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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Confiar, mas nem tanto



Por estes dias li, de Hernán Diáz, Confiança (Livro do Brasil, 2022). Não estava à espera de encontrar muita química, mas por acaso encontrei mais do que estava à espera.

Em geral não ligo a spoilers, mas neste caso acho que podem ser importantes e por isso não vou fazer um resumo da história. Eu, pela minha parte, como leio muitas vezes por amostragem, perdi uma parte do sentido do livro, inicialmente. Mas depois de voltar atrás, de ler as críticas e resumos, tudo de repente fez sentido. E foi bastante interessante.

Sobre a química. Um dos personagens era o acionista maioritário da Haber pharmaceuticals, uma empresa fictícia que toma emprestado o nome de Fritz Haber e que tem, com ele, como prioridade "o desenvolvimento de fármacos eficazes para o largo espetro de doenças psiquiátricas que até aqui eram tratadas com pouco mais do que morfina, hidrato de cloral, brometo de potássio e barbital." Ora isto passa-se nos anos 1920, e embora fosse verdade que só havia aquilo, as empresas farmacêuticas não tinham estas prioridades. Não se pensava num fármaco "mágico" para as doenças psiquiátricas.  O primeiro tratamento razoável para doenças mentais vai aparecer nos anos 1950 com a clorpromazina. Curiosamente, isto passa-se na primeira parte do livro e de alguma forma forma pode atribuir-se aos pequenos erros que os livros vão acumulando, tanto mais que se essa parte do livro é atribuido a outro autor.  

Tanto a principal personagem, como a sua mulher, trabalham com  "médicos e químicos farmacêuticos tendo em vista a descoberta de tratamentos mais eficazes contra os distúrbios psiquiátricos", volta a repetir-se. Pouco depois, sabe-se que è mulher cuja saúde mental se deteriora. Vai para a Suíça onde  "um estudo pioneiro de sais de lítio, que a Haber Pharmaceutical seguia com interesse" é de alguma forma parado.

É aqui que a química do livro se torna mais interessante, na minha opinião. O tratamento revolucionário proposto para a mulher do magnata e que estava a ser desenvolvido pela farmacêutica era convulsivo, usando injeções de pentilenotetrazol. É pouco conhecido. mas a ideia das terapias convulsivas surgiu nesta altura com compostos que provocavam convulsões. Só depois evoluiu para a terapia eletroconvulsiva (primeiro foi química com fármacos e depois física, com eletricidade). Tudo isto era bastante bárbaro, embora em nome da ciência, e a mulher acabou por morrer numa dessas sessões convulsivas. Deve notar-se que hoje em dia tem havido um recrudescimento das terapias eletroconvulsivas, mas não só as correntes são muito mais baixas como é feito com o paciente inconsciente. De qualquer forma continua a haver ceticismo em relação a essas terapias. E embora de forma dramática, o livro acaba por referir os vários aspetos do início da terapia.

Afinal dá-se conta de que a mulher não morreu do tratamento psiquiátrico (isto não é um spoiler, mas um teaser!) mas de cancro. Não se diz qual era o cancro, mas há várias referências à morfina e a Paracelso. O livro mostra uma trama muito mais complexa que é um retrato diferente de uma época que, através da visão de diferentes personagens, nos faz pensar na vida e na literatura. 

sábado, 28 de janeiro de 2023

Reflexões sobre uma palestra acerca de química e literatura realizada para duas turmas de humanidades


Dei uma palestra sobre química e literatura numa escola e pedi aos alunos e aos seus professores (duas turmas do 12º ano de humanidades) que escrevessem, de forma anónima, num papel branco que lhes dei, os livros que estavam a ler, ou sobre os quais queriam que eu falasse, ou mesmo que indicassem obras por outra razão. Pretendia escrever num quadro os resultados, mas, como era numa biblioteca não havia um disponível. Assim, comentei alguns livros, tal como o facto de não conhecer vários deles, mas acabei por não os usar tanto como queria. Vou tentar fazê-lo agora. 

Dos quarenta e dois papéis que recebi, quase todos indicavam livros diferentes, com poucas exceções (o que já é bastante interessante): a maior quantidade de repetições correspondeu a três pessoas que referiram o “Orgulho e preconceito” da Jane Austen. Quatro pessoas escreveram “Primo Levi”, mas só duas indicaram livros: “Se isto é um homem” e “Assim foi Auschwitz”.  E, finalmente, duas pessoas referiram “Os Filhos da droga” - uma destas pessoas escreveu ter sido “o único livro que leu até ao fim”. Curiosamente, era algo sobre o qual já estava a pensar falar. Podemos não ler até ao fim, saltar páginas, voltar atrás, não ler de todo, não concordar com o que está escrito, duvidar ou corrigir, ver os filmes, indagar sobre as vidas dos autores e as sociedades em que eles viveram, ler os resumos e comentários, mas … se quisermos mesmo perceber o livro, e ter a experiência da obra, temos de ler o original. Comentei, em geral, que os livros revelam as sociedades do tempo em que foram escritos e, claro, os sentimentos das pessoas, e que tudo isso está relacionado com a química. No caso particular de Primo Levi, temos outras coisa: este foi químico e muitos dos seus livros revelam isso, em particular será essa atividade que lhe vai salvar a vida em Auschwitz.   

Deste conjunto de mais de quarenta livros, vinte e seis eu já tinha lido ou folheado (apresentados aqui sem qualquer ordem): “As velas ardem até ao fim” de Sándor Márai (comentei este livro, mas não tenho aqui tempo para referir tudo), “Veronika decide morrer” e “O Alquimista” de Paulo Coelho, “O triunfo dos porcos” de George Orwell, “Fahrenheit 451” de Ray Badbury (este também comentei, mas apenas sobre o título que é a temperatura a que o papel arde espontaneamente, que em Celcius seria cerca de duzentos graus) e “O banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa. No livro “As intermitências da morte” comentei como a literatura nos ajuda a perceber a vida e  como a imortalidade poderia ser uma maldição (nesse contexto, acabei por referir os livros de vampiros e uma aluna referiu a série “Crepúsculo”) e “O memorial do convento“ (que era o único livro que era referido na palestra), de José Saramago. Achei interessante referirem “O principezinho” de Antoine de Saint-Exupéry, estando ainda por cima o papel muito amarfanhado (pensei logo numa explicação - uma das coisas que comentei foi exatamente essa nossa apetência por narrativas), a “Odisseia” de Homero e “O perfume” de Patrick Süskind foram também referidos e são dois livros que envolvem química como referi em “Jardins de Cristais”. Foram também indicados “Mulherzinhas” de Luisa May Alcott, “O grande Gatsby” de Scott Fitzgerald, “O amor de perdição” de Camilo Castelo Branco (este bastante comentado em “Jardins de Cristais”, mas a propósito deste livro referi a questão dos audiobooks – há uma versão completa na Librivox - e outras formas de “ler”, até por haver um aluno que disse não gostar de ler). Finalmente, foram indicados “A crónica dos bons malandros” de Mário Zambujal e “O pintor debaixo do lava-loiça” de Afonso Cruz. 

Como sempre me acontece nestes casos (imagino que seja sempre assim, pois é impossível ler tudo o que se publica), havia livros que eu não conhecia, neste caso foram quase metade, dezassete: “O telefone preto & outras histórias” com quinze contos fantásticos e de terror de Joe Hill (diz a Internet), “O psicopata mora ao lado” de uma autora neurologista, Ana Beatriz Barbosa Silva (diz também a Internet), “O Assassinato de Sócrates” de Marcos Chicot, “The Spanish love deception” de Elena Armas, “O Vendedor de passados” de José Eduardo Agualusa (este livro conhecia, mas por acaso nunca o folheei). Houve uma pessoa que indicou dois livros: “Viver depois de ti” de Jojo Moyes e “A arte subtil de Saber dizer que se f*da” de  Mark Manson. Continuando, referiram o “O Espião Perfeito - Richard Sorge: o Melhor Agente Secreto de Estaline” de Owen Matthews, “A distância entre nós” de Mikki Daughtry, Rachel Lippincott e Tobias Iaconis, “Como se fôssemos vilões” de  M. L. Rio, “A devoção do suspeito X” de Keigo Higashino, “A Minha vida é um filme” de Paula Pimenta, “Outros jeitos de usar a boca” de Rupi Kaur, livro de poemas sobre a sobrevivência, a experiência de violência, o abuso, o amor, a perda e a feminilidade (diz a Internet) e “Um Gato em Tóquio” de Nick Bradley. Foram também referidos “Nick e Charlie” de Alice Oseman e “Vermelho, Branco e Sangue Azul” de Casey McQuiston que envolvem relações amorosas entre homens. Finalmente, referiram “Estoico todos os dias : 366 reflexões sobre sabedoria, perseverança e arte de viver”, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman, livro de pérolas inspiradores de Séneca, Epicteto e Marco Aurélio e “As 48 leis do poder” de Robert Greene e Joost Elffers. Trata-se em boa parte de novidades e de best-sellers, tratando uma parte de temas complexos, além de alguns livros de autoajuda ou entendimento do mundo (embora toda a literatura acabe por tratar desse aspeto). 

Em qualquer dos casos estive na presença de uma amostra de pessoas que leem e que têm com certeza opiniões sobre o mundo. Acho que não nos podemos queixar. Fiquei bastante interessado em “A distância entre nós” que trata de um romance entre duas pessoas com fibrose cística. Seria interessante, penso eu, perceber como a evolução da ciência melhorou a qualidade de vida destas pessoas e modificou os seus quotidianos. 

Não vou falar muito da palestra que constava de algumas reflexões sobre as narrativas e a ciência e a tecnologia, em particular as de natureza química. Começava com um livro que estou a ler sobre as mulheres na ciência, que, não sendo de ficção, começa de uma forma narrativa bastante intimista e de como isso é eficaz. Seguia depois para o exemplo do "Fiel Jardineiro" de John le Carré (que um aluno conhecia) e que servia para discutir as tensões entre a realidade e a ficção, assim com a evolução dos testes clínicos de moléculas usadas como medicamentos. Comentava também os Lusíadas de Camões e as moléculas associadas. Seguia depois para os aspetos tecnológicos e químicos no século XIX e XX e a sua relação com os livros de Eça de Queirós apresentados nas aulas de Português (Os "Maias" e a "Ilustre Casa de Ramires"). Referia alguns aspetos de "A tragédia da Rua das Flores" e do espírito crítico que devemos ter ao ler e terminava com dois livros de Saramago ("O memorial do Convento" e "O ano da morte de Ricardo Reis").  

Li há pouco tempo que "tudo é estágio". Sim, eu considero que também aprendi bastante com esta palestra.

domingo, 25 de dezembro de 2022

CD a “A Química do Amor”



[Escrevi esta recensão para o Boletim da Sociedade Portuguesa da Química (todos os artigos estão online). Mas como esta pode demorar algum tempo a aparecer fica aqui o que escrevi e o link para obter o CD.]

