resolvendo catástrofes ambientais insuperáveis a uma única bactéria.
Num artigo escrito especialmente para o «Mundo da Ciência» podemos ver uma súmula e uma discussão do trabalho dos cientistas que trabalharam sobre este tema. Que concordam que em determinados casos as bactérias sacrificam a sua individualidade ao grupo social e toda uma colónia se comporta como um macro organismo, em que há troca de informação entre indíviduos, nomeadamente informação sobre o meio ambiente, e a resposta a estímulos exteriores é uma decisão que envolve toda a colónia.
Mais interessantes ainda são as conclusões apresentadas no artigo «The Evolutionary Origin of an Altruistic Gene», publicado em Maio último na revista Molecular Biology and Evolution. Os autores sugerem que pelo menos alguns genes altruistas evoluiram de genes que suprimiam actividades biológicas como resposta a alterações no meio ambiente, nomeadamente escassez de recursos.
Os cientistas identificaram um gene altruísta de uma espécie primitiva multicelular, Volvox carterii, e o equivalente num organismo unicelular semelhante ao que lhe deu origem.
A alga Volvox, que graças à sua simplicidade é considerada o melhor exemplo de um acontecimento evolucionário determinante, o advento da multi celularidade, é constituida por cerca de 2000 células ligadas numa forma globular. Dessas 2000 células apenas 16 se reproduzem. Isto é, como em muitos organismos multicelulares, há uma divisão das células em «germ cells» -que se reproduzem - e células somáticas que não se reproduzem.
Esta divisão corresponde a uma forma profunda de altruismo. Ao não se reproduzirem as células somáticas «suicidam-se» evolucionariamente para beneficiar o grupo. Algo muito semelhante ao que acontece em colónias de insectos com as suas obreiras estéreis. Obreiras estéreis e altruistas que motivaram as reflexões de Hamilton apresentadas nos seus artigos históricos The Genetical Evolution of Social Behaviour I e II».
Na Volvox, o gene RegA, presente nos dois tipos de células mas activo apenas nas células somáticas, é o causador deste altruismo reprodutivo inibindo o crescimento celular.
Um gene muito análogo ao RegA foi encontrado na alga unicelular Chlamydomonas reinhardtii, que se considera muito próxima do ancestral da Volvox. Este gene, identificado como Crsc13, inibe o crescimento celular - impedindo a reprodução - quando há escassez de recursos, nomeadamente é activado quando não há luz, necessária à fotossintese.
No organismo multicelular este gene funciona como um gene altruista simplesmente por alteração do mecanismo de activação e desactivação do gene. Em termos evolucionários, como indica uma das autoras do texto, não deve existir uma diferença fundamental entre o altruísmo da Volvox e a generosidade humana. Ambos devem ter origem em mecanismos similares, ou seja, resposta a alterações no meio ambiente.
O mesmo mecanismo transforma membros anti-sociais da bactéria Myxococcus xanthus em «cidadãos» exemplares, dotados de uma elevada consciência social. Como escreve Kevin Foster da Harvard University num comentário a este artigo, publicado na Nature em Maio do ano passado, quando a sociedade ameaça desintegração devido a comportamentos anti-sociais, a evolução favorece mutações que recuperem o trabalho de equipa necessário à sobrevivência da espécie.
HÁ TESOUROS NO QUIOSQUE 3
Basta ir ao quiosque para encontrar pérolas de idiotia, gemas de inanidades. O que mais espanta é encontrar profissionais da ciência e da tecnologia a dar o seu nome a alguns desses dislates.
Abra-se o número 30 da revista "Biosofia", que tem o ambicioso subtítulo de "Para uma nova compreensão da vida, do universo e do homem". Trata-se do órgão do Centro Lusitano de Unificação Cultural, com sede em Lisboa. Depressa se conclui que o "New Age", embora atrasado, chegou à Lusitânia. O Centro tem um "blog" na Net onde se esclarece que a revista trata, entre outros temas, de "Esoterismo, Ciência, Diálogo entre a Ciência Esotérica e as Ciências Físicas, Astronomia, Astrologia, Psicologia, Sociologia, Filosofia e Pedagogia". E pasme-se: "A Revista Biosofia foi considerada de interesse cultural pelo Ministério da Cultura, nomeadamente para efeitos da Lei do Mecenato (benefícios fiscais)."
A estranha miscigenação de ciência e pseudo-ciência é feita com doses pequenas da primeira e grandes da segunda. Pelo lado da ciência, Liliana Ferreira, doutorada em Física da Radiação (a lista de títulos acrescenta a esse os de licenciada, professora e investigadora), escreve sobre "Estados da Matéria". Embora a maior parte seja ciência, o último parágrafo soa mais a pseudo-ciência:
"Não parece irrazoável admitir que novos estados materiais, onde as partículas estejam ligadas por energias potenciais mais perto dos limites de imponderabilidade material que atribuímos à energia radiante, possam ainda vir a ser descobertos".
