terça-feira, 20 de maio de 2025

NO AUGE DA CRISE

Por A. Galopim de Carvalho

Julgo ser evidente que Portugal atravessa uma deplorável crise, não do foro económico, financeiro ou social, mas dos partidos políticos e dos seus protagonismos na condução da vida nacional. Uma crise de valores sem precedentes, deveras preocupante que, salvo meia dúzia de excepções, bateu fundo e isso ficou bem claro na pobreza desta corrida ao poder que ontem teve fim. Sou um geólogo e a minha cultura social e política resume-se ao que tenho aprendido na vivencia atenta do dia-a-dia. Bom ou não, é este o meu sentir que, como sempre, divulgo como dever de cidadania, honesta e humildemente.

Sempre procurei pensar pela minha cabeça, na convicção de que a política partidária é uma habilidade para manusear conhecimentos do foro das ciências políticas e sociais, tendo em vista a conquista do poder. Dito isto e para que não restem dúvidas, reafirmo que sempre estive ao lado dos explorados e ofendidos, contra os exploradores e ofensores.

Todos os que os que não andam distraídos, e são muitos, têm vindo a dizer e eu também digo que, no tempo que estamos a viver, paira grande insegurança a nível internacional, não só no que respeita a economia, com inevitável reflexo na vida nacional, como também no que envolve o espectro da guerra e a corrida aos armamentos, com todas as consequências e sofrimentos daí decorrentes.

À semelhança do que se passou com a Primeira República, a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há meio século, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente de facultar aos cidadãos cultura civilizacional necessária na sociedade que se quer democrática. Esqueceu-se ou não quis. Há uma máxima que diz que “o poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”, máxima que é fácil entender como uma metáfora do que tem sido a nossa democracia.

Já escrevi o essencial destas minhas palavras não sei quantas vezes, mas sei que não foram as suficientes. Também já disse e volto a dizer que, entre os sectores da vida nacional que nada beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia está a educação. E, aqui, a escola falhou completamente. Uma escola que tem vindo e continua a dar diplomas, mas que não deu e continua a não dar cultura no sentido mais amplo da palavra.

Nesta “apagada e vil tristeza”, uma muito significativa parcela do nosso povo, destituído dessa cultura, foi presa fácil do populismo da extrema-direita. Uma extrema-direita que, beneficiando da liberdade e democracia que tanto custaram a ganhar, já mostrou, sobejamente, procurar destruí-las e voltar ao “antigamente”.

Tudo isto são gravíssimas preocupações nacionais, que se adicionam as das áreas da saúde, da habitação, da justiça e outras. Preocupações que, tendo em conta as condicionantes nacionais e internacionais, socialistas e sociais-democratas, cujos fundamentos que os inspiraram não estão, assim, tão afastados, tinham obrigação de se ter entendido, a bem deste, deste sempre, maltratado povo. Os seus actuais protagonistas mostraram não terem sabedoria ou vontade para o fazer, pelo que há que encontrar, entre os seus correligionários, quem o possa fazer. Chame-se Bloco Central ou outra coisa qualquer, mas é, no tempo que estamos a viver, em que as esquerdas se têm vindo a autodestruir, o único caminho a seguir.

Quem me conhece e tem acompanhado as minhas intervenções e tomadas de posição públicas, sabe, volto a dizer, da minha independência face aos aparelhos partidários e não espera de mim outro pensamento que não seja este.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

NO DIA EM QUE UMA SAPATILHA "ESMAGOU" A ACRÓPOLE

A imagem é, simbolicamente, forte. Foi, claro está, criada para o ser.
Traduz na perfeição o "ar do tempo", aquele que se respira em todo o lado e, a avaliar pelos currículos oficiais, nas escolas públicas.

A Acrópole (Atenas, século V aC.), património mundial da Unesco, símbolo do alvorecer do que designamos por cultura ocidental, a qual inclui o amor ao conhecimento e o despertar da democracia, pisada, esmagada por uma sapatilha de certa marca comercial com implantação global.

sábado, 17 de maio de 2025

Petroquímica

Por António Galopim de Carvalho

PVC é a sigla de Polímero de Cloreto de Vinil, um tipo de plástico composto por carbono, hidrogénio e cloro, amplamente utilizado em diversas indústrias devido às suas características de durabilidade, resistência, versatilidade e à capacidade de se adaptar a diferentes necessidades e aplicações. É um material omnipresente no nosso dia-a-dia, na construção civil, em casa, nos transportes e no trabalho. 
 
É um dos plásticos mais consumidos no mundo, produzido por polimerização do monómero de cloreto de vinil, um dos muitos derivados do petróleo ou do gás natural. É uma substância durável, resistente a muitos produtos químicos, à água e à humidade, ideal para aplicações em espaços húmidos como cozinhas e casas de banho. Não é tóxico, sendo seguro para o uso humano, de serviço à cozinha, à mesa e em recipientes de produtos de higiene pessoal (frascos, bisnagas e outros recipientes). É pouco denso, fácil de trabalhar e bom isolador térmico e eléctrico. É relativamente barato, quando comparado com outros produtos e reciclável (em alguns tipos). Produzem-se actualmente dois tipos principais de PVC, consoante os aditivos usados:
(1) um rígido, utilizado na fabricação de tubagens para instalações industriais (químicas ou de ventilação), hidráulicas e de esgotos, perfis para portas e janelas, forros e revestimentos de paredes, caixas d'água, placas e chapas industriais, mobiliário diverso, doméstico, de escritório e hospitalar, cartões de crédito (PVC laminado);
(2) um flexível, utilizado em produtos que exigem maleabilidade, utilizado no fabrico de mangueiras de jardim, de gás e outras, cortinas diversas, cabos e fios eléctricos revestidos, cobertura de toldos, pisos vinílicos, brinquedos (com certificação apropriada), bolsas e mochilas sintéticas, películas adesivas, capas impermeáveis para usar à chuva, bolsas e tubos para recolha de sangue, carteiras, sapatos e outros artigos de couro sintético.

ESSE (ANTIGO) HOMEM FUTURO

Parece que a "imaginação artificial" será um avanço da "inteligência artificial", disse-me alguém que me enviou o artigo Towards a science exocortex e de que encontrei uma versão explicativa aqui. Trezentas e seis notas e referências bibliográficas conferem-lhe um carácter "à prova de bala". Ou talvez não... a falta de enquadramento ético e epistemológico deveria ter deixado os avaliadores de sobreaviso, pois essa  "imaginação" é materializada num exocórtex com fins de investigação científica.
 
O seu inventor diz que isso é, ou será, muito útil para desenvolver estudos experimentais, no meu entender acomodados ao modelo clássico. O cientista poderá dispor de um software que funcionará como extensão do seu cérebro; da "conversa" com ele resultará inspiração e produção de pensamento.
 