“Há química em toda parte” é o título da primeira canção do CD, “A Química do Amor”, do grupo “Encerrado para Obras”. Este reúne uma parte das canções do espetáculo “Quimicomic” estreado em 2019, Ano Internacional da Tabela Periódica. São sete canções bem humoradas, com Letras e Música de David Cruz, cantadas por este e Cláudia Santos, dirigidas por João Balão e com arranjos muito interessantes e divertidos de David Cruz e João Balão. 

As seis primeiras canções são do espetáculo e a sétima foi composta para este disco e pensada para professores e alunos que queiram decorar a Tabela Periódica com mnemónicas divertidas. Estamos certos de que este CD e as suas músicas terão interesse não só para os professores de Química e para os amantes desta ciência, mas para todos, dada a qualidade e originalidade do resultado.  

As canções são muito divertidas e seguem a peça de teatro, onde são realizadas várias demonstrações científicas, em particular de Química. Lino Alcalino, um cientista distraído e bastante cómico, encontra o grande amor da sua vida em Fiona Fosfato, que veio do Brasil e por isso canta com sotaque. A primeira canção começa com Fiona a limpar a sujidade originada pelas experiências de Lino, mas rapidamente evolui para um dueto que é também uma análise do mundo centrada na Química. Naturalmente, há alguns atritos entre Fiona e Lino, os quais fazem parte da trama da peça e originam novas canções. Em algumas alturas, Fiona acusa Lino de ser “ácido,” mas isso é que ele não é, diz ele! O seu nome é “Lino Alcalino” e responde-lhe com um fado também muito engraçado sobre esse aspeto do pH.  

A canção seguinte, a qual dá nome ao disco, “A química do amor,” é também muito bem humorada e, de certa forma, bastante profunda. O resultado, envolvendo os neurotransmissores noradrenalina, dopamina e seritonina e as proteínas oxitocina e vasopressina e é também bastante interessante em termos musicais. 

Segue-se um “lamento” de Fiona por Lino lhe ligar menos de que esta esperaria, pois Lino distrai-se com as suas experiências: “Onde está a química do amor?” e a “Dança da couve roxa” onde Fiona mostra  que também sabe Química. Esta canção é especialmente interessante, pois procura contrariar alguns dos estereótipos da peça de teatro (os quais, sendo usados para potenciar o efeito cómico, podem acabar por contribuir tanto para o descrédito como para o reforço social destes). Assim, nunca é demais reafirmar a igualdade das mulheres perante a ciência.

As canções do espetáculo terminam com “Criogénica” que dá conta de uma discussão mais grave entre os dois. A letra é também muito divertida. É especialmente engraçado o verso “Você é mais fria que zero absoluto.” Ora os autores e os cientistas, assim como o público em geral, sabem (ou deveriam ser) que isso não é possível, mas as relações humanas envolvem muitas vezes estas impossibilidades e paradoxos. Felizmente, no espetáculo tudo acaba bem. É a “Química do amor” que é muito mais do que oxitocina, claro, mas também passa por esta molécula.

Finalmente, como referi, a última música “O Alfabeto do Universo”, apresenta várias mnemónicas divertidas para a Tabela Periódica e tem a particularidade de contar na orquestração com uma banda de música, a “Sociedade Filarmónica Lousanense.” 

Em resumo, é um CD muito interessante, original e bem humorado, de um espetáculo bem conseguido que vale a pena rever e ouvir.

(Para obter o CD pode usar-se https://encerradoparaobras.net/ que tem um formulário para esse efeito)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Livro “Lições de Química”


“Lições de Química” é um livro publicado pela ASA em 2022. Trata-se de tragicomédia negra, mas também muito luminosa e séria. Tem a química como mote, mas trata de relações humanas e é, dessa forma, para todos os leitores - não apenas para os aficionados da química ou para os que sabem desta ciência. (Deste livro, está a ser feita uma série televisiva que estreará em 2023). 

Curiosamente, se pensarmos bem, poderem existir escolas para jovens feiticeiros ou haver relações amorosas e sociais entre vampiros e humanos é tão improvável como uma cientistas química ter um programa culinário de sucesso na televisão. Mas, curiosamente, esta última possibilidade, embora fosse infinitamente mais provável, também não existe que eu saiba. Isso tem a ver com a forma como está organizado o mundo que nos rodeia. O que é uma pena pois assim estamos a deitar fora uma boa parte da cultura e literacia que, ainda por cima, é interessante e libertadora. 

E, sempre que mostrei a capa, havia alguma retração das pessoas. “Química?!” - diziam, ou pensavam! Um professor de literatura, que conheço, disse a propósitos de “Os Lusíadas” que esse tipo de retração das pessoas revela "um trauma." De facto, quando dizemos que somos químicos, a maioria das pessoas ou fica calada ou diz que “nunca percebeu nada de química.” Ora não é razão para tal. O livro é muito divertido, sendo que ao ao mesmo tempo é muito sério, como já referi. Com bastante humor negro refere as atitudes machistas e conservadoras da sociedade americana dos anos 1950, de que ainda hoje temos reflexos. Mas tem, além disso, de tudo um pouco: pessoas más, pessoas boas e pessoas assim-assim. Tem remadores que se tornaram obstetras ou cientistas, tem cientistas medíocres, cientistas abusadores e prepotentes, jornalistas que se redimem, cães sábios, filhas acutilantes, violência doméstica, eclesiásticos que não acreditam em Deus ou que são cínicos. É uma girândola de possibilidades e personagens que tem como cenário a sociedade americana da altura e a química. Vale a pena referir de novo o conservadorismo e o machismo, pois há duas personagem (uma delas a heroína) que não acabam o doutoramento devido a assédio sexual. Talvez não seja assim agora, mas li noutro livro que muitas internas de medicina passavam por esse tipo de problemas. 

Sobre as carreiras na química. É, em geral, um epifenómeno; não é dinástico como o direito ou a medicina. Contam-se pelos dedos os casos, que conheço, de filhos que seguiram as carreiras dos pais na química. Uma coisa interessante, é que o livro também retrata de forma indireta, que esses epifenómenos vêm, muitas vezes, das partes menos favorecidas das sociedades. Por exemplo, uma personagem do livro e que seria candidata ao prémio Nobel (se não tivesse morrido) vem de um lar para rapazes. A heroína, por outro lado vem uma família problemática. Vou referir, nesse contexto, dois Nobel, Frederick Sanger, que teve dois prémios e só foi para a universidade devido a ter bolsa. Sendo que o mesmo aconteceu com Robert Burns Woodward.

Os leitores já perceberam que eu não contei muito da história. Mas esta está cheia de partes cómicas, de algumas que são tragicómicas e outras que são mesmo trágicas. E, há momentos delirantes, como a árvore genealógica que tem bolotas e inclui, entre outras mulheres, Amelia Earhart, a aviadora solitária que desapareceu nos anos 1930 e é um ícone da independênca feminina (Mad, a filha da heroína, Elizabeth Zott, refere que os humanos são 99% iguais geneticamente, mas Elizabeth, sempre atenta a esses detalhes, corrige: 99,9% diz ela). O livro, tem, apresar de tudo, um final mais ou menos feliz. Gostei. 

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

lançamento do CD "A Química do Amor", no dia 27 de novembro, às 16h30, no Momo - Museu do Circo, em Foz de Arouce

Recebemos a seguinte informação que está disponível Direção-Geral das Artes:

"A companhia Encerrado para Obras vai lançar o CD "A Química do Amor", no dia 27 de novembro, às 16h30, no Momo - Museu do Circo, em Foz de Arouce, com o apoio da Direção-Geral das Artes.

O disco reúne as canções do espetáculo de teatro "Quimicomic". Ao todo, são sete canções que abordam diversos temas da Química, tais como as reações  ácido-base, a tabela periódica, os estados físicos da matéria, ou ainda as hormonas, tópico principal da canção A Química do Amor, tema musical que dá o nome ao disco.

A sessão de apresentação do CD inclui um concerto com os músicos Cláudia Santos, David Cruz e João Balão. Inclui, ainda, a projeção de um vídeo com algumas cenas do espetáculo "Quimicomic" e o videoclipe da canção "O Alfabeto do Universo", que será disponibilizado livremente na internet, a partir de dezembro.

Todas as canções têm letra e música de David Cruz, diretor da Encerrado para Obras. A direção musical do disco está a cargo do músico multi-instrumentista João Balão. Participam no trabalho  um total de nove músicos profissionais oriundos de várias regiões do país. Destaque para a participação da Sociedade Filarmónica Lousanense no tema "O Alfabeto do Universo".

Apoios: Direção-Geral das Artes, Câmara Municipal da Lousã e Companhia Marimbondo"

quinta-feira, 7 de julho de 2022

"Oito grandes lições da Natureza” de Gary Ferguson


O livro de Gary Ferguson, “Oito grandes lições da Natureza”, publicado recentemente, é muito bom, pelas grandes ideias que contém e pela inspiração que encerra. É que “nós somos Natureza,” como o autor refere. Parece óbvio, mas nem sempre é bem entendido. Eu diria mais: o que fazemos e o que produzimos é também Natureza. 

Este livro, refere os muitos estudos que evidenciam que a ligação à Natureza é muito importante para a felicidade, saúde e cura. A primeira “lição” é o mistério. Cita Albert Sweitzer “à medida que adquirimos mais conhecimento, as coisas não se tornam mais compreensíveis mas sim mais misteriosas.” Dá vários exemplos: as aranhas que “voam” aproveitando o efeito do gradiente elétrico da atmosfera na sua seda lançada ao ar; os espaços vazios que somos feitos (entre os núcleos e a nuvem eletrónica, não há nada) ; não tocarmos verdadeiramente o chão (devido à repulsão entre átomos); a comunicação química entre as plantas; e muitos outros. Queria chamar a atenção para que muitos dos exemplos têm lapsos e aproximações, mas isso não invalida em nada a tese do livro. Só lhe acrescenta mais encanto e mistério. Um exemplo disto é a descrição da Natureza com fonte de medicamentos. O autor refere 40% da farmácia mundial (são estes o números dos últimos vinte anos – confirmo com base na literatura) e dá alguns exemplos. Mas, infelizmente, alguns são aproximados ou incorretos. Dou um exemplo: a aspirina não é extraída do salgueiro branco. O que é extraído é o ácido salicílico que com uma reação simples dá o ácido acetilsalicílico. Mas repito, isso não interessa para a tese do livro.  Explico. 40%… é espantoso, não é? Mas poder-se-ia perguntar então onde estão os restantes 60%? É isso que aumenta o encanto da ideia. Embora a Natureza seja uma fonte sempre promissora de novos medicamentos, esses 60% não são sequer inspirados pelos seres vivos ou pela Natureza “clássica.” São criações humanas, usando bases de dados de moléculas, computadores, conhecimentos sobre os alvos terapêuticos, síntese química, e muito mais coisas que a química medicinal inventou. Isso não é maravilhoso? Não aumenta o encanto? Eu acho que sim.

