Publicação convidada da investigadora Filipa Vala, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa:
Jornalismo não é ciência, mas as duas atividades têm alguma coisa em comum. A ciência parte de observações para construir hipóteses. Quanto melhor forem essas observações, melhor serão as hipóteses. As hipóteses são depois testadas.
O jornalismo relata factos. Nas colunas de opinião, os factos são utilizados para levantar hipóteses. As hipóteses são - com maior ou menor honestidade - contrastadas com mais observações. Tornou-se hábito nos media confundir opinião (levantar e discutir hipóteses) com notícia (relatar factos). Não pretendo discutir isso, mas apenas sublinhar que, tal como em ciência, quanto melhor for a informação de que se dispõe, melhores serão as hipóteses formuladas e a sua avaliação.
O Expresso (“Liberdade para pensar”) tem uma nova secção de vídeos de dois minutos e 59 segundos para “explicar o mundo e o país”. Estes vídeos não são noticiosos, são vídeos de análise, com uma boa dose de opinião mais ou menos explícita.
Pedro Santos Guerreiro, diretor do jornal, apresenta o último vídeo desta série: “
O presente envenenado do Orçamento de estado”. No vídeo são relatados factos e, tal como o título sugere, é formulada uma opinião: trata-se de um orçamento envenenado e, se não for cumprido, resultará num novo resgate.
O vídeo foi publicado no dia 18 de fevereiro e voltou a ser referido no Expresso Curto de 22 de Fevereiro, onde é apontado como uma fonte de informação sobre o “quem ganha e quem perde” no OE 2016. No mesmo dia o Expresso publicou uma análise dos vídeos de António Costa sobre o OE (“As meias-verdades do primeiro ministro”). Parece-me então oportuno juntar à lista outra análise: a do vídeo do Expresso. Pouco me importa concluir se o OE2016 é bom ou mau. Importa-me só avaliar a relevância da informação apresentada para a hipótese proposta no final do vídeo.
Para um vídeo que pretende explicar o mundo e o país, há uma notória falta de informação sobre o mundo e a Europa, e até falta informação sobre o país que poderia ser relevante para o objeto de estudo. Um orçamento vem sempre no seguimento de trajetórias políticas e macroeconómicas nacionais que, por sua vez, se inserem em determinados contextos internacionais e europeus. Mas há também informação errada, combinações de informação falaciosas (ou pelo menos mal explicadas) e informação deliberadamente mal apresentada. Em ciência tudo isto combinado daria uma má hipótese – se fosse meu aluno, não passava.
Alguns exemplos:
Aos 32 segundos de vídeo apresentam-se as três rubricas que mais pesam no OE: saúde, educação e juros. Apresentam-se também os valores médios dos salários de um médico e de um professor. O facto de salários médios serem dados como referências que acompanham os dados sobre a despesa total, leva-nos a crer que os salários têm um peso significativo na despesa. Fui saber qual é o peso da despesa com pessoal na Saúde e representa menos de metade da rubrica (39,8% do orçamento).
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Para além disto, o valor da despesa para a Educação está errado. Apesar do salário médio apresentado ser de um “professor do secundário, básico ou infância”, o volume de despesa é maior do que o orçamentado no OE de 2016 para a Educação (4. 086 milhões). É possível que por “Educação” Pedro Santos Guerreiro entenda Educação e Ciência e Tecnologia mas, dado que isso é uma particularidade de nomenclatura dele, conviria que fosse dito (sendo ainda que, nesse caso, não se percebe então a escolha do salário médio apresentado).
O vídeo avança de rubricas da despesa (saúde, educação, juros) para o défice orçamental - e daí para a dívida pública. Deixo aos economistas a tarefa de explicar a relação entre défice e dívida, e sublinho a seguinte frase: “nos últimos 40 anos, não houve um só ano em que o Estado não gastasse mais dinheiro do que aquele que recebe. E foi por isso que a dívida subiu, e continuou a subir e não parou de subir!”. Esta frase acompanha um gráfico com a trajetória da dívida pública entre 1995 e 2015. A curva sofre uma inflexão acentuada por volta de 2008. Pergunta lógica: o que se passou? Terá sido excesso de despesa em saúde e educação?
Há fenómenos que são locais (por exemplo, o BPN). Há fenómenos que são internacionais (por exemplo, a crise financeira). Há fenómenos que são europeus (por exemplo, o tratado orçamental) e depois há fenómenos que são o reflexo de vários destes fenómenos (e ainda de outros) combinados. Mas a trajetória da dívida pública portuguesa entre 1995 e 2015 não é peculiar. Olhando para países da zona Euro (e mesmo da UE), a curva da dívida portuguesa faz parte de um padrão muito claro. A crise financeira provoca um ponto de inflexão em todas as trajetórias. Ninguém adivinharia isso pela informação transmitida no vídeo.