Além da sofisticação tecnológica que se presume, não há aqui nada de verdadeiramente novo. Por muito que se afirme a "utilidade" desta ou daquela ferramenta, analógica ou digital, o que parece estar em causa é o que Hannah Arendt designou por "rebelião humana" contra a "condição humana" e contra o mundo que a acolhe. Acompanha-a o (estranho desejo) do ser humano de construir "algo produzido por ele mesmo", que o amplie e, em muitos casos, o substitua. E o leve para outros mundo.
 
Do livro A condição humana desta filósofa, publicado em 1958, transcrevo parte do admirável texto que constitui a sua introdução.
"Em 1957, um objeto terrestre, feito pela mão do homem, foi lançado ao universo, onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento dos corpos celestes – o Sol, a Lua e as estrelas. É verdade que o satélite artificial não era nem lua nem estrela; não era um corpo celeste que pudesse prosseguir na sua órbita circular por um período de tempo que para nós, mortais limitados ao tempo da Terra, durasse uma eternidade. Ainda assim, pôde permanecer nos céus durante algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se estes o houvessem provisoriamente admitido na sua sublime companhia.
Este acontecimento, que, em importância, ultrapassa todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo, teria sido saudado com a mais pura alegria não fossem as suas incómodas circunstâncias militares e políticas. O curioso, porém, é que essa alegria não foi triunfal; o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar uma das suas obras, não foi orgulho nem assombro perante a enormidade da força e da proficiência humanas.
A reação imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro «passo para libertar o homem da sua prisão na terra». E essa estranha declaração, longe de ter sido o lapso acidental de algum repórter norte-americano, refletia, sem o saber, as extraordinárias palavras gravadas há mais de vinte anos no obelisco fúnebre de um dos grandes cientistas da Rússia: «A humanidade não permanecerá para sempre presa à terra».

Há já algum tempo este tipo de sentimento vem tomando-se comum; e mostra que, em toda parte, os homens não tardam a adaptar-se às descobertas da ciência e aos feitos da técnica, mas, ao contrário, estão décadas à sua frente. Neste caso, como noutros, a ciência apenas realizou e afirmou aquilo que os homens tinham antecipado em sonhos – sonhos que não eram loucos nem ociosos. A novidade foi apenas que um dos jornais mais respeitáveis dos Estados Unidos levou finalmente à primeira página aquilo que, até então, estivera relegado ao reino da literatura de ficção científica, tão destituída de respeitabilidade (e à qual, infelizmente, ninguém deu até agora a atenção que merece como veículo dos sentimentos e desejos das massas).
A banalidade da declaração não deve obscurecer o facto de ela ser bem extraordinária, pois embora os cristãos tenham chamado esta terra de «vale de lágrimas» e os filósofos tenham visto o próprio corpo do homem como a prisão da mente e da alma, ninguém na história da humanidade havia alguma vez concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?

A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, a sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O artifício humano do mundo separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos.
Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar «artificial» a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, «sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores» e «alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função»; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.

Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo.
Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar da nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas de saber se desejamos usar nessa direção o nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

ÂMBAR

Por A. Galopim de Carvalho
 
Âmbar ou resina fóssil, é também um produto de oxidação de substâncias de origem orgânica. Tem cor amarela-acastanhada ou avermelhada, é transparente e parte com fractura conchoidal, lembrando o pês.
 
O mais antigo âmbar foi encontrado em formações do Triásico, mas conhecem-se resinas fósseis no Carbonífero e no Pérmico. As mais divulgadas são as da região do Báltico e resultaram de acumulação de resina de coníferas no Eocénico.

O âmbar do Báltico, ou succinito (do latim succinum, com idêntico significado), foi alvo do interesse dos homens do Neolítico. 
 
Temos provas da sua procura e utilização intensiva nos séculos XVI e XVII. Do seu estudo, na região da Península de Sambia, por geólogos alemães, no século XIX, quando se iniciou a sua exploração industrial, ficámos a conhecer tratar-se de um tipo particular de depósito sedimentar com cerca de 40 Ma, associado a uma vasta estrutura deltaica oriunda da Escandinávia, espalhada em leque, na parte sul do actual mar Báltico. 
 
O âmbar aqui contido nas “argilas azuis” (blue earth) encontra-se também disperso, por desmantelamento desta unidade, nos depósitos do litoral da Alemanha, Polónia, Lituânia e outros países do sul do Báltico, para onde foi transportado por acção fluvio-glaciária durante o Pleistocénico, sendo hoje também aí explorado.

A transformação diagenética da ou das resinas originais no produto fóssil envolve a perda de substâncias voláteis e processos químicos de polimerização, oxidação e outros, com participação activa e reconhecida de bactérias. 
 
Na sua composição elementar participam carbono, hidrogénio, oxigénio e enxofre em muito pequena percentagem (0,5 a 1%), elementos que, sabe-se hoje, fazem parte da macromolécula do âmbar. A dureza, na escala de Mohs, varia entre 2 e 2,5, a densidade oscila à volta de 1 (um) e o índice de refracção está compreendido entre 1,539 e 1,542. Torna-se plástico a 250ºC e funde a 287–300ºC. Estudos recentes, com utilização de espectrometria de infravermelhos, revelam grande semelhança entre esta resina fóssil e a resina actual de Cedrus asiatica. Outras investigações apontam uma certa identidade química com a resina de Agathis australis, uma araucária de grande longevidade.
 
Aprisionadas no succinito do Báltico foram referenciadas mais de duzentas e cinquenta espécies vegetais, como líquenes, fungos, musgos, flores e frutos diversos, sementes, pólens e esporos. Tal diversidade aponta para florestas de montanha numa latitude então subtropical a tropical, como são actualmente as das regiões montanhosas do sudeste asiático, dominadas por coníferas, as responsáveis pela anormal produção de resina que, sedimentada e afundada, evoluiu, diageneticamente, para âmbar. Várias espécies de árvores devem ter concorrido nesta produção e a elas se deu o nome colectivo de Pinus succinifera. 
 
Do reino animal são igualmente muitas as espécies preservadas no âmbar. Variadíssimos artrópodes, formigas, mosquitos, aranhas, etc., etc., e até pequenos vertebrados (lagartos) têm sido encontrados e estudados nos seus mais ínfimos pormenores, anatómicos, histológicos e genéticos.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O 18.º DOMÍNIO DE EDUCAÇÃO CIDADANIA? OU SERÁ O 19.º?

As minhas desculpas aos leitores por insistir na Educação para a Cidadania/Cidadania e Desenvolvimento. É que, tanto quanto vejo, há mudanças de relevo nesta componente do currículo escolar, as quais, por não tocarem directamente as disciplinas, tendem a passar despercebidas ou a serem consideradas de menor importância. 