Também achei interessante a perspetiva. Por exemplo, refere, "um homem brilhante, chamado Claude Bernard, o fundador da Medicina Experimental, mas que ignorava a crueldade que infligia aos animais. A sua mulher fartou-se e levou consigo os filhos e mais tarde viria a fundar um santuário para cães perdidos e sem-abrigo – os mesmos que o marido apanhava e torturava nas suas experiências." A história é muito próxima da realidade, mas raramente é contada assim. Entretanto, não sabemos se Bernard também tinha pena dos animais, mas pensava obter algo maior. Sim, obteve. Agora é fácil dizer que “ainda bem” que o fez, pois já está feito e deu frutos. Mas se não desse? Mais à frente cita  Temple Grandim, cientista de animais: “Penso que a utilização de animais para obter alimentos é algo ético” - diz Grandim - “Mas temos de o fazer de certa maneira. Dar-lhes uma vida decente e morte indolor. Devemos respeito ao animal”. Hoje em dia usamos suplementos nos alimentos ditos veganos. Já podemos não comer aminais.  E já podemos ter comida sintética. E tudo isto é também Natureza. O que pode parecer paradoxal, afinal, mas não é.

Um livro excelente, mas não devemos concentrar-nos nos pormenores nem ficar paralisados com os paradoxos, mas sim beber das grandes ideias. E sim, abraçar a Natureza e aprender com as suas lições.  

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Sustentabilidade, fim do mundo e mais além

[Este texto serviu de apoio (mas não foi lido) para a palestra com o mesmo nome no Rómulo dia 7 de junho às 18 horas. Por ser um texto de apoio, tem algumas omissões, mas mesmo assim acho que vale a pena partilhá-lo, uma vez que a sessão aparentemente não foi gravada] 

Ulrich Becke, o autor do influente livro “A sociedade do risco” escreveu um livro perto da sua morte que ecoa a famosa frase de Holderlin “onde cresce o perigo, nasce a salvação”. Dir-se-ia, que isto não é comum! As pessoas costumam ficar mais pessimistas com a idade. Mas agora vi que  Martin Rees fez algo parecido em “O futuro da Humanidade”.  Depois de ter escrito em 2003 um livro em que estimava que a nossa probabilidade de sobreviver como espécie no próximo século era de 50%, este livro mais otimista, tecno-otisma como o autor diz, é muito bem vindo.     

Queria fazer da sessão, não um sermão em que vos tentava convencer, mas um diálogo em que tentava mostrar os vários pontos de vista. Não quero convencer-vos mas contribuir para a atitude científica. 

Vou-vos contar uma anedota apócrifa de Mário Molina, prémio Nobel da Química pela descoberta das reações do ozono com os CFC. Peço desculpa, mas passa-se num tempo em que as mulheres ficavam em casa e os maridos trabalhavam na rua. A mulher de Molina perguntou-lhe quando ele chegou a casa: “Querido! como correu o dia de trabalho?” E este respondeu: “Tenho boas e más notícias. As boas é que descobrimos uma coisa fantástica. A má notícia é que o mundo vai acabar.” Não acabou por isto, mas passa a vida a poder “acabar.”

Temos de falar dos problemas como se os pudéssemos resolver. Contribuir para a solução. Ficar de braços cruzados não é opção. Temos de analisar os processos nas suas várias dimensões. Ver o ciclo de vida completo. Claro que o publico não pode ter de analisar todos os produtos a fundo. Este trabalho tem de ser feito por especialistas e tem de haver alguma confiança, mas não pode ser apenas nalguns. 

Imaginem as pessoas nos anos 1970. Tinham mesmo problemas e nenhumas soluções! O petróleo ia acabar em 30 anos e não havia as alternativas que há hoje. Sabem porque o fim do petróleo se estima hoje em mais 30 anos, quando nos anos 1970 só chegava ao fim do milénio? Não, a principal razão não é terem sido descobertas mais reservas e haver maior eficiência na extração. É o uso! A estimativa do uso em 1970 era quase do dobro da atual.

Nós podemos contribuir (usando menos e melhor, recusando, reciclando e reusando), mas as soluções da ciência e da tecnologia terão mais impacto. O clássico exemplo é “ fechar a torneira”. Quem sabe destas coisas, explica que o que se poupa de água “fechando a torneira” é muito pouco. O maior consumo de água não depende tanto das pessoas individualmente. O que se  poupa de recursos de forma individual em muitas situações é pouco. Mas é educativo, apesar de tudo, e abre caminho às decisões e descobertas que terão grandes impactos. 

A sociedade avança bastante, mas pode parecer que não. Muitas das metas preconizadas nos anos 2000 (eficiência energética e muitas outras)  já foram atingidas! Devemos ficar de braços cruzados? Não, outra vez não!

Mas voltando atrás, à questão da confiança. Toda a gente percebe que não é boa ideia pedir ao lobo para tomar conta das ovelhas ou pedir às ovelhas para tomar conta das couves. Os problemas têm de ser resolvidos com as sugestões de todos e muitas vezes as melhores soluções são surpreendentes.  O problema da travessia do rio por um lobo, uma ovelha e couves tem uma solução lógica que não se esperava. Muitas soluções ainda não são conhecidas, mas com o que já é conhecido, há já soluções!

A questão das especialidades e dos temas de investigação é também muito relevante. Se investigas sobre uma coisa  acha-la a coisa mais importante.  Um martelo vê pregos em todo o lado, como disse um colega meu. E não podemos colocar todos os ovos no mesmo cesto. Ou deitar fora a água do banho com o bebé. Devemos lembrar que uma galinha põe um ovo e cacareja, enquanto um bacalhau põe dez mil e fica calado. Nem sempre quem faz mais barulho ou que tem mais tempo "de antena" é quem tem razão. Os provérbios têm vários sentidos, claro, mas podem ser nossos guias de pensamento.

É tentador dizer “lá vem este defender o capitalismo”, a “indústria” ou a “química” ou seja lá o que for. Mas, se pensarmos com cuidado há recusas que não são racionais. Como as recusas em relação à química ou à indústria em geral. São emocionais. E como se sabe são as emoções que conduzem a razão. Acreditar que haja uma espécie de maldade na industria e na química é mais emocional do que racional. Não é que não existam exemplos negativos mas tomar o todo pela parte é claramente exagerado.

 De qualquer forma, o mundo tornou-se demasiado pequeno para cometemos grandes erros, escreveu Ronald Wright em “Uma breve história do progresso”. Deixámos, como Wright também escreveu  demasiados destroço para trás e viajamos num barco que é não só o último, mas o único. Mas calma! Se calhar muitas coisas são retórica. Se calhar, achamos que somos mais importantes do que somos.    

O livro de Ronald Wright abre com um capítulo que se chama “A pergunta de Gauguin”. Como é bem sabido, Gaugin foi para os trópicos pintar e procurar a pureza, deixando em França a família com dificuldades. Gauguin tinha sido um corretor bancário e só descobriu a arte mais tarde. Estava entretanto com problemas financeiros. E, em 1897, recebeu a notícia de que a sua filha favorita, Aline, tinha morrido de pneumonia. Isso aumentou ainda mais a sua angustia e fê-lo criar o quadro  “De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?” que demorou dois anos a ser pintado.

Porque refiro este quadro? Para lembrar que as angustias pessoais e coletivas são muito antigas e que foi esta uma das razão pelas quais a arte deve ter surgido. Como escreveu Jorge Calado “A arte começou por ser uma necessidade. A ciência uma curiosidade.” Sempre formos ao mesmo tempo arrogantes como espécie, e temerosos. Arrogantes por acharmos que somos essenciais e mais poderosos do que somos. Que as coisas foram feitas para nós e que podemos dispor da natureza. Temerosos pois desde sempre pensámos que podíamos sofrer a ira de Deus. Castigos divinos e fins do mundo são comuns ao longo da história.

Queria referir alguns ativistas climáticos emblemáticos e as questões que suscitam. Greta Thumberg, a mais nova, tem agora 19 anos, mas começou as greves as climáticas com 16 anos. Não devemos esquecer que na Suécia há pelo menos oitenta anos que se pratica a educação ambiental nas escolas. O mais velho, James Lovelock, tem agora mais de 102 anos, mas fará 103 em julho. Foi o autor da teoria de Gaia e, pelo menos pelos seus livros, está cada vez mais radical. Vandana Shiva,  aposta no “anti-desenvolvimentismo”, uma atitude interessante e aliciante, mas com imensos problemas. Podemos voltar atrás em muitas coisas, nomeadamente no consumismo, mas não no desenvolvimento. Dou um exemplo horrível. O momento mais “sustentável” e com menos desperdício de século XX foi a Segunda Guerra Mundial. Não queremos isso! Refiro estes ativistas pela diversidade de backgrounds e atitudes e por serem cativantes. E é claro que precisamos de radicais (quando teria acabado a escravatura? Quando é que as mulheres votariam? Entre outras coisas) se fosse tudo tratado com “paninhos quentes”. Mas, por outro lado, os radicais podem atrapalhar as soluções, pois não conhecem tudo, muitas vezes têm preconceitos, ou ideias erradas, chamam uma atenção desmedida para os diagnósticos e nenhum para as soluções. E se não houver nenhum espaço para soluções, estamos mal.  

Estava a preparar esta conferência quando vi o artigo da esquerda numa revista feminina (imagem deste artigo). E a capa da direita é de uma outra revista feminina que tinha em casa. É fantástica. O rótulo é mesmo de tecido e está mesmo costurado à capa da revista!

 Porque não podemos ser otimistas? O otimismo e o pessimismo são atitudes que derivam das emoções. Nas situações mais desfavoráveis podemos continuar a ser otimistas. Mas para algumas pessoas basta uma contrariedade imaginada para se instalar o maior pessimismo. 

Sabe-se que a longo prazo o pessimista tem sempre razão - a bem conhecida a frase de Keynes “num tempo suficiente estaremos todos mortos” – mas até lá podemos continuar a ser otimistas.

Achamos que agora é que acaba o mundo! Talvez. Para cada um individualmente acaba com certeza. A ciência e a tecnologia têm tido crescimentos exponenciais, são combinatórias e começam a ser recursivas. Dizem: ocupámos todo o planeta; expulsamos a natureza. Mas há algumas perguntas que se impõem e uma constatação. Não será possível usar a ciência e a tecnologia para resolver os problemas que identificámos (aquecimento global, poluição, extinções em massa e outros) – na verdade alguns estão a ser resolvidos. E a constatação é que não podemos fugir à Natureza. Aquilo que criamos também é Natureza. 

Dizem as leis de Murphy que é quando vemos a luz ao fundo do túnel é que este desaba. Mas disse um participante na sessão, podemos ver ao contrário “entrar no túnel em vez de sair”. E podemos continuar com esta retórica indemonstrável, mas percebe-se a ideia… Houve tempos em que a ciência trouxe soluções. Hoje preocupa-nos a aceleração sem precedentes. Mas vamos com calma. A ciência continua a trazer novas soluções. 