Apresentam-se depois várias medidas do OE mas com especial atenção para as novas regras de cálculo para “os filhos” no IRS. Na primeira tabela mostrada neste bloco estão representadas parte das 22,7% das famílias com rendimentos entre os 7 e os 20mil €/ano, e parte das 7,1% famílias com rendimentos entre os 20 e os 40 mil €/ano. São as famílias que mais beneficiam desta medida. Mas 68,4% das famílias portuguesas vivem com rendimentos anuais inferiores a 7mil €/ano e por isso não pagam IRS. Pergunto: não seria útil – justamente na perspetiva do “quem ganha e quem perde” com o OE 2016 – explicar também, com simulações para outras medidas, o que é que o OE 2016 traz a esta categoria de rendimentos? Nada é apresentado em detalhe.
Um aparte: convém avisar as famílias monoparentais com 1007€ mensais e um filho que, ao contrário do que possam pensar olhando para esta tabela, Centeno não lhes vai dar mais rendimento líquido do que bruto.
Ainda “nos filhos” Pedro Santos Guerreiro faz-nos então o enorme favor de parar o vídeo “uns segundos” para vermos melhor uma tabela específica. Essa tabela diz curiosamente respeito às famílias que não beneficiam das novas regras de cálculo para “os filhos” no IRS. São simulações para as famílias de rendimentos mais elevados e que, no total, representam 2% das famílias. Numa perspetiva do “quem ganha e quem perde”, e tendo passado ao lado de medidas que afetam 68,7% das famílias, esta paragem numa fatia de 2% não se percebe.
E dos 2% de famílias que não ganham “nos filhos” no IRS passamos para a receita fiscal: e se o Pedro fosse um aluno meu a apresentar um trabalho era aqui que definitivamente o chumbava. “Os impostos sobem sempre” é uma frase enganosa quando a variável é a receita fiscal. Pedro Santos Guerreiro, jornalista de economia, sabe isto melhor que eu (que sou bióloga): a receita fiscal pode aumentar, sem aumento de impostos, como aconteceu em 2015 – em que os impostos não aumentaram (o IRC até baixou) – mas a carga fiscal (aquilo que os impostos tiraram da economia) cresceu em relação a 2014. Por isso, à falta de espaço para enunciar as medidas de alteração de impostos de cada OE, acrescentei o que aconteceu ao PIB neste período: percebe-se melhor assim não só o que é um valente aumento de impostos, como já agora também a importância de ter uma boa Constituição à qual os orçamentos têm que obedecer. Em 2014, o Tribunal Constitucional chumbou mais de mil milhões de medidas adicionais de austeridade (incluindo cortes de salários da função pública a partir dos 675€ brutos) e o PIB… cresceu. (Já agora o défice desse ano, que parecia ter sido cumprido, afinal não foi por causa da recapitalização do BES / Novo Banco. Não foram despesas na saúde e na educação – e nem sequer nos juros de dívida).
Mas este gráfico tem uma particularidade. As barras não partem do zero. A consequência é que não há semelhança alguma entre o aspeto visual do gráfico e a realidade. É um truque antigo que serve para distorcer diferenças. Mas não é admissível em ciência e duvido que seja num jornal. Principalmente quando o que é dito não contribui um mínimo para contrariar a impressão errada que o gráfico cria: o aumento da receita fiscal entre 2009 e 2016, que parece o dobro (a barra de 2016 tem o dobro do comprimento da de 2009) corresponde na verdade a um acréscimo de € 9.600 milhões.
Neste gráfico passa-se o mesmo. Se cada barra correspondesse em comprimento ao total da despesa que é suposto representar, o comprimento das barras de 2009 e de 2010 seria cerca de ¼ mais longo do que as outras barras todas - mas as barras de 2009 e 2010 têm o dobro do comprimento das outras. Isto não é honesto.
É verdade que as “gorduras do estado” só foram cortadas em dois dos anos de resgate. Também é verdade que esse corte correspondeu a menos de um quarto daquilo que foi cortado em salários da função pública. Se isto fosse dito, ao menos ficaríamos com uma ideia mais precisa de quanta “consolidação orçamental” se fez por via de corte em gordura e quanta por via de cortes temporários.
Desta consolidação que afinal não existiu, entramos diretamente nos 3 resgates que Portugal já teve e na hipótese apresentada: haverá um quarto resgate se Portugal não cumprir este OE. Ora, foi-nos dito (aos 57’’) que a dívida aumentou sempre, e foi-nos dito (aos 2’09) que os “orçamentos nunca são cumpridos”. Dado que já tivemos 3 resgates, tivemos pelo menos 17 orçamentos (sem contar retificativos) não cumpridos, em que a dívida aumentou (e que portanto tinham “presentes envenenados”) mas que não deram em resgates. Esta constatação devia ser uma alegria para todos nós. Embora seja uma hipótese muito pobre no que diz respeito a prever resgates, vem pelo menos na sequência do raciocínio seguido no vídeo.
Acontece que Pedro Santos Guerreiro não está alegre: a “dívida pública são sempre impostos futuros” e isso não desaparece “nem por artes mágicas”. A negação do pensamento mágico não deixa de ser interessante, principalmente para quem, como nós todos, passou quatro anos à espera que o PIB crescesse à força de austeridade. Pedro estala os dedos e aparece o Schäuble. Hum? Desisto.
Filipa Vala
Investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa