quarta-feira, 21 de março de 2007

Ensino pimba e discriminação social

Uma das estratégias erradas do ensino “pimba” que invadiu o nosso ministério, possivelmente com as melhores intenções, é eliminar tanto quanto possível os conteúdos precisos e bem delimitados dos programas, o que depois acaba por ser reproduzido em muitos manuais. Em vez de conteúdos precisos temos competências vagas, conversas de café sobre o “mundo contemporâneo”, leitura de jornais populares em detrimento de publicações cientificamente sérias, análise de regras de concursos televisivos em vez de literatura de qualidade, etc. Esta estratégia está errada por várias razões, uma das quais é a injustiça social que isto provoca. E este aspecto é-me particularmente caro.

Quando os conteúdos são vagos, de contornos ambíguos, sem articulação sólida nem formulação clara, os estudantes culturalmente mais carenciados são os que têm mais dificuldades. Porque os outros usam o background cultural que trazem de casa para preencher as lacunas, e conseguem construir respostas e trabalhos bem articulados, com uma linguagem segura e sofisticada — só que não aprenderam a fazer nada disto na escola nem com o manual, mas sim em casa, com os pais e outros livros. Ora, os estudantes culturalmente mais carenciados não têm background que lhes permita preencher as lacunas, e acabam por ter prestações muitíssimo más.

Particularizando: pensemos em dois estudantes, Maria e Manuel. A Maria tem carências culturais profundas. O Manuel tem a sorte de ser filho de arquitectos, por exemplo, ou de professores universitários (ou de técnicos do ministério da educação) e por isso tem um background cultural muito rico. Agora vamos para a aula fazer conversas vagas sobre o mundo contemporâneo. A Maria está tramada, porque mal percebe o que se passa e não tem “bagagem” para participar; o Manuel safa-se porque ouve conversas dessas todos os dias em casa, onde tem jornais e livros e onde aprendeu a escrever correctamente e a exprimir-se bem oralmente. Imaginemos agora que, em vez de conversas de café, o professor está a ensinar trigonometria com rigor e precisão. Agora as diferenças entre a Maria e o Manuel são menos marcadas. O background cultural do Manual continua a ajudá-lo, até porque provavelmente irá estudar trigonometria com os pais; mas agora a Maria pode genuinamente aprender qualquer coisa, porque o que lhe está a ser ensinado não depende crucialmente do seu background cultural. Agora sim, a escola está a cumprir o seu papel social.

Ou seja, se apostarmos em conteúdos muito bem delimitados, com um grau elevado de precisão, os estudantes culturalmente mais carenciados estão bem mais ao nível dos outros porque o que lhes é exigido é unicamente o que foi efectivamente leccionado, explícita e directamente, e não o background que trazem de casa. Exigimos a todos os estudantes a mesma coisa e o que exigimos é o que ensinamos, e não o que eles trazem de casa. Claro que há sempre vantagens de quem vem melhor preparado de casa, mas neste tipo de ensino de excelência os estudantes culturalmente mais carenciados têm menos desvantagens.

Numa palavra, o ensino de excelência dá vantagens aos estudantes culturalmente mais desfavorecidos, ao passo que o ensino “pimba”, defendido pelo ministério da educação, se limita a reproduzir as diferenças culturais (e sociais) que os estudantes trazem de casa. Quem gosta de teorias da conspiração pode pensar que o objectivo é mesmo esse: fingir que o estado oferece ensino por igual para todos, ao mesmo tempo que sub-repticiamente se protege aqueles que têm a sorte de ser mais iguais do que os outros.

20 comentários:

Paulo disse...

Caro Desidério Murcho
A situação que refere é grave e real. Eu sinto essa situação pelos dois lados: como encarregado de educação e como professor.
Como encarregado de educação, com uma filha no terceiro ciclo do básico, do qual me encontro um pouco deslocado pois lecciono numa escola onde apenas há secundário desde alguns anos, deparei-me este ano perante a inexistência de programas para o 3º ciclo. Existe uma "espécie de competências básicas" onde cabe o tudo mas não existe nada. Mesmo nas áreas científicas que melhor domino não consigo perceber aquilo que efectivamente os alunos têm que saber, ou melhor, parece-me que não têm que saber nada. Quando me é pedida ajuda fico sem saber se o assunto é ou não do programa, ou aquilo que na realidade devo dizer.
No Ensino Secundário, embora os programas sejam mais incisivos, cairam no erro do excesso de contextualização. Confesso que quando os novos programas surgiram fui adepto deles, mas após 4 anos a esmiuçá-los vejo que muitas vezes se perde a noção do contéudo científico, para fazer um aprofundamento do contexto. Aquilo que na aparência é um programa de grande conteúdo científico, acaba por não o ser. O aluno fica a saber explicar, ( às vezes), o que se passa no contexto, mas quando a mesma situação lhe surge " noutro contexto" não a reconhece.
Este exagero de contextualização enquadra-se também no assunto que abordou do " backgroud cultural". Beneficia os alunos com um "backgroud cultural" mais elevado.