O entendimento que tenho é diferente. Essas mudanças são, de facto, significativas: é significativa a publicação do Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar, assim como é significativa a replicação de documentos e iniciativas afectos não só a este domínio dito de cidadania mas a vários outros. E é muito significativa a consubstanciação de um novo domínio de cidadania que estava esboçado pelo menos desde 2021.

É sobre este enigmático domínio, designado por Educação para a Ética e Integridade, que deixo breves notas. Peço ao leitor para seguir o meu raciocínio.

1. Na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC) estão contemplados dezassete domínios de educação (ou será "literacia"?) para a cidadania, mas podem ser dezoito pois a Literacia Financeira e a Educação para o Consumo, que já estiveram separadas, têm, na verdade, identidade própria (ver aqui), que lhe é conferida pelos seus referenciais, materiais "pedagógicos", formação de professores, concursos, etc. A minha interpretação é que, numa tentativa de conter o número de domínios (que desde a reforma implementada logo no início do século, não tem parado de aumentar), a tutela decidiu arrumá-los num só.

Enfim, o que aqui é importante dizer é que a tal Educação para a Ética e Integridade não consta na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, ainda que, em abono da verdade, nesta estratégia se deixe aberta a possibilidade de as escolas, caso entendam, incluírem outros domínios.

2. A Educação para a Ética e Integridade não me é estranha, já a havia incluído nas minhas aulas de formação de educadores e de professores como exemplo de reivindicação de novos domínios de Educação para a Cidadania. Efectivamente, vários são os que se encontram em lista de espera...

O historial, tanto quanto fui acompanhando na imprensa, é mais ou menos este: em 2001 foi criado o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) (ver aqui e aqui), destinado a “promover a difusão dos valores da integridade, probidade, transparência e responsabilidade”. Porém, em 2024, o estado do “mecanismo” (curiosa designação!) era consensualmente classificado como de “inacção” nos propósitos sociais, políticos e económicos a que se havia proposto. Também foram notícia divergências com o Governo sobre aspectos pouco edificantes, sobretudo quando se puxam os galões da ética (ver aqui, aqui e aqui). Não sei, não aprofundei, se foi por causa disso que o Conselho de Ministros aprovou recentemente mudanças na orgânica do tal MENAC (ver aqui).

3. Na sua origem, o "mecanismo" tinha prevista a Escola (leia-se Escola Pública) como "uma área prioritária de actuação" (ver aqui). Em 2020 noticiava a Agência Lusa (ver aqui):

"Segundo o projeto de proposta de lei das Grandes Opções do Plano (GOP) para 2021, o Governo quer «introduzir a temática ‘Corrupção – Prevenir e Alertar’ como área transversal a vários domínios da cidadania e desenvolvimento em todos os ciclos do ensino básico e secundário e dar relevo à matéria em unidades curriculares do ensino superior e em bolsas e projetos de investigação financiados por agências públicas»".

Várias escolas aderiram à solicitação (ver exemplos aqui, aqui, aqui) e algumas receberam "prémios e distinções" (ver aqui), parte do "pacote" destas iniciativas.

Nada de original, as organizações, empresas, grupos, etc. a quem cabe resolver problemas relevantes, difíceis, que o mundo apresenta, que têm essa responsabilidade, remetem-nos para a Escola, para que ela os assuma em primeira linha. Em concreto, para o saco sem fundo que é a Educação para a Cidadania. Esta circunstância merecia um comentário que, pela sua extensão e necessária profundidade, deixo para outra ocasião.

Ainda assim, neste caso, não é possível deixar de lado a questão: caberá à Escola funcionar como bastião de primeira linha da luta anticorrupção, que a avaliar pela criação do "mecanismo", é um problema social, económico e político seriíssimo? Tanto mais quando se percebe que o “mecanismo” não tem cumprido os objectivos para os quais foi criado?

Devo sublinhar que não se pode negar a importância da Escola na educação para os valores acima enunciados: eles têm de ser aí veiculados, na esperança de que os alunos os adoptem como marcas do seu (bom) carácter. Contudo, a Escola não pode, não deve assumir funções que cabem, por direito, a outras entidades.

4. Como bem sabemos, isto não importa ao Ministério da Educação, que acolhe mais esta, aquela e a outra entidade no dito saco sem fundo, sendo o "mecanismo" (tanto quanto sei) a mais recentemente acolhida, cenário em que "recomendou ao Governo" a aprovação do Referencial de Educação para a Ética e Integridade.

O documento, resultante de parceria e colaboração diversa (Direção-Geral da Educação, All4Integrity, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Mecanismo Nacional Anticorrupção, Transparência e Integridade de Portugal, e Universidade de Antuérpia) está agora em consulta pública.

Uma vez aprovado, constituirá suporte para o 18.º domínio de Educação para a Cidadania. Ou será o 19.º?

CONDENSAÇÃO

Por A. Galopim de Carvalho

Muitas pessoas perguntam porque é que, a garrafa de água ou de vinho ou a lata de Coca Cola, saídas do frigorífico para a mesa, começam a ficar cheias de bolhinhas de água, com se mostra na imagem. A resposta é simples, imediata e chama-se CONDENSAÇÃO.

Condensação, também chamada de liquefação, corresponde à passagem do estado gasoso para o estado líquido, cedendo calor, ou seja, arrefecendo. É o fenómeno físico inverso da vaporização ou evaporação. Vaporização ou evaporação é o processo em que partículas de uma substância no estado líquido, absorvendo energia (calor), passam ao estado gasoso ou de vapor.

 No caso vertente, o vapor de água da atmosfera, arrefece e condensa no contacto com a superfície fria das garrafas ou da lata.

Lembremos que a atmosfera terrestre é composta basicamente de uma mistura de gases, sendo 78% de azoto, 21% de oxigénio e, em menores quantidades, vapor de água, dióxido de carbono, árgon e traços de outros gases. Lembremos, ainda, que humidade do ar é a quantidade de água presente na atmosfera sob forma de vapor, e que varia em relação como clima e outros factores. Muito elevada nas regiões quentes e húmidas, como acontece na Amazónia, e muitíssimo baixa das regiões ditas áridas, como é o caso no deserto da Saara.

Hoje, por exemplo, a humidade do ar, em Lisboa, varia entre 51% e 87%. Estes números são valores relativos, pois indicam a quantidade de água existente no ar (humidade absoluta) e a quantidade máxima que poderia haver, à mesma temperatura, no chamado ponto de saturação (100%).