Alguém percebe? O número de verbos também não ajuda: são nove.
Mas há pior, nestas matérias há sempre pior. Vejamos a pseudo-ciência pura e dura. O engenheiro de ambiente Tomás Marques responde à sua própria pergunta em título: "Por que estudo ocultismo?"
"Efectivamente, sei que, como todas as pessoas, me encontro sujeito ao contínuo assistir de um filme fantástico projectado pela minha mente, em que as razões para tudo o que faço são coloridas da maneira mais agradável, com vista a uma melhor negociação emocional com a Realidade."
Ao menos o autor tem sempre cinema em casa... Poder-se-á dizer que a frase está fora do contexto. Ainda bem, pois dentro do contexto era pior.
Por último, João Balseiro, licenciado em Engenharia Civil e Mestre em Gestão, escreve sobre "Filosofia Chinesa / Taoísmo". Quem pensar que as citações anteriores são obscuras veja como elas ficam claras em comparação com esta:
"Quem procura perpetuar-se através do ego (aqui entendido como eu inferior ou personalidade), destrói-se, mas quem integra o ego no Eu, esse imortaliza o Eu, e, sendo o Eu o Todo, imortaliza ou sacraliza, por transmutação, a sua própria natureza inferior".
segunda-feira, 26 de março de 2007
Como se faz um filósofo?
Em Como se Faz um Filósofo (Bizâncio, 2007), McGinn usa a sua biografia como fio condutor, dando a conhecer não apenas alguns dos temas centrais da filosofia, tal como são discutidos hoje em dia, mas também o modo como um ser humano vive esses problemas. Sabendo que os filósofos são muitas vezes encarados como seres do outro mundo, McGinn mostra o lado humano de uma vida dedicada à investigação filosófica, procurando destruir a imagem romântica do "génio atormentado" que infelizmente alguns intelectuais gostam de cultivar. Afinal, que há de mais humano do que esta vontade de descobrir a verdade das coisas? Como Oliver Sacks comentou, este livro está "escrito de forma brilhante, é devastadoramente honesto, por vezes hilariante, e conta uma história pessoal tão fascinante quanto a filosófica". Nem mais.
Sociobiologia e o papel do auto-engano
A primeira explicação convincente da evolução de comportamentos sociais, como o altruísmo, muito comum no reino animal (e não só, como veremos) com os já referidos artigos de Hamilton originou uma verdadeira revolução biológica, centrada no campo da etologia. A sociobiologia, a disciplina que Hamilton «fundou» - e tema central do best-seller de Richard Dawkins «O Gene Egoísta» - afirmou-se com cientistas como Robert Trivers, um biólogo evolucionista que propôs a teoria do altruísmo recíproco, e John Maynard Smith. Os autores referidos tentaram responder à pergunta: se cada indivíduo maximiza os seus benefícios através do comportamento egoísta, por que razão algumas espécies evoluíram através de um mecanismo de trocas altruístas?
O trabalho destes cientistas deu uma base evolucionista à compreensão das actividades sociais dos humanos, nomeadamente questionando o dualismo cartesiano res cogitans e res extensa e propondo uma base biológica para comportamentos altruistas e sentimentos como a compaixão. A psicologia evolutiva assenta no reconhecimento que à medida que pressões selectivas específicas condicionaram a evolução do nosso cérebro, essa evolução traduziu-se numa evolução de comportamentos. E determinados comportamentos, como o altruísmo, representam um trunfo evolutivo para o homem. Isto é, reconhece que tal como as capacidades cognitivas, as capacidades comportamentais, nomeadamente morais, decorrem da nossa evolução biológica.
Trivers deu igualmente um contributo importante para percebermos os mecanismos biológicos subjacentes ao auto-engano que descreve como uma ferramenta para manipulação social. Como Trivers observou, a principal função do auto-engano é enganar mais facilmente os outros. A pessoa que se auto-engana julga falar a verdade, e acreditar na própria história permite-lhe ser ainda mais persuasiva.
A revista Seed oferece-nos este momento ímpar em que Trivers e Chomsky, que dispensa apresentações, discutem o papel do auto-engano e da mentira numa série de comportamentos humanos, desde impressionar os membros do sexo oposto às invasões do Afeganistão pela URSS, do Koweit por Saddam ou do Iraque pela administração Bush. Para quem estiver interessado a transcrição do debate encontra-se aqui.