João Vasco disse...

Concordo a 100%.

Mas além da questão importantíssima da descriminação que a abordagem descrita provoca, creio que esse não é o único problema de tal abordagem.

Quando ensinamos conteúdos precisos, estamos a acrescentar conhecimento.

Quando o ensino é mais dependente do background cultural, a escola tem menos a acrescentar e representa uma mais valia mais reduzida.

Há casos em que se procura encontrar um compromisso entre ensinar mais, e promover a equidade no ensino. Pode haver quem prefira sacrificar mais a primeira ou mais a segunda (e em Portugal não poucas vezes tem-se caído no extremo de nivelar por baixo...), mas neste caso não existe tal conflito: os conteúdos precisos atenuam a desigualdade enquanto aumentam para todos a mais-valia que escola representa.

TN disse...

Ensino "pimba"? Para quem critica as conversas de café, a precisão conceptual do seu artigo deixa muito a desejar...

Cumprimentos,

TN

Desidério Murcho disse...

O termo "pimba" foi introduzido informalmente em português para denotar algo sem qualidade; sinónimo: popularucho. O termo está registado no Houaiss, mas com outros significados relacionados.

É um termo depreciativo e é isso mesmo que eu estou a fazer: a depreciar concepções de ensino que considero erradas. Não há por isso falta de precisão conceptual no meu artigo. Podemos é considerar que eu não devia usar um termo depreciativo. Mas por que não?

Quem desejar um artigo aprofundado sobre esta miséria pode ler Para Que Serve o Ensino? (reservado a subscritores).

Aliás, acho significativo que fazendo eu afirmações tão graves no artigo se levantem questões sobre o uso irrelevante de uma palavra. Chama-se a isto a falácia "red herring".

TN disse...

As afirmações graves que produz perdem para mim relevo, entre outras coisas, pela sua ausência de precisão conceptual: com efeito, apesar de "pimba" estar no Houaiss, há-de certamente convir que esse facto não confere ao termo o carácter de "conceito". Como é evidente, os dicionários não definem apenas conceitos.
Também não encontro no seu texto nenhuma identificação clara de "concepções de ensino": apenas referências vagas a uma suposta invasão do Ministério (por quem? como? quando? onde estão?).
Por outras palavras, não se encontra precisão conceptual nem nos termos que utiliza (chega mesmo a classificar a sua própria utilização do termo "pimba" de "uso irrelevante de uma palavra" - concordo inteiramente) nem nas "concepções" a que supostamente se refere.
As afirmações graves que diz produzir perdem também gravidade (e credibilidade) pela ausência de apoio empírico. Com efeito, o seu texto não apresenta qualquer evidência empírica que sustente as suas afirmações (a não ser que considere o exercício especulativo sobre a Maria e o Manuel uma evidência empírica).
É por estes motivos que invocar a falácia de red herring me parece desadequado: com efeito, ela só poderia ser invocada caso os seus argumentos fossem relevantes (e não apenas, como diz, "afirmações graves"). Neste caso em concreto, a irrelevância das minhas observações estará, na pior das hipóteses, em harmonia com a das suas.
Agradeço a referência ao seu outro texto, mas não subscrevo o seu blogue.

Cumprimentos

lino disse...