Vou usar as vidas da família real portuguesa em meados do século XIX, como exemplo de coisas que só apareceram no século XX e aumentaram muito a nossa segurança e qualidade de vida. E não me estou a referir a telemóveis, computadores e roupas desportivas de marca...

Começo com a rainha mãe: D. Maria II. Morreu com 34 anos no parto. Esta estava sempre grávida imagina-se porquê! Do lado direito estão os seus nados-mortos. Há várias coisas que ela não tinha: segurança no parto,  mortalidade infantil baixa e … contraceção. O rei D. Pedro V morreu com 24 anos, assim como alguns primos, de febre tifóide. Foram caçar e beberam de uma fonte inquinada. Duas coisas que lhes faltavam: tratamento de água e antibióticos.  A rainha D. Estefânia morreu com 22 anos de diferia. Esta quase desapareceu  devido às vacinas. Mesmo assim, dos que sobreviviam, a esperança de vida não era grande coisa. Em resumo: contraceção, tratamento das águas, antibióticos e vacinas; melhor higiene, diminuição drástica da mortalidade infantil e da mortalidade no parto e melhor qualidade de vida geral, não apenas para os ricos, mas para todos. Tantas coisas que o desenvolvimento nos trouxe! Mas poderíamos fazer melhor! 

Os estudos de Hans Rosling mostram que houve um aumento brutal da igualdade e da qualidade de vida, mesmos nos sítios mais remotos. Isso é inquestionável. O nosso problema agora é: podermos dar cabo do nosso planeta.  Agora que se via luz ao fim do túnel é que ele desaba...

Há coisas que ouvimos quase todos os dias (que “em 2050 haverá mais plástico no mar que peixe”; “que foi capturada uma baleia com 40 quilogramas de plástico” etc.). E outras coisas que nunca ouvimos (que “a química salvou as baleias e os elefantes”; que “a química salvou da morte prematura mais de três mil milhões de pessoas”). Será que por ouvirmos muitas vezes uma coisa ela se torna mais verdade? E aquilo que nunca ouvimos será que não existe?  O problema são os “custos da oportunidade”. Se só ouvimos uma coisa parece que não há outras. Mas há! A frase bombástica e supostamente clara tem dois problemas. Ninguém sabe quanto peixe há no mar; os números foram estimados com o que se sabia na altura. Lembram-se da questão do petróleo, dos anos 1970? Erraram em 100%. A química salvou mesmo as baleias e elefantes e salvou da morte prematura mais três mil milhões de pessoas. Como pode isto ser? Claro que há “senãos” e podemos já falar disso, ou no fim...  

A química não só salvou as baleias como está a contribuir para a Economia Azul (basicamente a economia do mar – e Portugal tem uma das maiores áreas marítimas da UE). Novos medicamentos, novas formas de alimentação, melhoramento dos processos tradicionais, etc.

Um exemplo de má interpretação são as palhinhas. O valor estimado para a sua percentagem dos plásticos nos oceanos é de 0,03%. A maior quantidade de plásticos não são as palhinhas ou os patos de banho amarelos, são as redes de pesca. É para isso que temos de procura soluções. 

O segundo maior problema ambiental, a seguir aos combustíveis, são as roupas. Mais mais uma vez é preciso ver o problema globalmente e analisar os ciclos de vida dos produtos. 

Com tudo isto as marcas usam várias estratégias. É cinismo? Acho que não. Estamos a caminho de um Capitalismo (mais) Verde. As empresas sabem que não vendem tanto se fizerem coisas erradas. E há grandes incentivos em ser mais sustentável. Claro que nem tudo isto são rosas. A questão é que não temos só uma face da moeda, mas  temos mesmo de melhorar uma delas senão a outra nao tem suporte…

A Química Verde e a Economia Circular são situações em que todos vencem. Chamo a atenção para que a química verde não é só “propaganda”. Faz parte dos seus princípios a análise continua e rigorosa das coisas. E aos outros Rs a química acrescenta a Re-invenção

Somos ávidos de energia. Esse é um dos nossos maiores problemas. Mas está a ser resolvido, como está a ser o dos plásticos no oceano. Fazendo as contas, e se não me enganei, se pudéssemos recolher todo o plástico marinho e o usássemos como combustível este só seria equivalente a 8% do petróleo que gastamos por ano. Mas o Sol é uma fonte quase inesgotável. Estima-se que chega à superfície da terra cerca de cinco mil vezes mais energia do que aquela que usamos.

Estão a ser feitas muitas coisas nestas áreas. Recolha de plásticos, uso de plásticos reciclados, plásticos obtidos a partis de materiais renováveis, biolósticos, etc. Precisamos ainda de mais investigação e desenvolvimento.  Estão a ser empregues os óleos usados para detergentes. Falta referir o uso de óleos usados como combustíveis. E claro, todos os problemas associados. Mais uma vez é preciso estudar todo o ciclo. Há preocupações com o uso da área agrícola para “cultivar” combustíveis. Mas para isso também há soluções. As micro-algas por exemplo, etc.  

A questão do consumo exagerado é muito relevante. Como enfrentamos essa questão? Vejo que já está a ser atingido um consenso. Mas as pessoas em geral nunca tomarão a iniciativa por si próprias, algumas voluntariamente farão, mas serão poucas. E mesmo que tomassem podia ser pouco (veja-se o exemplo de “fechar a torneira” e de “apagar a luz”).  Mas podem pressionar os políticos a tomar as decisões mais corretas e mais informadas (não as que tomariam por os ativistas fazerem pressão e muito barulho). Foi o que aconteceu com a legislação anti-tabaco ou da condução com álcool ou conto de segurança. E, mais recentemente, com os sacos plásticos.  Tem de haver uma mistura de legislação, atitudes sociais e avanços científicos para que todo os puzzle funcione. E tem de haver mais investigação e desenvolvimento. Não menos. 

O que nos reserva o futuro? Tentemos prevê-lo com uma mistura de otimismo e preocupação criativa. 

Um pouco mais do meu pensamento sobre alguns destes temas:

Rodrigues, Sérgio P. J. "Química e Saúde Pública: Elementos da História de uma relação fundamental". revistamultidisciplinar.com (2022): https://doi.org/10.23882/rmd.22087.

Rodrigues, Sérgio P. J. "Acerca das Contribuições da Química para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas - Atualização de 2022". Em Meio ambiente: Princípios ambientais, preservação e sustentabilidade 3, 1-12. Atena Editora, 2022.  https://doi.org/10.22533/at.ed.3182229031

Rodrigues, Sérgio P. J. "A química ao serviço da vida e prisioneira da guerra". Em Uma visão holística da Terra e do Espaço nas suas vertentes naturais e humanas: homenagem à professora Celeste Ramualdo Gomes, 229-242. Coimbra: CITEUC, 2020. https://doi.org/10.5381/zenodo.4409383

Rodrigues, Sérgio P. J. "Cientistas, activistas e comunicação: oportunidades, armadilhas e perigos". Apresentado no IV Congresso Internacional Educação, Ambiente e Desenvolvimento, Leiria, 2020.

Rodrigues, Sérgio P. J. "Mal-entendidos, preconceitos e mitos sobre química na sociedade contemporânea". Apresentado no II Congresso Internacional Educação, Ambiente e Desenvolvimento, Leiria, 2016. 

Rodrigues, Sérgio P. J. "Que Química! Entre o Fascínio Pelo Pessimismo e a Hesitação Perante o Optimismo". Química Bol. SPQ 140 (2016): 27-35. http://www.spq.pt/magazines/BSPQuimica/672/article/30002015/pdf.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

A Prima Bette de Honoré de Balzac

[A Prima Bette é o último romance de Honoré de Balzac. Aproveitando que tinha começado a ler uma versão muito elegante do livro publicada recentemente que estava na Casa da Cultura na pilha dos "livros que foram proibidos" e que eu próprio estava de quarentena dei um grande avanço à obra. Devo dizer que esta é de domínio público e pode ser encontrada como audiobook gratuito aqui (ouvi uma parte na versão inglesa). e refiro mais uma vez que em Coimbra temos duas bibliotecas com depósito legal, ou seja tudo o que é publicado em Portugal vai lá parar no espaço de um ou dois anos.]

Trata-se de uma história de uma grande complexidade, cheia de voltas e reviravoltas, personagens fascinantes e profundas e frases fantásticas sobre a natureza humana e o mundo. Não vou aqui fazer um resumo da história nem fazer uma análise desta sociedade que já não existe. Leiam o livro que vale a pena. Mas deixo aqui algumas notas: há um momento em que é dito “o amor na minha idade custa 30 mil francos” ou noutro em que se filosofa sobre uma “jovem bonita casar sem dote assustar os maridos”. Há bastantes passagens racistas, antissemitas e misoginas, para não falar das que seriam consideradas imorais ainda hoje ou ilegais. Mas é preciso lembrar que o livro foi escrito em 1846. Era uma altura em que havia muito poucos trabalhos decentes para mulheres, mas um artista já era um “príncipe não coroado”. Um mundo muito mais inseguro e cruel, em que a prostituição se podia iniciar aos quinze anos, mas havia, apesar de tudo, já alguma liberdade feminina e da população em geral. Curiosamente, uma das personagens femininas tem como emprego bordar a ouro em ornamentos de uniformes. Esse é outro aspeto interessante do livro. Na sociedade pós-napoleónica, toda uma economia social baseada em monges, freiras e padres é substituída por uma sociedade de funcionários e soldados. A natureza humana não muda muito apesar de tudo, mas o sociedade sim. Balzac, numa das suas muitas frases fantásticas diz, a propósito da bondade e do perdão, que Napoleão foi coroado imperador por metralhar o povo, mesmo ao lado do sítio onde Luís XVI perdeu a cabeça por não ter querido fazer algo parecido. Claro que as frases nunca são absolutas, há muitos contextos, mas é interessante esta reflexão. Proponho-me aqui referir alguma da ciência, em particular da química, presente (ou não) no livro.   

Nas muitas reviravoltas da história, há um momento em que uma personagem tem um marido, dois amantes mais velhos, rivais, um amante mais novo que acabou de chegar do Brasil e um amante ocasional. Todos são informados que são pais. E em passagens muito cómicas estão todos juntos num jantar. O marido (que sabia não ser o pai) refere em privado que são os cinco pais (padres) da igreja. Hoje em dia esse problema seria facilmente resolvido fazendo uma análise de paternidade. Parece haver já algum tipo de contraceção pois a ideia da gravidez desaparece mais tarde. De qualquer forma, a pílula que permitirá uma muito maior liberdade feminina só foi inventada mais de um século depois nos anos 1950 e só começou a ser comercializada nos anos 1960. De forma paralela, o preservativo como o conhecemos hoje só apareceu no início do século XX. Bem, e os estes de paternidade fiáveis só surgem com a descoberta do DNA nos anos 1950 e só se tornam comuns muito mais tarde.   