Mais pormenorizadamente, humidade relativa do ar é a relação entre a quantidade de vapor d'água presente no ar e a quantidade máxima que ele poderia conter na mesma temperatura, expressa em percentagens (%). Por exemplo, 100% de humidade relativa - o ar está completamente saturado com vapor d’água, situação comum em dias chuvosos ou nevoeiros; 50% de humidade relativa - o ar contém metade da quantidade máxima de vapor d’água que poderia conter àquela temperatura; menos de 30% de humidade relativa – diz-se que o ar está seco, situação comum em regiões áridas e semiáridas e nos dias de sol intenso, no Verão alentejano.

A EDUCAÇÃO FINANCEIRA NO PRÉ-ESCOLAR: ALÉM DO REFERENCIAL, AGORA O GUIÃO.

Na visita que ontem fiz ao site online da Direção Geral da Educação vi que se havia acabado de disponibilizar o Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar (para o ensino básico e secundário já existiam Cadernos de Educação Financeira).

Explica-se, muito naturalmente, no texto de apresentação que o documento surgiu "no âmbito de uma parceria entre o Ministério da Educação, Ciência e Inovação, o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões) e quatro associações do setor financeiro (Associação Portuguesa de Bancos, Associação Portuguesa de Seguradores, Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Patrimónios e Associação de Instituições de Crédito Especializado)
 
Não é estranho, portanto, para o Estado constituir uma parceria com entidades financeiras. Sobre isto já me pronunciei por diversas vezes neste blogue, mas não deixo de me surpreender com cada passo que é dado na ampliação e consolidação desta e de outras parcerias congéneres.

Abro o documento: são 96 páginas!
 
Exploro a estrutura: até certo ponto (p. 26) um texto, que se pretende enquadrador, denso, salpicado de referências bibliográficas (onde não faltam as da OCDE) que lhe conferem patine científica. A partir desse ponto, a referência aos temas e sub-temas que constam no Referencial de Educação Financeira e propostas de implementação (p. 32 e seguintes) e a apresentação e análise de projectos (p. 49 e seguintes).
 
Avanço para a leitura, mas passados poucos parágrafos desisto! Rediz-se o que é dito e redito até à exaustão nos documentos que indiquei em texto anterior e que conheço bem. Já fiz esse esforço (e que esforço!) de decifração e de interpretação, dispenso-me de o continuar.

Regresso à realidade e a realidade é muito simples: este documento destina-se a operacionalizar, a partir das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar, o que se designa por "educação financeira" de crianças dos três aos seis anos de idade! E, pela capa, aqui reproduzida ao lado, percebe-se que sentido ela tem. Tão feliz que está o menino e a menina a brincar com a moeda oficial!
 
Sendo referida na bibliografia a Convenção sobre os Direitos da Criança (2019), seria de esperar que as entidades e autoras lhe tivessem prestado a devida atenção, nomeadamente no que respeita à dignidade humana, que toca as crianças de modo muito particular dada a sua particular vulnerabilidade, a formas, como as que estão em causa, de conduzir a vida pessoal naquilo que só às pessoas diz respeito.

terça-feira, 6 de maio de 2025

A "FILOSOFIA DE BUFFETT" NO SISTEMA DE ENSINO PÚBLICO PORTUGUÊS COM VISTA À "PRODUÇÃO" DE UMA GERAÇÃO DE EMPREENDEDORES FINANCEIROS

 
Revisito, no sítio online da Direção Geral da Educação, os materiais disponíveis para a "Literacia Financeira", que, aliada à "Educação para o Consumo" ("literacia" e "educação" são usadas indistintamente ainda que, como é óbvio, não signifiquem a mesma coisa), constituem uma das dezassete domínios da área curricular agora designada por "Cidadania e Desenvolvimento". 
 
No respeitante à "Literacia/Educação Financeira", a tutela disponibiliza os seguintes documentos/núcleos de documentos: "Plano Nacional de Formação Financeira", "Princípios Orientadores das Iniciativas de Educação Financeira", Referencial de Educação Financeira", "Cadernos de Educação Financeira", "Boas Práticas", "Recursos Pedagógicos", acções de "Formação" para Professores, "Notícias e eventos", "Projetos e iniciativas", e "Recursos Pedagógicos". 
 
Em destaque, na rubrica "Recursos" está uma "actividade de pesquisa e debate" intitulada "Quem foi Warren Buffett?". Desconhecendo quem é Warren Buffett fui, como se recomenda aos alunos, "pesquisar". É um self made man americano que cedo, ainda criança, revelou talento para fazer negócios. Enriqueceu, tornou-se multimilionário, um dos maiores do mundo. Como é normal, tornou-se filantropo, também um dos maiores do mundo (doará 99% da fortuna para causas que determinou em carta). É autor de obra considerável. Como Enriquecer na Bolsa com Warren Buffett, é um dos seus livros, que já teve doze edições em Portugal.
Warren Buffett é o que é: um empreendedor financeiro como poucos.

A questão que devemos, que temos obrigação de colocar é se, nas escolas públicas, exemplos de sucesso de empreendedorismo financeiro devem ser apresentados aos nossos jovens para que (como mencionei no texto anterior, que acima refiro) elas não conheçam outra possibilidade de existência e, acrescento agora, sem crítica sobre valores como sejam, por exemplo, a justiça distributiva.
 
Na verdade, esta "actividade", apresentada por uma entidade designada por Genially para ser "consumida" por professores, levará os alunos a conhecer as estratégias e a pertinência da "filosofia de Buffett" com vista à sua "aplicação no mundo real".

Como bem assinalou o leitor Rui Ferreira, com palavras retiradas da entrevista a Alain Supiot, "sobre o que é justo, há um problema". Era esse problema que deveria ser levado para a escola pública no âmbito da Educação para a Cidadania.

Nota: Estando Warren Buffett vivo, o tempo verbal usado no título da actividade será um engano?

domingo, 4 de maio de 2025

"COLONIALISMO DIGITAL". OS SERES HUMANOS COMO "PRODUTOS" APROPRIADOS POR EMPRESAS

Vale a pena também ver na RTP Play o documentário com o título Justiça Artificial: Justiça na Era do Colonialismo Digital, assinado por Simón Casal de Miguel (aqui). Reproduzo as intervenções que me parecem melhor esclarecer a expressão colocada em subtítulo: Colonialismo Digital.

21:00. Markus Gabriel (Filósofo, Universidade de Bona, Alemanha). Se usarmos um motor de pesquisa (…) estamos a fornecer dados a uma empresa porque as nossas acções deixam rastos (…). São acções que têm valor económico porque quantos mais dados a empresa tiver mais previsíveis somos nós e todos os semelhantes a nós.

22:00. Nick Couldry (Cientista da comunicação e sociólogo, London School of Economics and Political Science, Reino Unido). Esta mudança no marketing funciona utilizando toda a vida como um meio de produção eficiente a para a geração do lucro. É uma reinvenção estrutural da relação do capitalismo com o mundo.