O "tn" não subscreve a "Crítica", e é pena. Porque, se o fizesse, saberia que não é um blogue, mas uma página de serviço público que já existia antes da popularização dos blogues. Indo ao texto, concordo com "quase" tudo. Eu tenho uma filha mestranda em biologia, considero-me um iliterata cultural (apesar ter ter estudado filosofia durante 4 anos, grego e latim durente 7 e português durante 13) e nunca tive necessidade de fazer os trabalhos de casa pela filhota. Ensiná-la a pescar (isto é, ajudá-la a raciocinar), sim. Mas nunca fazer os trabalhos por ela. Fez o primeiro ciclo do EB na escola pública cá do bairro, depois foi para um colégio "laico, republicano e socialista" onde andavam filho(a)s de muitas pessoas "bem" ( e nós a apertar o cinto), e foi para a FCUL com média de 18. E, já agora, terminou a licenciatura com média de 17. E eu só ajudei a apanhar as "minhocas" para a pesca. E continuo iliterato. Ou, talvez, surdo, por causa da idade.

Desidério Murcho disse...

Não é preciso usar um conceito para que um texto levante questões importantes. Mas, na verdade, o termo “pimba” exprime um conceito. Um conceito é apenas o significado de um predicado ou termo geral. Termos perfeitamente banais como “criança” exprimem um conceito, o conceito de criança, ao passo que termos singulares ou nomes próprios, como “Platão”, não exprimem conceito algum. Referi-me ao Houaiss não para argumentar que o termo exprime um conceito, mas para argumentar que o termo existe na língua portuguesa e para lhe explicar o significado, pois pareceu-me que estava a disputar a relevância do significado do termo para a minha nota.

O que TN quer dizer é que o termo não exprime um conceito importante em teoria da educação. Concordo plenamente. Mas por que razão haveria de exprimir? Perante a acusação de que o ME tem ao longo dos anos adoptado políticas educativas desastrosas, que provocam injustiças sociais e depauperam o património cognitivo do país, não faz muito sentido responder que tal acusação carece de conceitos tecnicamente relevantes em teoria da educação.

Os dados empíricos que me pede são óbvios e reconhecidos pelo próprio ministério da educação (ME): os níveis de insucesso escolar em Portugal são gritantes. E isto apesar de no ME tipicamente se confundir sucesso escolar como mera aprovação nas disciplinas — quando o ME fala em promover o sucesso escolar está geralmente apenas a tentar baixar as exigências para que menos estudantes reprovem; não está, geralmente, preocupado em que mais estudantes aprendam efectivamente.

Aliás, no “eduquês” nem se pode usar o termo “aprender” nem “ensinar” — tem de se usar o termo “processo de ensino/aprendizagem”. Um dos objectos do “eduquês” é, como o Newspeak do 1984 de Orwell: poder dizer coisas inaceitáveis de tal modo que se tornem aceitáveis. Com a nova terminologia podemos dizer que a escola não serve para ensinar — e safamo-nos com esta enormidade porque quem discordar parece tonto e é logo acusado de não perceber que na escola há “processos de ensino/aprendizagem”. Uma das características dos documentos do ME, aliás, é o abuso de barbarismos linguísticos deste género, “muletas” próprias de quase-iletrados, como é o caso das barras, além de uma estrutura gramatical opaca. Prosa clara, simples e directa é coisa que não rima com o ME. Talvez seja propositado, para dar “densidade teórica” a tais documentos. Mas em vez de lhe conferir densidade teórica apenas revela a falta de uma boa formação académica. Qualquer pessoa com boa formação académica sabe que a densidade teórica de um texto resulta da sofisticação das ideias e não do lodaçal lexical e gramatical. O artigo “Politics and the English Language”, de Orwell, devia ser de estudo obrigatório para os técnicos do ME.

Outro dado empírico importante é o facto de a mobilidade social associada aos cursos superiores ser mínima — quase todos os estudantes que frequentam cursos associados a alto estatuto social (e que por isso mesmo exigem prestações académicas muito elevadas) são oriundos de famílias que já pertencem a esse extracto social. Uma escola que só ensina quem vem ensinado de casa é uma escola que não faz falta.

As concepções de ensino do ministério são óbvias: desvalorização dos exames nacionais, achincalhamento dos programas das disciplinas, que são esvaziados de conteúdos científicos reconhecíveis como tal, transformação da escola num recreio. E os resultados também são óbvios: apesar de todo o facilitismo, apesar de ser hoje possível chegar ao 12.º ano praticamente analfabeto, o insucesso escolar é galopante.

Eurydice disse...