MONUMENTOS AO ERRO
O recente livro "Relógios do Sol", editado pelos Correios de Portugal, fez-me olhar com atenção para um relógio de Sol gigante que há em Coimbra no Portugal dos Pequenitos. Talvez seja o maior do país. No fundo do referido parque infantil observa-se um extenso plano inclinado com um enorme mastro, cuja sombra deveria dar a hora solar. Mas, para o conjunto funcionar, era preciso que o plano fizesse com o chão um ângulo igual à co-latitude do lugar (50 graus) e que o mastro, perpendicular ao plano, apontasse para Norte. Nenhuma destas condições está satisfeita... De nada vale olhar para a sombra do mastro que não se lê a hora certa. O arquitecto terá feito bem os cálculos, mas o empreiteiro não seguiu o projecto à risca e o dono da obra (a Fundação Bissaia Barreto) deixou ficar. Ficou um monumento ao erro!
No Estoril também há um relógio de sol errado. O relógio de sol que foi construído no muro vertical de betão que sustém a arriba da praia do Tamariz encontra-se à sombra bastante antes do pôr-do-sol numa larga parte do ano. Por outro lado, e segundo foi em tempos noticiado no jornal "Expresso", devido a um erro nas marcações, o referido relógio está significativamente desfasado do tempo solar real. A culpa, mais uma vez, não é do Sol, mas exclusivamente humana. A obra foi paga pela Câmara Municipal de Cascais, quer dizer saiu do bolso dos contribuintes. É um outro monumento ao erro!
Dá ideia que em Portugal, no que toca a modernos relógios de sol, há uma certa insensibilidade ao erro...
Olhares sobre a filosofia
domingo, 25 de março de 2007
O CORAÇÃO É UMA BOMBA
Foi o princípio da Revolução Científica, onde a Física teve o maior relevo. Mas a Medicina experimentou também por essa altura um grande salto. Uma descoberta fundamental foi a da função do coração: o coração é uma bomba, um dispositivo mecânico que recebe sangue das veias e o envia para as artérias. O mérito dessa descoberta coube a um contemporâneo de Galileu – o médico inglês William Harvey. E o método foi o mesmo de Galileu – o método experimental.
Se Galileu tinha observado a oscilação de um grande candeeiro, Harvey observou, com a ajuda de um instrumento, os pequenos corações pulsantes de insectos. No seu tratado em latim De motu cordis (Sobre o movimento do coração), publicado em 1628, Harvey escreve que em insectos, como moscas, "conseguimos perceber algo que pulsa com o auxílio de uma lente". Para Harvey tratou-se de uma confirmação da hipótese, que já alimentava, de que o coração dos animais, qualquer que fosse o seu tamanho, funcionava como uma bomba hidráulica. O coração fazia ao sangue o mesmo que uma bomba fazia à água. Tanto fazia ser o coração de um insecto como de um mamífero. Tanto fazia ser a mosca como o homem.
Mas, no método experimental, não basta observar: é preciso experimentar. O médico inglês testou a sua hipótese sobre a circulação do sangue ao dissecar um grande número de animais de coutada real inglesa, colocada à sua disposição pelo rei (primeiro James I e depois o seu filho Charles I). Experimentou também a vivissecção (dissecação não de um animal morto mas, horror!, de um animal vivo). E, finalmente, autopsiou humanos.
Um notável contemporâneo de Galileu e de Harvey foi o inglês Francis Bacon. Ao contrário de Galileu e de Harvey, que foram cientistas, Bacon foi um teórico da ciência. É ele o autor de uma frase que ficou famosa: "Saber é poder". E é ele também o autor do primeiro conto de ficção científica, A Nova Atlântida, onde relata uma ilha utópica que é palco de uma actividade científico-técnica bem organizada. Nesse livro relata-se a manutenção de todo o tipo de animais, usados para dissecações e ensaios, a "fim de que se possa fazer luz o que se passa no corpo do homem". É curioso referir que o médico de Bacon foi precisamente Harvey. Harvey não só sabia como podia!
Em 1616 William Harvey tinha anunciado ao Real Colégio dos Médicos Ingleses a sua teoria da circulação do sangue (o funcionamento do coração e dos vasos sanguíneos permaneceu secreto durante tanto tempo devido à interdição da dissecação de cadáveres). E, em 1628, Harvey escreveu numa nota ao Presidente do Real Colégio dos Médicos, que surgiu em prefácio a De Motu Cordis: "Pretendo aprender e ensinar anatomia não a partir dos livros mas sim de dissecações". Com as vivisecções, a ligação do sangue com os pulmões e a respiração foi progressivamente apreendida (se na época houvesse sociedades protectores dos animais, elas teriam protestado!). As dissecações de seres humanos passaram a ser uma fonte de ciência (a palavra "autópsia" significa literalmente "ver por si próprio"). Como "saber é poder" era necessário saber o interior dos mortos para poder tratar dos vivos. Em animais ou no homem é o pulsar do coração, perceptível no pulso, que faz o sangue ir não só de um aurículo para um ventrículo como chegar aos pulmões e a todo o corpo. A questão é óbvia: o que acontece ao coração se o animal (seria, claro, inumano utilizar o homem) for progressivamente privado de ar?