22:34. Luciano Floridi (Filósofo. Universidade de Oxford, Reino Unido. Conselho de Especialistas de Alto Nível sobre Inteligência Artificial da UE). Estamos a assistir à maior experiência social de sempre na nossa História (…). Empresas que governam as nossas vidas [e] de forma cada vez mais profunda desempenham funções sociais nas nossas vidas.

22:59. Nick Couldry. O que acontece com os dados em grande escala (…) não se prende apenas com a continuidade do capitalismo. Pelo ano 1500, talvez um pouco mais cedo, Espanha e Portugal fizeram uma descoberta avassaladora. Descobriram algo chamado, ou a que chamaram, Novo Mundo, lugares diferentes onde havia outras pessoas com vidas prósperas mas que eles não conheciam e que tinham uma abundância de ouro, prata e outros recursos. Isso deu origem a um período de 50 anos de ponderação, particularmente na corte espanhola, sobre a importância disto, o que se poderia fazer dali com aquela oportunidade incrível. Desenvolveu-se gradualmente a ideia, uma espécie de colonialismo racional. O território, o ouro e a prata neste território e a mão de obra necessária para a sua extração estavam ali mesmo à mão de semear da Europa. Era assim o colonialismo original [cuja] essência era o simples acto de apropriação de ser uma parte do mundo a ficar com tudo, de dizer: «Isto pertence-nos. Não é vosso, é nosso». Defendemos que há um momento histórico de proporções parecidas a decorrer neste momento. Mas agora acontece que há um novo bem para possuir. Esse novo bem são os seres humanos, as suas potenciais experiências, as suas vidas interiores, os padrões que se observam na actividade que têm no mundo. É esse o novo mundo que tem à disposição.

22:45. Luciano Floridi. Desde o sistema de saúde ao mercado de trabalho, desde a educação à segurança, nomeadamente à cibersegurança, a presença destas empresas é notável.

24:45. Nick Couldry. (...) se o objectivo estratégico é introduzir a possibilidade de influência em todas as nossas interacções incluindo as mais íntimas existe uma possibilidade de influência. Isto transtorna o próprio conceito de liberdade (…). Só existe uma razão para capturar dados: a discriminação. É a distinção entre A e o que não é A, o que pertence e o que não pertence a uma categoria. A função dos dados é essa, dividir o mundo. É para isso que servem, têm de categorizar e discriminar.

27:09. Gry Hasselbalch (Chefe de investigação de Ética de Dados, Conselho de Especialistas de Alto Nível sobre Inteligência Artificial da UE). Ao dividir em caixas e categorias demasiado rígidas a vida e os destinos, tudo o que está entre os limites fica de fora. Quando há um sistema demasiado rígido a tentar prever tudo, que tenta controlar a nossa vida e torna-la mais eficiente só conseguimos ver na realidade o que pode ser útil. Assim é a inteligência automática (…). Penso que esse é o principal problema dos sistemas de inteligência artificial (…) Perdemos todas as oportunidades de agir com espírito crítico. Se houver alguém que contrarie a cultura e o sistema em vigor, o percurso previsto das coisas.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

ACERCA DA DIGNIDADE HUMANA NO TRABALHO

Vale a pena ver na RTP Play (aqui) a entrevista com o título O trabalho não é mercadoria, que a historiadora Raquel Varela fez a Alain Supiot, especialista em filosofia do direito e direito social e do trabalho. Reproduzo três breves extractos:

01:03 "... considerar o trabalho como uma mercadoria é algo muito recente na história do trabalho. Surge com o capitalismo (...) – e isto foi o grande economista Karl Polanyi que o explicou – tratar como mercadorias três coisas que não são mercadorias: o trabalho, isto é, os seres humanos, a terra e a moeda (...). São ficções jurídicas que pressupõem, para serem defensáveis, que exista um direito ambiental que proteja a natureza, um direito do trabalho que proteja os seres humanos e uma legalidade monetária que garanta o valor da moeda. Na maior parte da História, o trabalho não é considerado uma mercadoria. Havia homens livres que viviam da venda do produto do seu trabalho e havia os escravos considerados eles próprios uma mercadoria."

39:26. "O neoliberalismo é o último avatar do cientismo. É a ideia de que haveria uma ordem espontânea no mercado que é preciso impor em todo o planeta e então surgirá a melhor justiça possível. E todas as tentativas dos seres humanos para questionar se é justo ou não, só irão entravar o bom funcionamento espontâneo, homeostástico da sociedade (...). Donde, a necessidade de restringir a democracia. Isto é claro nos autores neoliberais. O grande historiador do neoliberalismo é Quinn Slobodian que escreveu um belíssimo livro sobre ele. E eles estão todos de acordo ao dizer que a democracia não pode perturbar a distribuição das riquezas do trabalho porque isso é feito espontaneamente nas melhores condições possíveis pelo mercado. É por isso que foram admiradores de Pinochet, ou seja, de um sistema onde não existe essa perturbação. Hayek, que é uma das grandes figuras da economia neoliberal, para descrever o papel dos governos utiliza uma imagem muito eloquente: são como os relojoeiros que lubrificam os mecanismos do relógio. Isto é, o relógio funciona sozinho e o governo deve velar para que o mercado funcione por si só. Evidentemente, trata-se de uma miragem que produz injustiças e a injustiça produz sempre violência."

50:26. "Os nazis falavam de material humano e Estaline de capital humano. Estamos aqui numa espécie de cientismo que vê os seres humanos como matéria-prima e que é cego perante as questões antropológicas do trabalho. Por conseguinte, é preciso sair disso... Vou citar o Preâmbulo da Constituição da OIT [Organização Internacional do Trabalho] estabelecendo um regime de trabalho verdadeiramente humano (...) que permita a cada um incorporar uma parte daquilo que é naquilo que faz. Tanto Estaline como Hitler consideravam aqueles que metiam nos campos como escravos destinados à morte (...). Simone Weil diz, e muito bem, que é a projeção sobre o trabalho humano da noção física de força. Só vemos neles uma força que podemos dominar."

O Primeiro 1º de Maio

Por A. Galopim de Carvalho

Sete dia antes, Portugal inteiro saíra à rua, conhecidos e desconhecidos abraçavam-se, nos olhos havia sorrisos e lágrimas da alegria. Vitoriavam-se os militares que haviam posto fim a meio século de estúpido sufoco. Foram sete dias e sete noites de festa espontânea e verdadeira “O povo está com o MFA” e “O povo unido, jamais será vencido” ouviam-se por todo o lado. Os homens e as mulheres da minha idade (eu tinha então 43 anos) estávamos na fase mais pujante das nossas vidas quando fomos apanhados por este extraordinário o feliz acontecimento. 
 