Caro Desidério: o seu post é claro e preciso. Explica eficazmente o seu ponto de vista.
Para além disso, põe o dedo na ferida certeiramente: se ensinarmos DE FACTO com rigor e precisão, podemos avaliar da mesma forma (com rigor e precisão) aquilo que se ensinou e verificar se foi APRENDIDO.
Ou seja: verificamos se os resultados previstos foram alcançados, e ainda podemos fazer autoavaliação e reformular o nosso trabalho tendo em conta essa mesma realidade e não apenas vagos conceitos mais ou menos bem sonantes.
Aí sim, estaremos de facto a contribuir para mais qualidade no ensino e melhores resultados.

Mas, claro, resta saber se esta é uma PRIORIDADE para este governo...

JFR disse...

A sua abordagem é muito pragmática. Por um lado define - quanto a mim, bem - o sujeito da educação mais prejudicado. Por outro, coloca o problema da educação, nos erros dos conteúdos programáticos. E, tem a virtude, de não ficar pelo diagnóstico - tão típico da alma lusitana. Apresenta caminhos. O da exigência. O da precisão. O da delimitação dos programas.

Parabéns.

José Oliveira disse...

O artigo de Desidério Murcho coloca em evidência, mais uma vez, o "tecnicismo cego" que se apoderou da educação.

A escola deve ser um local onde todos têm oportunidade de se melhorar (e de serem ajudados a melhorar) em todos os aspectos. Não pode ser mais uma barreira erguida aos mais desfavorecidos.

A concepção pragmatista da educação torna-se claramente insuficiente numa sociedade que advoga que o direito à educação é um direito fundamental de qualquer cidadão. Temos de educar para todos os aspectos da vida de um ser humano, não só para o lado produtivo/económico para onde nos querem levar algumas pessoas que defendem que só a ciência tem lugar na educação, tentando defender um positivismo indefensável.

O homem educável por objectivos ou por competências é um homem máquina, não é certamente o Homem da Declaração Universal dos Direitos do Homem, como diz Luís Manuel Bernardo. Além das Ciências da Educação, temos de começar a levar mais em conta os trabalhos e as críticas dos filósofos, pois o modelo de educação exclusivamente explicado pela ciência foi definitivamente posto de lado. Todos temos de trabalhar em conjunto, se queremos um futuro melhor.

José Oliveira
Tomar

Aluno do 4º ano da Licenciatura em Ensino Básico-1º Ciclo, a desenvolver um projecto final de curso na área da Filosofia da Educação.

TN disse...

Primeiro: "O que TN quer dizer é que o termo não exprime um conceito importante em teoria da educação". Na realidade não se trata de nada disso e, como certamente sabe, não é um bom princípio de debate colocar nas bocas dos outros coisas que não eles não disseram. O que eu quis dizer não tem nada a ver com teoria da educação: tem a ver com qualquer investigação científica. Claro que pode optar pela solução fácil de dizer que "criança" é um conceito - mas esse entendimento do que é um "conceito" impede a distinção entre a natureza dos conceitos de "criança" e, por exemplo, "aceleração", "anomia" ou "força".
A precisão conceptual a que me referia tem precisamente a ver com a distinção entre estes 2 tipos ou níveis de conceitos. Se considera que ela não é importante, bom... é consigo.
Segundo: o facto de os níveis de insucesso escolar serem enormes e de muitas vezes se confundir o sucesso escolar com a mera aprovação nas disciplinas (aqui concordo inteiramente consigo) não traduz necessária e automaticamente uma educação orientada para a reprodução social. Sugiro-lhe aliás a consulta de dados sobre a mobilidade social dos estudantes do ensino superior que pode encontrar, por exemplo, em http://www.cies.iscte.pt/destaques/documents/Estudantesdoensinosuperiortrajectosecontextosdevida.pdf
e que permitem ter uma leitura mais rica, menos simplista da realidade. Um problema que encontro na sua análise dos problemas que aborda no texto que deu origem a este pequeno debate é aliás uma excessiva simplificação da análise e das conclusões a que chega.
Terceiro: quanto ao "eduquês" de que fala não me vou alongar até porque não entendo bem a que se refere. Suspeito no entanto que se trate de mais um conceito que afinal não é um conceito, ou de um mero chavão que pode ser utilizado mais como arma de arremesso do que como instrumento para compreender o mundo.

Cumprimentos

Desidério Murcho disse...