Para tirar o ar era preciso uma bomba não de água mas de ar. Pois foi por essa mesma altura, com base na descoberta de que o coração era uma bomba e na necessidade de saber a relação entre os pulmões e o coração, que foi inventada a bomba pneumática (bomba de ar). O mérito do invento coube a dois Roberts, os ingleses Robert Boyle e Robert Hooke. Estes dois sócios da Royal Society realizaram perante os seus colegas uma experiência crucial na qual uma cobra e um frango foram colocados em recipientes de vidro de onde lentamente se extraiu o ar com uma bomba pneumática. O réptil ficou muito perturbado, mas não morreu, ao passo que a ave morreu convulsivamente. Já se sabia que um era animal de sangue frio e o outro um animal de sangue quente. Mas ficou a saber-se que o ar parecia ser mais importante para a ave do que para o réptil. O coração é uma bomba e com outra bomba o coração podia deixar de funcionar.
As experiências evoluíram para o cão e outros animais. Com inúmeras observações e experiências, a teoria da circulação do sangue, proposta por Harvey, foi ganhando pouco a pouco credibilidade...
Exames: sim, por favor!
Em 2001 foram publicados pela primeira vez os resultados dos exames de acesso à Universidade em função da escola secundária frequentada. São chocantes, em particular no que diz respeito à amplitude da diferença entre as notas de frequência escolar e na prova nacional. Na disciplina de Português essa diferença varia mais de 11 valores em função da escola frequentada; em Matemática varia 10 valores.
Em média, os alunos que frequentaram a escola A obtiveram 13 valores a Português na frequência escolar e 16 valores na prova nacional; os que frequentaram a escola B obtiveram 13 valores na frequência e 5 valores na prova nacional. Em Matemática, os alunos da escola C obtiveram em média 13 valores de frequência e 13 valores na prova nacional, ao passo que os da escola D, com 15 valores de média de frequência, obtiveram 5 valores na prova final. Estes dados são factuais e relativos a escolas com mais de 15 alunos examinados: as escolas A, B, C e D são reais; só por ser totalmente inútil não dou aqui os seus nomes. Os alunos que as frequentaram são seres humanos reais, hoje perto dos 22 anos. Uns licenciados ou quase, outros não.
Tudo isto além, evidentemente, das enormes injustiças académicas quando está em causa o acesso ao Ensino Superior. Alunos de escolas medíocres, com professores que disfarçam a falta de condições ou de competência com o inflacionamento das notas ultrapassam nas candidaturas os alunos que frequentam escolas mais sérias e com professores mais exigentes. Os alunos que admitimos nas Universidades não são necessariamente os melhores; para ter “sucesso”, mais importante do que uma sólida preparação académica é frequentar uma escola de fraco nível de exigência mas generosa nas notas. Há muitos alunos (conheço dezenas de casos reais) que abandonam as escolas de elevado grau de exigência onde estão no final do 9º ano ingressando em escolas públicas conhecidas por inflacionar as notas para poder aceder ao curso que ambicionam (Medicina, por exemplo) e a que não poderão aceder alguns que optaram por ficar na mesma escola e trabalhar mais duramente.
É esta mensagem de facilitismo e de esperteza saloia que estamos a transmitir aos nossos jovens na escola: mais vale ser espertalhão do que inteligente, mais vale dar o golpe do que trabalhar. Vale fazer batota: os fins justificam os meios. E admiram-se que estes seres humanos, anos mais tarde, quando forem adultos sejam cidadãos que considerem normal a fuga aos impostos? É esta a "cidadania", como dizia o Desidério, que queremos transimitir? Seria uma boa piada, se não fosse acima de tudo tristíssimo.
Este é um dos problema central no nosso ensino. Um dos instrumentos que permite corrigi-lo é aplicado pela maioria dos nossos parceiros europeus: são os exames nacionais, com consequências, no final de cada ciclo de ensino. Mas a intelligentsia da Educação Nacional, até há bem poucos anos, queria acabar com os exames do... 12º ano! Nas palavras de um ex-ministro da Educação, "salvei-os porque disse que me demitia". Espantoso!
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