Ninguém revelou o mais pequeno apego ao regime acabado de cair, no qual era suposto terem sido moldados. Não se viu um gesto nem se ouviu uma palavra em sua defesa. A injecção de ideologia salazarista que, como eu, receberam na Mocidade Portuguesa, não surtiu qualquer efeito. O ditador falecera quatro anos antes e, com ele, a filiação obrigatória na já então defunta organização da juventude do Estado Novo. Em termos que se visse, a Mocidade Portuguesa não fez nem os homens nem as mulheres que Salazar sonhou. Sentia-se que o país era nosso.

A fraternidade e a solidariedade pareciam ir desabrochar como os cravos de Abril. Mas foi Sol de pouca dura. Já o disse e direi tantas vezes quantas as necessárias, que a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há 51 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se sistematicamente de uma numerosa parcela deste povo, a raiar a miséria ou a viver dentro dela; a comer, cada vez em maior número, do Banco Alimentar Contra a Fome e de outas organizações de solidariedade social; sem habitações condignas para viver e a desanimar de esperas ao frio e à chuva, noites a fio, nas filas dos Centros de Saúde ou a morrer nas urgências dos hospitais ou à porta delas, nas ambulâncias. Classe política que tem vindo a perder preocupações pela ciência e pela cultura, que mantém uma justiça para ricos, à margem de outra para pobres e um sistema de educação que falhou redondamente.

Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo, a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a história já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. Estes, que não fizeram um gesto ou proferiram uma palavra em defesa do regime que caiu de podre, disfarçaram-se e abrigaram-se, depois, à sombra dos partidos de direita, legalizados, e esperaram, calados, até o momento em que os sucessivos erros dos políticos que nos têm governado e a Liberdade, lhes abriram portas e janelas e ei-los a somar os votos de uma população que se sente traída face às promessas daqueles dias radiosos.

Há 51 anos vivi intensamente esse dia, no trajecto do Marim Moniz à Alameda D. Afonso Henriques e no estádio da então FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), onde Mário Soares e Álvaro Cunhal, lado a lado, falaram para mais de cem mil manifestantes e helicópteros militares despejaram sobre eles braçadas de cravos.

Quem viu a manifestação do passado dia 25, na Avenida da Liberdade diz-me que há uma passagem de testemunho em curso, estampada nos rostos e cartazes de muitos jovens que estão a tomar a Liberdade nas suas mãos. Quero acreditar que assim seja e isso deixa-me feliz. Diz me, ainda, que eles eram a maioria dos presentes, e que os presentes eram muitíssimos.

Vamos, pois, acreditar que “O povo unido nunca mais será vencido!”

quinta-feira, 1 de maio de 2025

PARA UMA HISTÓRIA DA MINERALOGIA, NUMA CONVERSA FICCIONADA DO AUTOR COM D. JOÃO III

Por A. Galopim de Carvalho

(Do meu livro Conversas com os Reis de Portugal - Histórias da Terra e da Vida, Ancora Editora, 2013)


- Soube que estavas aqui e tenho uma série de questões que gostaria que me ajudasses a esclarecer. São questões no domínio da mineralogia.
- Se eu souber, tenho todo o gosto em vos ser útil.
- Percorro muitas vezes os mais variados departamentos e serviços desta Universidade que ainda considero como minha. Ultimamente tenho-me detido mais tempo e com particular atenção na esplêndida sala de mineralogia do Museu Mineralógico e Geológico, no antigo Colégio de Jesus. Os minerais expostos encantam-me pela beleza dos seus cristais, dos seus brilhos e cores. Fiquei, assim, curioso em saber mais sobre eles, sobre a natureza e a utilidade destas dádivas da criação. Sou hoje um curioso obsessivo acerca da história do que quer que seja. Das civilizações, das artes, das tecnologias, das coisas, em geral. De momento, estou interessado em seguir os passos que conduziram ao conhecimento que actualmente temos dos minerais.
- Desde os tempos mais remotos que os minerais despertaram a curiosidade e o interesse dos nossos antepassados. – Iniciei eu o discurso que me pareceu mais adequado ao interesse do monarca. – A utilização intensiva do sílex, do quartzo, da calcedónia, da obsidiana ou vidro vulcânico na feitura de utensílios vários e de objectos de adorno e votivos, permite-nos concluir que o homem pré-histórico os procurou sistematicamente e que, portanto, lhes dispensou tratamento racional, ainda que rudimentar. A manufactura de objectos de ouro, cobre, bronze e ferro mostra que as primeiras civilizações, prospectaram, exploraram e transformaram os correspondentes minérios. Os pigmentos minerais usados nas pinturas rupestres do Paleolítico superior, ou sobre os corpos dos seus protagonistas, permitem conclusão idêntica. Mesmo antes de terem nome já muitos minerais eram conhecidos e procurados pelas suas utilidades.
- Acho que encontrei a pessoa certa para conversar sobre este assunto. – comentou D. João III, satisfeito com esta introdução, o que me encorajou a subir o nível da exposição.
- A primeira obra escrita visando a mineralogia, de que temos conhecimento, – continuei - é um Tratado sobre as Pedras e foi escrito por Teofrasto, filósofo grego do século III antes de Cristo. Devemos a este discípulo de Aristóteles a primeira classificação mineralógica, baseada nas respectivas utilidades. Nesta classificação distinguiu, sobretudo, minérios, pedras preciosas e pigmentos. Há, no entanto, que ter em conta um longo caminho percorrido pelas civilizações que o precederam, no domínio do conhecimento das substâncias, das suas natureza e constituição. Em Roma, no século I, Plínio, o Velho, uma das vítimas da histórica erupção do Vesúvio, tem lugar de destaque através da sua “História Natural”. Nesta obra monumental, em 37 volumes, o autor retoma Teofrasto e volta a falar de minérios, pigmentos e gemas, uma outra maneira de dizer pedras preciosas.
- E a alquimia, de que tanto se fala, qual foi o seu papel nesta caminhada?
- Podemos dizer que a mineralogia percorreu a Idade Média de mãos dadas com a alquimia, numa prática e numa atitude trazidas pelos árabes, seus cultores, sob a designação de Al kimia, ou ”pedra filosofal”. Esta expressão encerra um conceito carregado de sabedoria, nem sempre devidamente apreciado. É necessário lembrar que todo este saber vem da Antiguidade, com destaque para a chinesa, a babilónica, a hindu e a egípcia, através da tradição popular e dos textos eruditos dos clássicos gregos e latinos. Os alquimistas desenvolveram a Polypharmacia, uma actividade onde se experimentavam, entre outros, processos como combustão, sublimação, dissolução e precipitação e que, de mistura com outros procedimentos fantasiosos à luz do conhecimento actual, deram nascimento, não só à química como à mineralogia.
- Quer dizer que a mineralogia tem aí as suas raízes?!
- Exactamente. Foi, de facto, no seio da alquimia que a mineralogia cresceu, deixando para trás muitas das concepções fantasistas e místicas dos escolásticos. Mas só cresceu e se afirmou como disciplina científica no decurso dos séculos XVIII e XIX, a par da química, fazendo-a progredir e tirando dela o essencial do seu próprio aprofundamento como ciência de acentuada organização sistemática. A partir da 2ª metade do século XVI e na sequência dos trabalhos de Agricola, os alquimistas começaram a dividir-se por duas correntes.
- É do meu tempo esse Agricola. Foi também um notável médico alemão, de nome Georg Bauer. Mas, desculpa a interrupção, ias referir as duas correntes em que se dividiram os alquimistas.
- Uma delas preconizava explorar a natureza das coisas, caminhando no sentido da química científica. A outra cultivava uma atitude fantasista e extravagante, em busca da pedra filosofal, responsável pela imagem negativa que, injustamente, tem sido divulgada em torno da alquimia e dos alquimistas. Esta outra corrente teve como resultado retardar o avanço da química e, consequentemente, da mineralogia, disciplinas que, como disse atrás, só começaram a ganhar foros de ciência a partir do século XVIII.
- E o que é que me podes dizer sobre os lapidários?
- Eram manuais de medicina e magia plenos de descrições de minerais e pedras, entre as quais muitas meramente fantasiosas. Sei que surgiram e se desenvolveram durante a Idade Média. Inicialmente manuscritos e, portanto, de divulgação limitada, passaram a ser impressos a partir da descoberta da Imprensa, no século XV.
- O meu mestre Tomás de Torres tinha um lapidário, mas confesso que, na altura, não me despertou grande curiosidade.
- O avanço do conhecimento deu lugar a obras escritas com preocupações de rigor científico, ao nível do possível na época, entre as quais a do italiano Ulisse Aldrovandi, no século que se seguiu ao vosso. Por causa dessa obra, este mestre da Universidade de Bolonha foi alvo de forte perseguição por parte do Santo Ofício.
- Hoje envergonho-me dessas perseguições, muito encorajadas pelo espírito retrógrado da Contrarreforma que dominou Portugal.
- Na mesma época, – continuei – o dinamarquês Nicolau Steno, sem qualquer oposição dos guardiões da Fé e do saber antigo, revelava haver constância nos valores dos ângulos entre faces homólogas nos cristais de quartzo. Trata-se de um pequeno, mas decisivo passo que abriu portas ao estudo dos cristais e, consequentemente, dos minerais. Deve dizer-se que a Inquisição mostrava alguma tolerância pelas investigações de pendor matemático e geométrico que não questionassem os princípios dogmáticos da Divina Génese. Tal não sucedeu, por exemplo, com o químico inglês Robert Boyle, na segunda metade do século XVII, conhecido no mundo científico por ter inovado o conceito de elemento químico. Na visão do poder eclesiástico, este conceito punha em causa o saber escolástico e os fundamentos tidos por intocáveis. Assim, este conceito de elemento químico teve de esperar cerca de um século para ser divulgado e, finalmente, aceite.
- Diga-se também, em abono da verdade, que foi no seio da Igreja que surgiu Inácio de Loyola e a Companhia de Jesus, contrariando uma postura tradicional da Santa Sé com a criação, entre muitas outras realizações, do que ficou célebre Colégio Romano, considerado na época uma instituição científica de vanguarda.

