Publicado no "Jornal de Letras", a meu pedido foi-me me enviado um novo texto de Eugénio Lisboa, crítico literário, que agradeço e reproduzo com o prazer de sempre:
Para o Luis Amorim de Sousa (Eugénio Lisboa)
Passaram, em
27 de Agosto, dez anos sobre a morte, em Londres, do poeta Alberto de Lacerda,
encontrado caído à porta do seu minúsculo apartamento, em Battersea.
Assinalando a efeméride, encontra-se, neste momento, na Biblioteca Nacional,
uma bela e compreensiva exposição dedicada ao grande poeta de Oferenda.
Exílio é como se intitula um dos mais belos
livros de Alberto de Lacerda e um longo exílio foi a sua vida, desde que, em
1951, deixou Lisboa, a caminho de Londres, onde, para sempre, se estabeleceria.
Nascido em
1928, na Ilha de Moçambique – “festa de luz de mar tranquilo” –, estudante
pouco convicto do liceu em Lourenço Marques, partiria em 1946 para Lisboa, com
os estudos liceais mal concluídos e pior amanhados. Cinco anos de vida mais ou
menos boémia na capital portuguesa, sem concluir estudos que o aparelhassem
para uma entrada na universidade, Alberto de Lacerda entregou-se, por outro
lado, a leituras intensivas e a um convívio literário apaixonado com vultos de
proa do meio literário lisboeta. Ao fim de cinco anos, cansado, desiludido,
magoado, partiu para Londres, sem trabalho certo garantido, aí vivendo, no meio
de grandes dificuldades financeiras, de colaborações e alguma locução na BBC,
mas sem vínculo certo.
Guloso de
conhecimento e de diversidade, andou, em 1959 e 1960, pelo Brasil, onde atou
laços de amizade perene, com figuras como Manuel Bandeira e Cecília Meireles.
Em 1967 foi
ensinar para a Universidade de Austin, no Texas, uma experiência de fundo
encantamento e de enorme produtividade poética. Terminado o contrato, regressou
a Londres, mas, em 1972, foi contratado pela Universidade de Boston e aí
ensinou Poética até se reformar.
Viajante
incansável, descobridor de mundos e minúcias que a outros escapavam, Alberto de
Lacerda conhecia Londres como ninguém, sendo, da cidade que considerava “o
centro da liberdade”, um admirável e apaixonado cicerone.
Amigo e
correspondente de alguns grandes da cultura universal, Alberto de Lacerda foi
considerado por René Char uma das quinze vozes universais da poesia de hoje.
Co-fundador da Távola Redonda, com um
número dos Cadernos de Poesia
inteiramente dedicado à sua poesia e o seu livro (bilingue) 77 Poems saudado encomiasticamente no Spectator e no Times Literary Supplement, com mais poemas traduzidos fora de
Portugal do que qualquer poeta português, genial animador cultural e aliciante
conversador, Alberto de Lacerda, uma das mais belas vozes da poesia portuguesa,
dono de um discurso poético a um tempo intenso e castigado – consegue, no
entanto, o prodígio de ser actualmente um dos poetas mais invisíveis e
desdenhados, no universo pícaro da nossa república das letras.
Disse já,
algures, que o autor de Palácio “é um
poeta que celebra, em cada curva do seu discurso, o esplendor da língua e o
fulgor da vida.” O poema que, no livro Exílio,
dedicou à língua portuguesa é uma das mais belas homenagens prestadas à língua
de Camões e um poema onde todos os excessos são permitidos: “Esta língua que eu
amo / Com seu bárbaro lanho / Seu mel / Seu helénico sal / E azeitona / Esta
limpidez / Que se nimba / De surda / Quanta vez / Esta maravilha /
Assassinadíssima / Por quase todos que a falam / Este requebro / Esta ânfora /
Cantante / Esta máscula espada / Graciosíssima / Capaz de brandir os caminhos
todos / De todos os ares / De todas as danças / Esta voz / Esta língua /
Soberba / Capaz de todas as cores / Todos os riscos / De expressão / (E ganha
sempre a partida) / Esta língua portuguesa / Capaz de tudo / Como uma mulher
realmente / Apaixonada / Esta língua / É minha Índia constante / Minha núpcia
ininterrupta / Meu amor para sempre / Minha libertinagem / Minha eterna /
Virgindade”.
São de notar, neste extraordinário poema, os excessos afirmativos, os superlativos absolutos simples (fazendo
cada um, só por si, um verso: “Assassinadíssima”, “Graciosíssima”), os
adjectivos intensos: “soberba”, “máscula”. Observei algures que, “na sua poesia
há sempre uma sedutora tensão entre o excesso apaixonado e o mais rigoroso
governo dos constrangimentos que a grande arte clássica recomenda.” Dizia Gide
que o classicismo – o verdadeiramente vital – é apenas um romantismo
domesticado. A poesia de Alberto de Lacerda ilustra, como poucas, esta
asserção: vigorosamente romântica e severamente travada por uma mão que segura, com sábia firmeza, o leme. De tudo
se alimentava a sua poesia: tanto das “maravilhas” como dos “horrores” da vida.
Alimentava-se também, por certo, da sua prodigiosa e vivíssima cultura,
municiada por toda uma vida de leituras e frequentação de museus, galerias,
teatros, salas de concerto e de uma voracidade de coleccionador tão insaciável
quão desprovido de substanciais meios financeiros. Do pouco soube contudo tirar
muito, numa obstinação sublime e quase roçando o limiar da loucura.
Disse atrás
que o Alberto era um aliciante conversador: nele, a enorme erudição não era
árida, pelo contrário, era profundamente vivida, amoravelmente perscrutada e
intensamente doada aos seus ouvintes. A sua conversa era um continuado
fascínio, a que não faltava o toque de uma acerada e pessoalíssima ironia. Foi
mesmo este seu dom que me fez surgir um dia a ideia de propor ao Presidente do
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, o Professor Fernando de Mello Moser,
a criação de um lugar de super-leitor de literatura e cultura portuguesa, nas
universidades estrangeiras onde houvesse estudos portugueses. E que esse lugar
fosse desempenhado pelo autor de Oferenda.
Passaria períodos de residência de dois ou três meses em cada uma de diversas
universidades, que até não teriam de ser só inglesas. O notabilíssimo animador
e sedutor cultural que era o Alberto, por certo daria aos leitorados onde
periodicamente residisse um fulgor, um colorido, uma vitalidade, uma sedução,
uma aura que o vulgar leitor sediado na universidade não estaria em condições
de propiciar. Moser foi sensível à minha sugestão e prometeu tudo fazer para a
tornar uma realidade. Infelizmente, viria a falecer pouco depois da nossa
conversa e não voltei a ter ânimo para retomar, com outro, o mesmo projecto.
Na vida,
como na obra, Alberto visou sempre a beleza, a liberdade, a simplicidade
recheada de conteúdo, a esbelteza. Num texto publicado no Notícias, de Lourenço Marques, e falando da obra do escultor
Giacometti, o poeta escrevia: “Eu esperava coisas ainda mais sublimes, simplicidades
ainda mais misteriosas.” Alguns meses antes, no mesmo jornal, escrevera: “É
preciso redescobrir a elegância. Mas por dentro.” É realmente preciso. Mas faz
também parte da mais elementar elegância não fingirmos que não damos por um
grande poeta.