Outra coisa interessante, é a doença de que são acometidas duas das personagens. É dito que é uma doença desaparecida que existia na Idade Média, que tem cura em zonas mais quentes e nos negros e americanos por terem peles diferentes, sendo transmitida pelo brasileiro. Esta doença faz pensar na peste negra e na sífilis, mas estas não tinham cura também nos trópicos. Não é com certeza sífilis que é de evolução muito mais lenta e raramente mortal, embora muito dos sintomas descritos sejam da fase final da doença. Nesta altura não era ainda conhecida a teoria dos micróbios nem havia antibióticos que só irão aparecer nos anos 1940. Mas existe essa espécie de religião perante a ciência. “Um verdadeiro médico apaixona-se pela ciência” diz um médico que procura ajuda junto do seu amigo, o famoso químico, professor Duval. É curioso que quase não haja referência à sífilis no livro, mas há um momento em que uma das personagens refere de forma metafórica que alguém entre dois metais escolheu o mercúrio (o outro deveria ser o ouro ou a prata).

Há um momento em que é referido que uma das personagens pintou os cabelos louros com um líquido que lhes deu um tom cinzento (no original francês “cheveux cendrés”) pois não queria parecer loura como a mulher de outro. Mesmo as personagens femininas mais recatadas pintam os cabelos. 

Na versão portuguesa não se nota tanto, mas na inglesa são referidas muitas cores que evocam materiais (cor de limão, enxofre, laranja, ouro, cereja, cobre, chocolate, entre outras). Várias cartas e bilhetes são escritos a lápis. Nesta altura ainda não havia canetas de tinta permanente e os escritos a tinta precisavam de penas e aparos. O lápis era assim muito mais prático.

Há muitas referências às roupas e rendas caras. Estas eram complexas, difíceis de elaborar. Não havia tecidos sintéticos nem fios elásticos. Também a iluminação que usam (essencialmente velas e grupos de velas) é interessante. Parece que não se tinha popularizado ainda aqui o candeeiro de Argand, mas a luz elétrica está ainda muito longe de aparecer.

Em resumo, um livro pode levar-nos a enredos, ambientes e mundos passados. Permite-nos refletir sobre a natureza humana e sobre o mundo, mas também sobre como ele era e como se modificou com a ciência.         

    

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Ciência e Teatro

 
 
[Este texto sobre o teatro científico por várias razões ficou inédito, partilho-o aqui] 

Carmen Dolores (1924-2021) escreveu a sua autobiografia para o Jornal de Letras, "Vivendo outras vidas" (JL, maio de 2005). Gostou de representar, diz no livro “Nos Palcos da Memória” (Sextante, 2013)  a Margrethe de “Copenhaga”, uma peça de Michael Frayn que envolve a vida de cientistas. Ao ouvir na rádio um programa sobre esta atriz, “Tempo da Dálias”, nasceu logo ali a ideia de escrever sobre ciência e teatro. De facto, o teatro é dos meios mais poderosos para transmitir e tornar inesquecíveis ideias e dilemas. Os científicos também.

Entre a primeira edição inglesa de 1906 e a versão de 2017 de Andew Upton de “Children of the Sun,” peça de Máximo Gorki, desapareçam algumas piadas como a da criada que diz “Physistry” e “Chemics” as quais em Português não resultariam pois “Física” e “Química” têm a mesma terminação. É interessante que Upton tenha uma visão positiva da química e que explique o que pode significar atualmente ser “filho do sol” (algo que não era tão claro na versão de 1906): os nossos elementos foram feitos nas estrelas. A peça, que foi representada entre nós em 1979, tem um químico como personagem. Trata-se de uma família em isolamento devido à cólera (isso foi lembrado há pouco tempo, pois a situação é semelhante à atual). De forma convencional, refere-se que Gorki retrata o isolamento e a alienação, antecipando as revoltas que se seguiram. Mas a personagem do químico diz-nos também como a ciência era vista na altura.

Carl Djerassi foi um químico muito prolífero, que morreu em 2015. Ficou conhecido como o “pai da pílula” por ter inventado uma molécula que poderia ser usado como contracetivo oral. No final da sua vida que daria uma peça de teatro (na verdade a peça “Ego” é baseado em si próprio), dedicou-se ao que ele próprio designou como “teatro científico” e deixou fundos para apoiar artistas. E colaborou com autores e companhias de teatro portuguesas, em particular com Mário Montenegro, licenciado em Engenharia Electrotécnica e de Telecomunicações e doutorado em Estudos Artísticos (Estudos Teatrais e Performativos), que encenou muitas das suas peças e Manuel João Monte, professor e investigador da Universidade do Porto. Uma das suas peças mais conhecidas é “Oxigénio”, escrito com o Nobel Roald Hoffmann (tradução de Manuel João Monte, Edições UP, 2015) e ilustra bem o conceito. Querendo a Academia Nobel sueca dar um retro-Nobel da Química, escolhe o elemento oxigénio. Nada mais confuso. Há três candidatos: Scheele que o descobriu primeiro, mas atrasou-se na publicação, Priestley que o descobriu de forma independente e Lavoisier que lhe deu nome. Quem deverá ter o prémio? Toda esta história é contada pelas companheiras dos três cientistas, aproveitando para referir a condição da mulher. A Academia Sueca tem nesta peça uma presidente que também vive essa questão. No final… No final é necessário ver a peça, ou ler o livro! Aprende-se acompanhando esta peça de teatro multifacetada. É isso que acaba por se fazer com todas, claro, mas as de Djerassi são especificamente pensadas nesse sentido, como a “Falácia” (“Phallacy” no original, Edições UP, 2011). Nesta peça há uma historiadora que usa métodos tradicionais para datar uma estátua de bronze como sendo grega, mas afinal um colega que usou métodos instrumentais, mostra que a estátua é uma imitação renascentista. Há várias questões em jogo: A estátua perdeu o seu interesse por ser uma imitação renascentista? Os métodos científicos não deveriam ser usados já que estão disponíveis? O conflito, competição mesmo, entre a mulher e o homem (em muitas peças de Djerassi esse aspeto está presente e dá-lhe uma densidade adicional). As eternas questões do valor da Arte, das várias áreas de estudos, e, da natureza humana, são aqui retratadas ao mesmo tempo que se aprende.

Depois de traduzir Djerassi, Manuel João Monte, escreveu as suas próprias peças. Tive a sorte de acompanhar de perto a evolução do “Bairro da Tabela Periódica” (Edições UP, 2019) no “Ano Internacional da Tabela Periódica” em 2019. Desde as récitas em palestras até à encenação por Mário Montenegro, a peça foi evoluindo e percebi muito melhor o que era a criação teatral e a importância das palavras ditas. Mais recentemente, escreveu a peça “Arsénico” com que ganhou o prémio de divulgação cientifica da Sociedade Portuguesa de Autores e, com Sofia Miguens, “Que coisa é o mundo (o estado dogmático)" (Edições UP, 2021).

Tom Stoppard tem também algumas peças de teatro em que a ciência tem um papel importante. Por exemplo, em “Arcadia” (Faber & Faber, 1993) refere as questões da teoria do caos que fazem com a mecânica clássica também seja probabilística. A tese de mestrado de 2007 de  Cláudia Correia Saraiva, “Teatro Científico e ensino da Química”, refere muitas outras peças que não é aqui possível referir com mais detalhe: a “Revolução dos Corpos Celestes”, com textos de Mário Montenegro e produzida pela Marionet; também produzida pela Marionet, “Bengala dos Cegos” com textos de Mário Montenegro, que se centra na figura do matemático Pedro Nunes; “Copenhaga”, já referida, produzida pelo Teatro Aberto; “O Homem que via passar as estrelas” de Luis Mourão, pelo Teatro da Trindade; “Picasso e Einstein”, de Steve Martin, que se centra num encontro fictício entre Picasso e Einstein em 1904 em Paris; “Os Sonhos de Einstein”, na qual Alan Lightman procura refletir sobre o tempo, entre outras. O grupo “Encerrado para obras” tem peças com demonstrações científicas, assim como canções que envolvem estes temas, nomeadamente o “Quimicómico”. As listas dos projetos podem ser muito grandes, tal como são ainda mais longas as listas de projetos fracassados. As produções teatrais envolvem muitos custos e variáveis e nem sempre os promotores vêm o risco como aceitável, coisa que nós, público, nem sempre entendemos.

E mesmo as peças de teatro que parecem não ter nada que ver, acabam por nos contar coisas relacionadas com as questões científicas. Estreada em Maio de 2021, no Teatro de São João, no Porto, a peça de Henrik Ibsen, “Espectros”, tem uma personagem que sofre de sífilis congénita (curiosamente esta peça foi também destacada por Carmen Dolores que fez de mãe). A explicação é a devassidão do pai, mas sabemos hoje que havia muitas formas de transmissão, muitas delas inocentes. Que cura eficaz  na altura não havia e que a loucura espreitava. Com a profilaxia e o aparecimento dos antibióticos este flagelo acabou por quase desaparecer.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Carlos de Oliveira e a evolução sem seleção ao acaso embora acabe por ser pelo imprevisível que vamos

[Está a chegar ao fim o ano do centenário de Carlos de Oliveira (1921-1981) e há algum tempo que me interesso pelas relações dos seus livros com a química. Sobre os centenários já foi feita aqui a reflexão por Eugénio Lisboa. Eu vou debruçar-me sobre um aspecto curioso de um livro de Carlos Oliveira. No dia 17 de dezembro irei fazer uma palestra mais geral sobre Carlos de Oliveira e a Química na Escola Secundária de Cantanhede. Curiosamente, ao escrever lembrei-me de que o patrono da escola, o professor Lima de Faria, tem muitos trabalhos sobre a teoria da evolução, numa perspetiva diferente - sem seleção ao acaso - da que refiro abaixo. Isto está tudo ligado, mas aproveito para referir mais uma vez que a ciência avança mais com os desacordos do que com os dogmatismos.] 

Como é bem sabido, Carlos de Oliveira viveu bastantes anos na gândara, a qual serviu de inspiração a grande parte dos seus trabalhos. Com as suas imagens e textos deu uma forma especial a toda uma região, ao mesmo tempo que ele próprio se dizia “tatuado” por ela. Por outro lado, todo um conjunto de autores, especialmente locais, reclamam seguir os seus passos e foram claramente inspirados por ele.

Para um natural da gândara – e eu sou-o e acho que também fui tatuado por ela – é muito apelativo as várias referências a coisas que conhecemos ou que imaginamos e que vão variando com o tempo, muitas vezes por as vermos de formas diferente.

Não acho que haja domínios em que não se possa tocar. Claro que os domínios especializadas têm o seu lugar, e ainda bem pois há muitas coisas que só avançam ou têm lugar dessa forma, e há conhecimento técnico que não se adquire a ler de forma diletante e ocasional, mas há  coisas que são e devem ser de todos. Da mesma forma que devo aceitar que uma pessoa refira os “químicos” de forma muitas vezes ignorante em todos os sítios, por vezes fora do contexto, tenho de aceitar que um não-filósofo profissional filosofe ou um não-crítico critique, entre outras possibilidades. Acontece que, muitas vezes, não falamos sequer a mesma linguagem. Por exemplo, para uma pessoa da área das ciências “catalise” tem a ver com a aceleração de reações químicas, mas para uma pessoa das letras, com a forma como se constroem certas palavras.