PERANTE SITUAÇÕES DE CRISE, UM SERVIÇO NACIONAL DO NUMERÁRIO COMO SERVIÇO DE INTERESSE GERAL

Tomamos a liberdade de reproduzir este texto, gentilmente enviado pelo Professor Mário Frota, Mandatário Nacional da Denária Portugal.

O dinheiro em espécie – as notas e moedas com curso legal - constitui declaradamente:

um símbolo da soberania nacional;
um direito fundamental dos cidadãos;
um serviço de interesse geral na titularidade do Banco Central (?).
Milhões de cidadãos se viram impedidos de realizar pagamentos através dos meios digitais em razão do colapso das redes eléctricas e das quebras sistemáticas das comunicações electrónicas durante o período em que o País esteve privado de energia eléctrica em razão de um fenómeno cujas causas ainda se acham por apurar. O que impediu recorressem aos terminais nos pontos de venda, às aplicações móveis ou aos ATM’s.

O dinheiro em espécie foi, com efeito, a alternativa residual e, a todos os títulos, efectiva, na circunstância.

O facto revelou a manifesta fragilidade do sistema digital e reforçou a convicção de que só o ‘dinheiro em espécie’ – o papel moeda com curso legal – é susceptível de acudir aos cidadãos em circunstâncias tais.

A DENÁRIA, atenta a tais fenómenos e em obediência ao seu projecto programático, entende – na esteira de congéneres suas, na Europa - exigir dos poderes públicos a constituição de um autêntico SERVIÇO NACIONAL DO NUMERÁRIO, como serviço público essencial, ou seja, um serviço de interesse geral, disponível nos quatro cantos do território nacional.

O Parlamento terá de considerar o ‘dinheiro em espécie’ como uma infra-estrutura crítica nacional, em linha com as directrizes a que se sujeitam a segurança e a resiliência dos serviços públicos essenciais de que o Estado é, perante os cidadãos, primordial garante.

Trata-se, com efeito, de um tema relevante no domínio da segurança nacional e como garantia de direitos fundamentais em que os cidadãos se acham investidos.

O ‘dinheiro em espécie’ tem de estar acessível e protegido a todo o transe.

O ‘dinheiro em espécie’ tem de estar disponível em todo o Território Nacional, impondo-se o reforço da deficiente infra-estrutura das Caixas Automáticas de Distribuição de Numerário (ATM), em particular nas zonas rurais mais deprimidas ou com uma fraca densidade de implantação de instituições de crédito.

Urge que o Estado chame a si a realização de Campanhas de Consciencialização dos Cidadãos em torno da relevância do ‘dinheiro em espécie’, como reserva estratégica nacional e no quadro das reservas patrimoniais pessoais, a título de prevenção contra surpresas como as que vêm ocorrendo ultimamente com os efeitos perniciosos que se conhecem.

Conquanto o Parlamento haja sido dissolvido e o Governo permaneça em gestão, a situação é tão premente que urge se preparem os instrumentos indispensáveis a que se consagre, sem detença, o que ora se preconiza em letra de lei.

Um Serviço Nacional do Numerário com a relevância que um tal direito fundamental representa é um passo decisivo para a consideração do ‘dinheiro em espécie’ como algo de nuclear no actual congenho e de futuro.