Caro TN: Obrigado pelos seus comentários. Sim, simplifico. Numa nota de opinião com 4 parágrafos. Também o TN simplifica, nos seus comentários. E é sempre possível dizer que a realidade é mais rica e complexa. Geralmente, é, de facto.

Mas a ideia central não é refutada empiricamente por nenhum estudo: o ME anda há anos a nivelar por baixo, a esvaziar os conteúdos sérios das disciplinas, a tornar a escola cada vez mais pimba. A escola não serve para ensinar matemática e física, mas para doutrinar: ele é ecologia, ele é igualdade, ele é sensibilidade multicultural, etc. Até se devia passar a chamar Ministério da Propaganda ao ME. É o Admirável Mundo Novo de Huxley... que os estudantes nunca vão ler, ocupados que estão a ler regras de concursos televisivos.

E, a propósito, o conceito de escola e educação pimba não é meu, é de Jorge Buescu:

O que se aprende nas escolas é uma espécie de Matemática pimba (para subscritores)

TN disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
TN disse...

Caro Desidério: sinto que já lhe transmiti aquilo que de essencial tinha para lhe transmitir no seguimento da minha leitura do seu texto inicial. É certo que um artigo de opinião num blog não é o mesmo que um artigo numa revista da especialidade. No entanto, a minha intervenção teve como base precisamente o facto de o Desidério (em conjunto com os outros responsáveis pelo blog) se identificarem aqui com base nas suas especialidades disciplinares. É nessa medida que considero que uma maior clareza e sustentação das opiniões apresentadas seria vantajosa.
Aproveito para lhe desejar uma boa noite (são agora 00.04) e para lhe agradecer esta troca de perspectivas.

Desidério Murcho disse...

Caro TN: Obrigado pelo seu comentário. Mas minhas posições mais sofisticadas e fundamentadas estão nos livros e artigos que escrevi. Aqui trata-se de comunicar com o grande público e dar-lhe a conhecer o que o ME da educação anda a fazer há anos, impunemente. Não que eu acredite que todos os responsáveis ministeriais alinhem pelas mesmas ideias. Não me parece que a ministra, por exemplo, seja particularmente partidária do "eduquês" (até porque a educação não é a área dela). Contudo, os técnicos invisíveis, que são quem realmente produz os documentos e toma decisões, têm claramente aversão a exames externos, por exemplo, conteúdos escolares precisos, livros a sério, aulas a sério; tudo o que pretendem para a educação é brincadeiras e fantasias, muitas vezes com o argumento intolerável de que os filhos dos pobres, os ciganos e os negros, coitados, não podem ter qualquer interesse em física quântica, música erudita ou matemática a sério. E isto é muito preocupante.

Setora disse...

Trabalhando numa escola de subúrbio da cidade grande, tenho consciência de que a intenção dominante é a de manter aqueles alunos tão ignorantes quanto possível.
Passam pelo 1º ciclo e chegam em grande número ao 2º ciclo mal sabendo ler, escrever ou fazer um cálculo simples. E não têm qualquer problema do foro cognitivo embora muitos deles transportem o rótulo de "incapazes".
E no 2º ciclo prossegue-se na mesma senda. Escolhem-se os piores manuais porque são os mais fáceis e tem-se como lema que o fundamental é que os alunos saibam estar.
Por isso tantos acabam por mandar a escola à fava.

Desidério Murcho disse...

Setora, a mentalidade dos responsáveis ministeriais é muito simples: o pobre é estúpido. Podem envolver esta convicção ridícula em mantos de palavreado de "eduquês", mas esta é a realidade. Os pobres, os negros, os ciganos, os dos bairros pobres não podem interessar-se pela música erudita, nem pela física quântica, nem pela filosofia. Essas coisas não são para eles, são só para os filhos de sangue azul... os filhos dos técnicos ministeriais, pois então. Estes, por mais genuínas carências cognitivas que tenham, andam nas melhores escolas e têm acesso à verdadeira cultura. Para os outros, é o jogo do pau a fingir-se de escola integradora.

O Ministério da Educação anda a fazer isto há anos, impunemente, porque disfarça as coisas num discurso falsamente científico, baseado nas piores especulações, muitas vezes já refutadas há 30 anos, da teoria da educação (que em Portugal significativamente se chama "ciências da educação", para dar mais autoridade). Os melhores especialistas em ciências da educação andam a denunciar esta fraude há anos, mas o ministério não está interessado em ouvi-los.