Assim, tem de haver alguma tolerância aos não profissionais, ao mesmo tempo que se sabe quem é o quê. Uma pessoa pode opinar, saber coisas, contribuir para um ramo do conhecimento, sem o poder exercer. Por exemplo a medicina. Outra pessoa pode dizer coisas, saber outras e até contribuir muito sem ser, por exemplo, engenheiro. E aí por diante. Algumas vezes as contribuições mais ricas e úteis até vêm de pessoas de fora do ramo, mas as rotinas são realizadas por quem está todos as dias a trabalhar nesse assunto, muitas vezes em profissões que são reguladas e só podem ser exercidas por quem tem as qualificações.     

Carlos de Oliveira refazia muito. Por exemplo, embora a história e as personagens sejam as mesmas, a versão de 1948 dos “Pequenos Burgueses” é muito diferente da versão de 1987 que eu tenho. A obra original faz um conjunto com “Alcateia”, publicada em 1944, que ficou pelo caminho, mas foi recentemente reeditada (o que era imprevisível), mas não sei se na atual se nota tanto.  

Chamou-me a atenção da utilização da expressão “trigo-roxo” para combater uma praga de ratos. Julgo que a expressão terá começado a ser usada por as sementes com o veneno serem pintadas com um corante dessa cor. Generalizou-se para os venenos, que são dessa cor, ou têm esse nome na marca. O curioso é que só em 1948 (imprevisível coincidência) foi introduzida a varfarina para matar ratos. Trata-se de um anti-coagulante a que os roedores são muito sensíveis, mas também a nós e aos outros animais pode fazer mal, que tem como antídoto a vitamina-K1. Antes usava-se a estricnina e o fosforeto de alumínio. E anteriormente, o arsénio. Isto causava um grande número de acidentes e facilitava o suicídio e o crime e esses produtos deixaram de ser usados. De qualquer forma, fui ver a edição de 1948. Não tinha qualquer referência a “veneno” para os ratos. Notei outras coisas. Era uma versão muito diferente. Mas o aspeto do raticida que antes não existia e agora existe parece-me fundamental. A literatura mostra-nos o mundo e o pensamento do tempo em que foi escrita.   

É curioso que a imagem dos ratos seja também usada por Albert Camus na “Peste”, romance de 1947, agora muito lido devido às semelhanças que encontramos com os tempos que estamos a viver. Também ainda não estava disponível a varfarina, mas como disse Camus (cito de cor), a peste, e os ratos, não desaparecem totalmente, ficam escondidos.

Entretanto, começou a notar-se uma maior resistência à varfarina por parte dos ratos. Este fenómeno é comum e tem a ver com a seleção que é feita. Se o veneno mata os ratos mais sensíveis e se sobrevivem os mais resistentes, são estes que se vão reproduzir e passar as suas características aos descendentes. Este efeito é muitas vezes temido de forma exagerada e outras vezes esquecido, mas é sempre de tomar em conta. Em 1980 foi introduzida uma “super-vafarina”, a bromadiolona. Ora esta molécula é muito eficaz para os ratos, mas muito mais perigosa para os humanos. Acabou assim banida para o uso profissional, mas continua legal para os usos domésticos! Não sei há alguma moral nisto, mas Carlos de Oliveira, muito atento e curioso, talvez achasse graça.

sábado, 4 de setembro de 2021

Júlio Dinis e a Química

 

[Não tive ainda tempo de ir à Feira do Livro do Porto onde se pode visitar a agora designada “extensão do Romantismo” do museu da cidade que tem originado muito polémica pela intervenção radical no Museu do Romantismo e que tem como objeto central um herbário de Júlio Dinis. Devo realçar que o Romantismo não é avesso à novidade e à ciência, mas rejeita as intervenções (alguns dizem destruições) sem alma ou impostas. Vamos ver.]

Júlio Dinis (1839-1871) é o escritor portuense evocado na feira do livro, realizada em 2021 nesta cidade. Como é bem sabido, Júlio Dinis é o pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, formado em medicina, professor depois na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que nunca exerceu medicina, devido em parte à tuberculose de que sofria. A sua tese versava a meteorologia e a medicina, mas ficou muito mais conhecido, pelos seus livros, supostamente, ligeiros. São considerados assim por a generalidade das suas personagens serem boas, podendo, no entanto, em muitos casos sofrer de vícios e manias. Diz quem sabe, e pode constatar quem lê, que são mais complexos do que parecem. Neste pequeno artigo vou referir a química em Júlio Dinis. Curiosamente, não encontrei muita, mas é bem conhecida a saga do arsénio nas "Pupilas do Senhor Reitor" que vai ter um grande efeito cómico (Júlio Dinis é aliás um mestre a explorar estas situações cómicas e teatrais, com um sorriso otimista). Este elemento químico, era usado numa preparação para aumentar o apetite, e a mulher de João da Esquina incentiva vezes sem conta o marido a tomá-lo. Ele responde, paciente mas sombrio, “Toma-o tu, se gostas”).

Há uma preleção sobre os metais e o galvanismo e outra contra o açúcar e a sua indústria numa “Família Inglesa” e não detetei mais neste livro. Em “Serões da Província” também não. Nota-se, no entanto, que Júlio Dinis gostava de plantas e Botânica. Em “Fidalgos da Casa Mourisca”, obra publicada postumamente, também não. Há alguma química, mas é pouco explícita. A química e as suas realizações e explicações estão, no entanto, presentes indiretamente. Nas roupas que as personagens vestiam, nos pratos onde comiam e nos seus sentimentos, por exemplo. Também na falta das suas realizações. Por exemplo, no tratamento da doença de que morreu Júlio Dinis, a tuberculose. A molécula estreptomicina só irá ser descoberta em meados do século seguinte, por exemplo. Tomavam-se bons ares, servia-se boa comida, descansava-se e esperava-se que a natureza fosse simpática. Muitas vezes não era. A mãe e vários irmãos de Júlio Dinis morreram com esta doença. Ia dizer que não aparece a palavra “química”, mas não é verdade (lá iremos). Aparece pouco a palavra e as personagens são todas bem intencionadas e boas. Os livros de Júlio Dinis são, nesse aspeto, um paraíso onde não há química e todos são boas pessoas. Dizem os críticos que ele está em trânsito entre o Romantismo e o Realismo. Talvez. Eu vejo-o como um romântico otimista.

Na “Morgadinha dos Canaviais”, afinal, aparece a palavra “química” (ou as suas variações). Três vezes! Primeiro na descrição de um leite muito puro e inteiro que toma Henrique. Ah! “pela primeira vez na sua vida disse ele ter bebido o leite verdadeiro, o leite que não faz mentir a análise dos químicos, de que os fisiologistas exaltam as qualidades nutritivas, de que os poetas das Geórgicas cantam as delicias e virtudes; só agora os compreendeu ele, que bem diferente de aquilo era o aguado e quantas vezes derrancado sôro, a que estava habituado na cidade.” Nesta altura, o leite na cidade seria muitas vezes falsificado, mas o que transparece é uma visão romântica que hoje voltou a estar muito presente. Infelizmente, o leite inteiro não analisado poderia ser uma fonte de bactérias – Um familiar afastado morreu novo de carbúnculo ao beber leite diretamente – Isso leva-nos à terceira vez em que é referida a química: os enterramentos nas igrejas que originava maus ares onde estavam “pequenos insetos”. A falta de higiene poderia ser tão perigosa nos enterramentos como no leite. Finalmente, a química é tratada como uma figura de estilo na descrição de uma personagem, de que hoje já se perde bastante o sentido: “era um verdadeiro espírito, na aceção química do termo”. Diria que Júlio Dinis quis dizer que tinha uma personalidade bem definida e única.

Júlio Dinis não é só do Porto, claro. Há um museu muito bom em Ovar, na casa onde passava férias e de onde era natural seu pai. E os seus livros podem ser lidos onde quer que estejamos. Há edições gratuitas na Internet. Leia-se. Só custa tempo!

sábado, 22 de maio de 2021

Dedicatórias que fiz em 2017 e 2019 aos Estudantes de Química e Química Medicinal

[Nunca tive grande interesse pelas praxes. Sempre achei que eram formas de poder e, pior, de violência, mas ao longo dos anos fui começando a ter uma opinião mais favorável. Continuo a abominar as prepotências, mas aceito melhor a parte do divertimento. E tinha de acontecer: em 2017 e 2019 convidaram-me para escrever no livro dos estudantes, eu que nunca gostei, nem participei nas praxes. Foi isto que saiu. Lembrei-me hoje de novo quando Luis Miguel Cintra e Jorge Silva Melo receberem doutoramentos honoris causa].  

Jovens estudantes de Química e Química Medicinal!

É com enorme prazer que vos escrevo estas linhas para acompanhar um dos ritos de passagem que todos os anos, desde tempos imemoriais, estudantes como vós, celebram, evocando de forma profundamente telúrica, subconsciente e oculta, o que é a Universidade.

Universidade é Juventude, Liberdade e Química. Juventude, porque todos os anos se renova, refaz e renasce, com a chegada dos novos estudantes. Liberdade, porque o conhecimento e a sua transmissão devem ser livres para serem responsáveis, criadores e úteis. Química, porque a renovação e a liberdade geram transformações profundas que se mantém em equilíbrio dinâmico. Já era assim antes de Immanuel Kant indicar a liberdade e a renovação como os maiores bens da universidade ou de von Humboldt reconhecer a união fundamental entre o ensino e a investigação. Na verdade, a ideia de Universidade e as suas raízes profundas na juventude, liberdade e equilíbrio são tão fortes, que estão muito para além dos que por aqui vão passando – alguns como cão por vinha vindimada, citando o Miguel Torga do Diário -, e vão bebendo, dando de beber, ou mergulhando nesta fonte sempre renovada que é a Universidade.

Os 726 anos da Universidade de Coimbra seguem a par com a velha canção Gaudeamus Egitur, a qual é ainda mais antiga do que a Universidade de Coimbra. Diz a canção: Gaudeamus Igitur, Juvenes dum sumus. (Alegremo-nos, portanto, enquanto somos jovens). E mais à frente: Vivat academia! Vivant professores! Vivat membrum quodlibet, Vivant membra quaelibet, Semper sint in flore. (Viva a academia! Vivam os professores! Viva cada estudante! Vivam todos os estudantes! Que estejam sempre em flor). Releia-se a última frase: que estejam sempre em flor, ou seja sempre jovens, com ideias frescas, preparados para frutificar e receber e trocar o pólen do conhecimento. Com estas metáforas florais salto a parte da canção que, embora divertida, poderá ser considerada sexista e leio-vos mais um verso: Pereat tristitia, Morra a tristeza! Universidade é também Alegria!

Finalmente, dirijo-me aos jovens futuros químicos e químicos medicinais. Tornar-se químico é adquirir uma forma única de ver o mundo e desenvolver a capacidade de o transformar (em geral para melhor), inventando ou descobrindo novas moléculas e materiais, controlando com rigor as suas propriedades. Actualmente, são descobertas ou inventadas mais de 15 mil moléculas por dia. No decurso da vossa licenciatura serão, dependendo da vossa pressa (ou vagar) mais de 16 milhões de novas moléculas. Entre o momento em que entraram na universidade e o dia de hoje ficaram disponíveis moléculas para o tratamento, por exemplo, de doenças como a hepatite C e alguns tipos de cancros, entre muitas outras. Alguns de vós estiveram presentes, ou terão essa oportunidade no futuro,  nas descobertas e na escrita de trabalhos que poderão mudar o mundo e a vida das pessoas. São neste momento conhecidas mais 133 milhões de substâncias, mas há um espaço químico de cerca de 1 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 milhões de substâncias à espera de serem descobertas!

Com o que o que aprenderam e viveram no Departamento de Química da Universidade de Coimbra que sejam  seta e laser apontados ao futuro. Uma seta sem amarras e um laser que não se apague, contribuindo para o bem e progresso da humanidade, não deixando, como na velha canção, de estar sempre em flor.  

[Em 2019, convidaram-me de novo. Assumi renovar o texto que estava acima. Parece quase auto-plágio, mas o objectivo era realçar o quão pouco parece que se evolui nestas coisas, mas se lerem com mais atenção verão que o número de substâncias descobertas se alterou. Se o escrevesse hoje seriam mais de 180 milhoẽs. Parece que nada muda, mas as coisas modificam-se e muito.]

Jovens estudantes de Química e Química Medicinal!

É com enorme prazer que revisito e renovo o orgulho de vos acompanhar no vosse crescimento como pessoas, cidadãos e químicos, e escrevo umas linhas para o guião do rito de passagem que todos os anos, desde tempos imemoriais, estudantes como vós celebram, evocando o que é ser Universidade.

Disse aos vossos colegas de há uns anos: Universidade é Juventude, Liberdade e Química. Juventude, porque todos os anos se renova, refaz e renasce, com a chegada dos novos estudantes. Liberdade, porque o conhecimento e a sua transmissão devem ser livres para serem responsáveis, criadores e úteis. Química, porque a renovação e a liberdade geram transformações profundas que se mantém em equilíbrio dinâmico. As palavras são as mesmas, mas o seu significado é renovado. Universidade é também a alegria de  se renovar, de ser Estudante e querer saber sempre mais, de ultrapassar fronteiras, de derrubar barreiras, conhecer novos mundos,  produzir saber e cultura, fazer amizades para a vida e contribuir para transformar e melhorar o mundo.

Um químico é alguém que adquire uma forma única de ver o mundo e desenvolve a capacidade de o transformar,  inventando ou descobrindo novas moléculas e materiais, controlando com rigor as suas propriedades. São conhecidas no dia em que vos escrevo mais de 148 milhões de moléculas, sendo descobertas ou inventadas mais de 15 mil por dia. No decurso das vossas licenciatura e mestrado serão descobertas ou inventadas mais de 27 milhões de novas moléculas. Entre o dia em que entraram na universidade até ao dia de hoje ficaram disponíveis moléculas para o tratamento de doenças que não tinham cura e materiais mais sustentáveis que não existiam. Alguns de vós podem ter estado envolvidos nessas descobertas, outros poderão ter essa oportunidade no futuro, mas todos podem à sua maneira e com o que aprenderam no Departamento de Química da Universidade de Coimbra contribuir para o bem comum e para o progresso da humanidade. E, para isso, tão importante como toda a química que puderam aprender, é terem desenvolvido espírito crítico e liberdade de pensamento que vos façam inteiros e completos, capazes de enfrentar os sucessos e as dificuldades, as alegrias e as tristezas, o conhecido e o desconhecido, sem receio e com sabedoria, como no famoso poema de Kipling, If, preenchendo cada inesquecível minuto com sessenta segundos de uma corrida que vale a pena.

Termino com a evocação do velho, mas sempre renovado, hino universitário, Gaudeamus Egitur, Juvenes dum sumus. (Alegremo-nos, portanto, enquanto somos jovens), Vivat academia! Vivant professores! Vivat membrum quodlibet, Vivant membra quaelibet, Semper sint in flore. (Viva a academia! Vivam os professores! Viva cada estudantes! Vivam todos os estudantes! Que estejam sempre em flor). É isso: o meu maior desejo é que estejam sempre em flor, que mantenham a juventude de pensamento e sejam sempre capazes de originar novos frutos. 

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Nasceram há 100 anos e dizem-nos coisas em 2020

As estatístisticas mostram que em 1920 viviam neste planeta cerca de 1,91 milhares de milhões de pessoas (hoje vivem quase oito mil milhões) e que a população cresceu de 1920 para 1921 cerca de 17 milhões. Então, estimo que terão nascido nesse ano para aí uns 30 milhões de pessoas.

Na Grã-Bretanha, 1920 continua a ser o ano com a maior natalidade de sempre: quase 958 mil pessoas. Isso deve-se julgo eu, ao paradoxal aumento de natalidade que se seguiu à mortalidade devida à gripe de 1918-19 em conjunto com a desmobilização dos soldados participantes na primeira guerra. É preciso notar ainda que, em cerca de cem anos, a mortalidade infantil global desceu de cerca de 32% para menos de 4%.

É nesse contexto optimista, com aumento da população, diminuição lenta da mortalidade infantil e popularização (ainda que limitada) dos recursos disponíveis, como o automóvel, que nasceram as nossas heroínas centenárias. Já referi outros nomes, a propósito da literatura de ficção científica: Boris Vian, Isaac Asimov, Ray Bradbury e Frank Herbert. Têm também sido recordados outros nomes: Clarice Lispector, Mécia de Sena, Amália Rodrigues, Bernardo Santareno, Frederico Fellini, Cruzeiro Seixas e Rúben A., entre muitos outros.

Refiro-me a quatro mulheres cientistas: Rosalind Franklin (1920-1958), Elizabeth Cavert Miller (1920-1987), Marie Tharp (1920-2006) e Elaine Morgan (1920-2013). Acho relevante lembrá-las no ano em que o prémio Nobel da Química foi atríbuido a duas mulheres.

Duas foram casadas, duas nunca se casaram. Uma delas, Rosalind Franklin, morreu cedo e está envolvida em muitas histórias malcontadas, mal-entendidos e preconceitos. Poderia ter recebido o prémio Nobel pela descoberta da estrutura do DNA, mas morreu antes. Elisabeth, por outro lado, teve uma relação invulgarmente estável (ela e o marido são os únicos a ter uma biografia colectiva na National Academy dos Estados Unidos). Marie Tharp nunca se casou, mas teve uma relação intensa e conflituosa (dizem que platónica) com os seu chefe. Foi ela que fez o mapa do oceano que a tornou mais famosa do que o seu chefe. Elain foi casada e teve filhos ao mesmo tempo que desenvolveu teorias evolucionistas. Falar das suas vidas privadas será uma forma de machismo?

Julgo que talvez pudesse ser se falássemos das mulheres de hoje, mas tudo tem uma história. Falar da vida privada, dos casamentos e dos filhos das cientistas de hoje será com certeza, mas no tempo em que estas cientistas começaram a ser produtivas e relevante, talvez não seja. Todas, de uma maneira ou doutra sentiram ou referiram explicitamente os preconceitos de que as mulheres eram vítimas. Pelo menos Tharp encontrou um trabalho científico devido a boa parte dos homens ter ido para a guerra. Hoje não seria assim. Na minha opinião, o mais importante de 2020 não são as vacinas, porque isso já se sabia que iríamos conseguir. É sim, a ideia de igualdade e normalidade que conquistámos. Ainda há muito a fazer é certo (nas empresas químicas, por exemplo, os executivos de topo eram só 30% mulheres em 2018), mas vamos chegar lá. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

À morte ninguém escapa, ou daqui a tempo suficiente estaremos todos mortos


Este é um ensaio que muitas pessoas podem considerar deprimente. Fala da morte prematura e de uma contabilidade que alguns consideram insuportável, e refere assuntos de que normalmente não queremos ouvir falar. Mas, por outro lado, mostra-nos que vivemos num mundo muito mais seguro e, assim, pode ser encarado com serenidade quer sejamos religiosos ou não. Foi sendo escrito desde há uns anos para um livro e foi depois modificado para um jornal, mas continuava inédito.


No início do livro "A Riqueza e a Pobreza das Nações", David Landes apresenta como exemplo da tragédia que representava a falta do conhecimento que temos hoje em dia, a morte, em 1836, devida a uma infeção, que atualmente seria facilmente curada, de Nathan Rothschild, na altura com 58 anos, o homem mais rico do mundo. Nathan teria ainda que esperar quase cem anos pelos primeiros medicamento ativos contra as infeções, as sulfamidas e mais de cem anos pelo primeiro antibiótico, a penicilina. Teria também de esperar mais de trinta anos pela descoberta e generalização da assépsia, assim como mais umas décadas pela descoberta e uso da salicina e do ácido salicílico como antipiréticos e analgésicos e ainda mais algumas décadas pela descoberta de outros antipiréticos e analgésicos, como ácido acetilsalicílico, mais conhecido pelo seu primeiro nome comercial, aspirina. Também a anestesia demoraria mais de uma década a ser descoberta e a tornar-se comum. A história de Natham é especialmente relevante por ser o homem mais rico do mundo. Vamos encontrar várias outras pessoas que morreram de infeções semelhantes e que também não puderam ser curados, reis e presidentes, não por falta de dinheiro, mas sim por faltarem os medicamentos e os meios que não tinham ainda sido descobertos. Mas a vida não é eterna. Outros morrerão de combinações de idade avançada, azar e doenças ainda sem cura, como a actual doença do coronavírus (as vacinas estão quase prontas, diz-se). Desta doença morreu um banqueiro, Vieira Monteiro, uma cientista, Maria de Sousa, vários escritores, Luís Sepulveda, Rúben Fonseca, Maria Alberta Menéres, Maria Velho da Costa, entre muitos outros.

O veneno é a hipótese mais comum sugerida para as mortes prematuras e vamos encontrar ao longo da história várias supostas e garantidas vítimas. O rei D. Pedro V, o esperançoso, que morreu com apenas vinte e cinco anos, a sua esposa, D. Estefânia, que morreu ainda mais nova, e outros membros da família real, que morreram de doenças hoje evitáveis, como a febre tifóide e a difteria. Um príncipe da altura foi autopsiados pelos maiores e mais respeitados médicos e químicos portugueses da época, e os resultados publicados no jornal oficial do tempo, pois havia a suspeita e alarme público de que tivessem sido envenenados. Mas o envenenamento é residual nas  estatísticas. A maior causa de morte continua a ser as doenças cardiovasculares silenciosas e o sítio mais perigoso continua a ser a cama como referiu Mark Twain! Mas a morte trágica é relevante para a literatura e para a vida. Infelizmente, nem é sempre valorizamos o mais importante. Os dois caminheiros que morreram em 2017 não ingeriram pesticidas nem venenos artificiais, mas raiz de embude, uma planta comum em Portugal e, obviamente, natural.
 