Desidério Murcho disse...

Já agora, repare-se na inanidade que é pensar que o conceito de criança é radicalmente diferente do conceito físico de massa, por exemplo. Este é o tipo de mentalidade formalista que já denunciei nos meus livros e artigos. Para se dar ares de cientificidade, é preciso usar "palavras caras". Mas não podemos chamar-lhes palavras, porque isso é demasiado corriqueiro. Então, usamos o termo "conceito", sem sequer saber bem que raio é tal coisa.

Pois bem, enquanto conceito, tanto o conceito de criança ou de lama como o conceito físico de massa ou de velocidade são conceitos. A diferença é que os primeiros conceitos não têm a precisão e sofisticação teórica dos segundos. Nada mais.

Agora o cúmulo: consulte-se o programa de filosofia do secundário, e veja-se se os conceitos que lá são apresentados como conceitos filosóficos o são de facto. Muitos deles são apenas conceitos corriqueiros. E o mesmo acontece com os programas de matemática, que foram esvaziados de conceitos matemáticos importantes, tendo-se transformado em matemática pimba, como denuncia o Jorge. Esta é a realidade.

E não é aparência de cientificidade das palavras caras de quem é responsável pela miséria que temos no ensino que nos deve fazer pensar o contrário. A maior parte dos documentos do ministério são conceptualmente confusos, vácuos e tolos, pura e simplesmente, mas sob a aparência de grande cientificidade. Leia-se o referido programa de filosofia ou de matemática aplicada às ciências sociais e tire-se conclusões.

TN disse...

Diz Desidério Murcho (referindo-se a um comentário meu): «Já agora, repare-se na inanidade que é pensar que o conceito de criança é radicalmente diferente do conceito físico de massa, por exemplo». Diz Desidério Murcho mais adiante: «Pois bem, enquanto conceito, tanto o conceito de criança ou de lama como o conceito físico de massa ou de velocidade são conceitos. A diferença é que os primeiros conceitos não têm a precisão e sofisticação teórica dos segundos». Parece o colega reconhecer, então, que sempre há alguma diferença entre os conceitos...
Quanto a mim, havia dito o seguinte, referindo-me à precisão conceptual necessária aos trabalhos de investigação científica: «Claro que pode optar pela solução fácil de dizer que "criança" é um conceito - mas esse entendimento do que é um "conceito" impede a distinção entre a natureza dos conceitos de "criança" e, por exemplo, "aceleração", "anomia" ou "força".
A precisão conceptual a que me referia tem precisamente a ver com a distinção entre estes 2 tipos ou níveis de conceitos». No fundo, o caro colega parece dar-me razão, pois aquilo que eu argumentava era precisamente a diferença de "precisão e sofisticação teórica". Com efeito, o termo "força" dificilmente significa o mesmo numa investigação em física e numa conversa de café.
O que lamento nisto é que o colega se tenha referido ao meu argumento como uma "inanidade". Esse tipo de afirmação dirigida a quem comenta o seu blog é extremamente desagradável - para não dizer mal-educada. Ainda para mais porque tivemos oportunidade de debater abertamente as nossas divergências (vide comentários acima). Tenho pena que não tenha tido a coragem suficiente para se referir ao meu comentário como uma "inanidade" no momento da discussão (o que poderia ser compreensível no eventual "calor" do debate), nem a educação necessária para se abster de se lhe referir dessa forma posteriormente.
Escusa de me responder. Já foi desagradável comigo uma vez, razão pela qual não voltarei a este vosso blog.

Desidério Murcho disse...

TN, a palavra "inanidade" não é ofensiva, nem esse era o meu desejo. Em qualquer caso, peço desculpa. Até me fez ir ao dicionário, homem. "Inanidade" apenas quer dizer "vacuidade".

Não estou a dizer mais do que o próprio TN disse do meu post -- que era vácuo por não usar conceitos sofisticados, o que continuo a pensar que é desculpa de mau pagador e apenas uma forma de fugir ao debate.

Dê-me exemplos concretos de acções do ministério da educação que mostrem um verdadeiro apreço pelo conhecimento, pelos livros, pelo estudo sério; sobretudo, exemplos relacionados com directrizes curriculares, como os programas das disciplinas, que são o que tem maior influência directa na qualidade do ensino. Não consegue dar-me tais exemplos porque eles não existem.

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