Hoje começamos a ter mais problemas com bactérias resistentes (algo que não é novo - na verdade, sempre os microrganismos resistiram), descobrimos atónitos que ainda temos medo de vírus, discutimos efeitos secundários e o mau uso dos antibióticos, mas houve tempos em que uma simples infeção ou um abcesso poderia ser uma tragédia. Para além disso, as epidemias de difteria, peste bubónica, cólera, febre tifoide e febre amarela eram comuns no século XIX e princípio do século XX. Tal como a Nathan, a muitos personagens trágicos involuntários faltaram as condições sanitárias, os medicamentos e o conhecimento. Aos sifilíticos que tinham uma noite com Vénus (a qual muitas vezes nem era sua) e ficavam toda a vida com mercúrio, faltou a penicilina. Aos tuberculosos faltou, primeiro um maior entendimento sobre a doença que só chegou no final do século XIX, mas apenas para ficarem tanto mais sabedores como desamparados antes da descoberta da estreptomicina, que só ficou disponível em 1956. A muitos outros faltaram as condições de higiene e alimentação, as vacinas da difteria e poliomielite e muitas outras coisas que temos hoje como garantidas, mas que não existiam no tempo em que viveram.

E depois temos os acidentes e o azar. Sempre tivemos. As estatísticas dizem-nos que a quinta de causa de morte são os acidentes. Há relativamente pouco tempo, de entre os meus conhecidos e familiares dois jovens morreram de forma trágica e absurda. Vários outros, que não conhecia, morreram afogados e em acidentes de automóvel e mota. Já não temos notícia de jovens que morrem devido aos esquentadores mal instalados. Os equipamento estão cada vez mais seguros e a nossa tolerância menor, mas continuam a acontecer desastres na estrada, por exemplo. Quando eu era pequeno, as pessoas morriam muito nas motorizadas. Um primo meu morreu num cruzamento, ainda era muito novo, a mulher, mais nova ainda, com uma filha pela mão e outra ainda na barriga. Um jovem morreu numa placa de trânsito, numa motorizada que o pai não lhe queria dar. Outro matou um amigo por acidente com uma espingarda improvisada. Mais recentemente, um dos meus conhecidos parou num semáforo e foi atropelado por um carro que não parou. Um casal parou para ir virar e foi morto por um carro. Um jovem despistou-se na sua motorizada e morreu. Poderíamos encher páginas e páginas com acidentes imprevisíveis, ou não, com azares absurdos, ou resultados tristemente esperados.  

É obviamente um truísmo dizer que ninguém escapa à morte. Alguns atingem a imortalidade possível, mas todos morrem. As pestes, a tuberculose e a sífilis, as guerra e os acidentes são as causas mais famosas pelos comportamentos e literatura que lhes estão associados. O suicídio vem de seguida. Mas o suicídio sempre foi sobrevalorizado. Embora hoje em dia quase não haja notícias (há um código de conduta dos meios de comunicação quando noticiam suicídios para evitar fenómenos de imitação - o “efeito Werher”, dizem os números, é real). Por um lado devido aos seus aspectros trágicos, mas também pelo fascínio que este nos causa, o suicídio acaba por ser sobrevalorizado, mas é “só” a nona causa de morte. Albert Camus refere em "O Mito de Sísifo", de 1942, que o problema do suicídio é o mais fundamental em termos filosóficos. E Portugal seria o país de suicidas referido por Miguel de Unamuno? Talvez não, Itália e outros países também o foram...

A tuberculose e a sífilis contribuíram para muita literatura não só pela fatalidade, mas também pelos ambientes sociais e estados de alma e físicos que se lhes ligaram. Sendo doenças, em geral, de evolução lenta ou crónica, os doentes seguiam os ritmos das doenças ou, em muitos caso, tinham a ilusão de lhe escapar. Os sanatórios para a tuberculose, a brancura e o cansaço, a sífilis e as suas marcas e primeiros remédios, o sublimado, a tabes, a neurastenia e a e a loucura sifilítica são referências culturais incontornáveis. Devemos-lhes "A Montanha Mágica", que é a referência mais conhecida e emblemática aos sanatórios e aos tratamentos clássicos da tuberculose, o "Doutor Fausto", que romanceia em parte a sífilis, numa altura em que esta era já tratável, ambos de Thomas Mann, entre um número incontável de obras. Tanto os romances que envolvem personagens românticas, vítimas de tuberculose e sífilis, como os que evocam personagens assustadoras vítimas dessas doenças. Em "A Nossa Senhora de Paris", na personagem Quasimodo, Victor Hugo descreve, diz-se, uma vítima de sífilis congénita, hoje uma doença quase desconhecida.

Mas não é só a presença direta da doença e dos seus reflexos que é preciso lembrar. Também a sombra que essas doenças projetaram nos autores é importante. A sífilis e a tuberculose em Manuel Laranjeira contribuíram, com certeza, para as sua forma de ver o mundo desencantada e desiludida. O mesmo aconteceu com a tuberculose de António Nobre, Cesário Verde e de muitos outros. E mesmo o aparente otimismo e saudade da vida simples e saudável do campo de Júlio Dinis - que parece querer fazer esquecer a tuberculose que o matou novo - tem provavelmente muito de amargura e desilusão.
 
No Portugal do início do século XX a sífilis era um flagelo como se pode verificar pelos capítulos dedicados a esta doença no volume de 2011 organizado por Cristiana Bastos, "Clínica, arte e sociedade: a sífilis no Hospital do Desterro e na saúde pública". Thomaz de Melo Breyner registou cuidadosamente todos as histórias clínicas e pode verificar-se que a doença se transmitia de todas as formas possíveis, desde as mais clássicas relacionadas com a prostituição em que o marido contaminava a mulher e esta os filhos até às amas de leite que contaminavam os bebés e estes as mães que contaminavam os maridos. Neste Hospital foram atendidas no período de 1903 a 1906 mais de mil e quatrocentas prostitutas com idades entre os 15 e aos 36 anos, idade média de cerca de 22 anos, sendo que a maioria tinha 19 anos! Os tratamentos possíveis eram baseados em sais de mercúrio, mas a partir de 1910 há grande entusiasmo com arsenamina, um composto orgânico de arsénio, também conhecido por salvarsan ou «606», desenvolvido por Paul Erhlich em 1906, mas esse entusiasmo rapidamente se modera dado que este medicamento que tinha de ser injetado também tem efeitos secundários. Nas décadas seguintes os tratamentos vão alternando entre os as sais de mercúrio, a arsenamina e sais de bismuto. Paralelamente, surgem campanhas de informação, profilaxia e higiene que irão contribuir para a diminuição do número de afetados. Mas só a partir de 1943, com a penicilina, é que a doença passa a ser curável e é quase irradicada. Para trás ficaram as mortes prematuras devidas a esta doença, a loucura sifilítica, as marcas da sífilis nos sobreviventes e muitas outras coisas que hoje temos dificuldade em compreender.  

Como já referi noutro trabalho, a gripe pneumónica matou depressa e as suas vítimas no começo da idade adulta e quase nem tiveram tempo de transformar a doença em obras. Era uma vergonha morrer de tal doença. E, no entanto, talvez tenha matado mais pessoas que as duas grandes guerras. DE facto, a guerra é também uma grande fonte de mortes prematuras. Hoje em dia assiste-se a uma generalização da longevidade (embora o coronavírus possa ter implicações nas estatísticas). A vida humana poder não ter limites teóricos era já discutido em algumas revistas cientificas prestigiadas desde há alguns anos! No século vinte e vinte um podemos encontrar com relativa facilidade pessoas centenárias. A pediatra americana que com mais de noventa anos que ainda dava consultas e escrevia artigos, o cineasta Manuel de Oliveira, o arquiteto Oscar Niemaeyer e muitos outros. Mas a longevidade não é uma coisa nova. Matusalém é a personagem bíblica que mais viveu, mas não se consegue encontrar-lhe mais feitos do que o de ter tido filhos.

Como já referi noutro lado, a mitologia e a literatura mostram-nos exemplos dos efeitos inesperados da imortalidade. Jonathan Swift leva-nos a uma ilha onde por vezes nascem pessoas imortais, mas isso não é uma bênção. Infelizmente estes não param de envelhecer e o espetáculo não poderia ser mais deprimente: velhos surdos, dementes, vaidosos e caquéticos entregam-se às mais tolas e fúteis atividades. O narrador do livro conclui que a morte é necessária e a imortalidade uma maldição. Também José Saramago nas "Intermitências da Morte" nos faz antever os problemas que a imortalidade causaria. Já antes, no mito de Sisífo este problema será abordado. Sísifo, o mais esperto dos homens, segundo Homero, mas também o mais absurdo segundo Camus, enganou a morte duas vezes. Numa aprisionou a morte e, ninguém morrendo, despovoou-se o Inferno. Noutra conseguiu sair do Inferno. Acabou condenado a empurrar uma pedra que sempre rolava e voltava a empurrar, como é bem conhecido. Mas como referiu Swift e Saramago a imortalidade traria muitos problemas. Alguns destes problemas são resolvidos nos livros de vampiros - em "O Império do Medo" de Brian Stableford estes não se reproduzem ou reproduzem-se muito pouco - mas  criam outros. A criança que nunca cresce de a Entrevista com o Vampiro, por exemplo. A imortalidade origina problemas insolúveis e paradoxos. “Oh tempo, suspende o teu voo! De acordo, disse o tempo. Mas por quanto tempo?" escreveu o antropólogo francês Marc Augé.
 
A conhecida lengalenga À morte ninguém escapa lembra-nos o óbvio, mas apresenta-nos uma forma inglória de escapar à morte – fechar-se numa panela - e, no fundo não viver, não sentir o passar do mundo, ser esquecido (o problema de Peter Gynt), ou nem sequer ser encontrado pela morte,

    À morte ninguém escapa,
    Nem o rei, nem o papa,
    Mas escapo eu.
    Compro uma panela,
    Custa-me um vintém,
    Meto-me dentro dela
    E tapo-me muito bem,
    Então a morte passa e diz:
    -Truz, truz! Quem está ali?
    -Aqui, aqui não está ninguém.
    -Adeus meus senhores,
    Passem muito bem.


Mais do que um tempo que pára, como um relógio quebrado, é o absurdo de tudo se repetir, e tudo ter já sido feito, que angustia alguns. Mas isso é uma ilusão, o mundo avança e não volta ao mesmo lugar. Sisífo não empurra a pedra nem transpira da mesma forma. Camus diz-nos que devemos pensar que Sisífo é, apesar de tudo, feliz. 

CENSURA E EDUCAÇÃO NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DURANTE AS DITADURAS DE FRANCO E DE SALAZAR

A censura de livros para a infância e juventude tem um historial antiquíssimo e não há fronteiras físicas políticas, morais ou sociais que a...