Mário Frota
Mandatário Nacional da Denária Portugal

sexta-feira, 25 de abril de 2025

"EDUCAR" PARA O APRISIONAMENTO EM VEZ DE EDUCAR PARA A LIBERDADE

Hoje, 25 de Abril, dia em que se comemora a Liberdade, é importante ter consciência que as suas ameaças vão além das convencionais. Algumas estão a entrar na escola ao abrigo das políticas de inovação, em nome da aprendizagem personalizada. Em vez de se dar a conhecer este valor ético aos mais jovens, de os levar a acarinharem-no, de os envolver na sua defesa, controlam-se, por meios tecnológicos, os seus comportamentos e tenta-se controlar os seus pensamentos. Que sentido de Liberdade será o deles quando forem adultos?

Não podemos deixar de colocar a pergunta e de conjecturar respostas, o mais possível informadas em trabalhos sérios, como é o caso do Relatório sobre o Estado da Aplicação das Novas Tecnologias à Vida Humana (ver aqui), elaborado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e publicado em Dezembro do passado ano.

Sobre os sistemas de vigilância educacional, sobretudo os que fazem monitorização da concentração e da atenção dos alunos, diz-se nele o seguinte (pp. 24-26): 

“Estas tecnologias de imagem poderão rapidamente estender-se a produtos de consumo generalista, como dispositivos portáteis para monitorizar a atividade cerebral, que exigem uma análise cuidada em termos de segurança e eficácia. De facto, evidenciando que este tipo de tecnologia está a evoluir para domínios não-clínicos, a empresa (...) comercializa uma fita ou banda que se coloca à volta da cabeça para registar algumas modalidades de atividades do cérebro, mostrando a referida atividade de diferentes formas (por uma escala de cores ou imagens, por exemplo).

Para além do seu uso para promoção do relaxamento e da meditação, a empresa propõe o uso desta fita para outras finalidades como seja uma denominada ´competição social´: permite identificar, por exemplo, a pessoa mais alegre numa sala de reuniões, ou a mais concentrada numa dada tarefa. Outra possibilidade seria publicar nas redes sociais o estado de espírito do utilizador num dado momento, baseado nas leituras dos dispositivos que usa (…). Exatamente o mesmo princípio tem sido estudado pela (...), que, em vez de uma fita na cabeça usa óculos de realidade aumentada que se ligam a uma pulseira capaz de ler sinais do corpo do utilizador, incluindo sinais cerebrais.

Portanto, existe a possibilidade de empresas como a (...), pelo menos, tentarem ter conhecimento do que se passa no cérebro dos utilizadores deste dispositivo.

Na China, o uso de bandas EEG colocadas na cabeça de crianças para seguir a sua atividade cerebral utilizando eletroencefalografia (EEG), acoplado a sistemas de videovigilância, permite aos pais monitorizar remotamente o esforço de concentração dos filhos (desenhado para jovens dos 6 aos 16 anos) em atividades escolares.

Confronta-se, assim, a importância da educação e a liberdade do indivíduo.

As bandas EEG supostamente funcionam medindo a atividade cerebral e apresentando o resultado através de um código de cores: uma luz vermelha indica um estado de 'preocupação', amarelo significa 'normalidade' e azul representa 'distração'. Uma aplicação de telemóvel utiliza um algoritmo para transformar as diferentes cores no grau de concentração do jovem. O qual, por sua vez, e utilizando o dispositivo como guia, poderá influenciar o resultado final alterando a sua atividade cerebral (…) .

As considerações éticas nestes casos [neuroimagem cerebral] incidem necessariamente sobre:
1) a privacidade e proteção de dados, já que a neuroimagiologia revela informações pormenorizadas sobre o funcionamento do cérebro, que podem ser utilizadas abusivamente (…);
2) a dependência excessiva e utilização inadequada na imagiologia cerebral, respetivamente, tomando-a como suficiente para fazer diagnósticos (…) o que, por sua vez, pode conduzir a (…) sobrediagnósticos ou a uma interpretação incorreta;
3) o consentimento informado, assegurando que [as pessoas] compreendem a natureza do exame ou dos dispositivos utilizados, os riscos (físicos e psicológicos dos mesmos) e a forma como os seus neurodados serão utilizados, armazenados e protegidos.”

quinta-feira, 24 de abril de 2025

A MUDANÇA QUE PRECISAMOS DE FAZER NA EDUCAÇÃO

"Uma boa educação escolar em tenra idade coloca sementes que podem produzir efeitos durante toda a vida (...). A educação será ineficaz e os seus esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza. Caso contrário, continuará a perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado" (parágrafos 214 e 215).

terça-feira, 15 de abril de 2025

A AVALIAÇÃO TOTALITÁRIA NO ENSINO SUPERIOR

O que designei, em texto anterior, por "avaliação totalitária" (ver aqui) tem, de facto, o sentido que expliquei: avaliar tudo o que interessa, de modo contínuo e com envolvimento de todos os participantes, com recurso a critérios que se prendem com uma certa acepção de eficácia. Logo, essa avaliação não é neutra (de resto, nenhuma avaliação o é) pois decorre de escolhas que são previamente feitas: escolhe-se isto em vez daquilo.

EM NOME DA "QUALIDADE"

Trata-se de uma avaliação que é feita em nome da "qualidade" e das "boas práticas" (no sentido que lhe é dado no campo fabril, de potenciar os recursos e evitar o desperdício) e que admite uma mesma concretização, quer se reporte a sistemas sociais (como o judicial, de saúde ou educativo) quer se reporte a casas de banho das autoestradas.

É a avaliação que, em primeira instância, apela à "satisfação do cliente". O "cliente" é chamado e diz. Não precisa de saber nem de compreender, expressa o seu agrado ou desagrado, imediato e superficial, acerca do serviço que lhe foi prestado. Assinala-o numa escala tipo Lickert e escusa de justificar, mas se o quiser fazer está à vontade... Ah, sim, e não precisa de se identificar, o anonimato é o seu abrigo seguro.

Tudo isto leva o "cliente" a supor que tem poder, que a sua voz há-de ser processada e que dela advirão consequências. Dificilmente vislumbrará que aquilo que se lhe solicita recai sobre aspectos que interessam a quem tem, de facto, poder para conceber essa avaliação, a qual controla os mais diversos domínios da vida colectiva e pessoal.

NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR

Tendo as instituições de ensino superior adoptado uma lógica empresarial, solicitam aos seus "clientes" ("estudantes") que avaliem os serviços e as disciplinas ("unidades curriculares") que frequentam, solicitam que avaliem os serviços, as disciplinas que leccionam e, ainda, que se pronunciam sobre a avaliação que os estudantes fazem das mesmas. Para tanto, usam-se questionários online.  

Se lermos a Lei (aqui e aqui), percebemos que os itens constantes nestes questionários correspondem directamente ao que nela está previsto e ao "espírito" que veicula. As instituições parecem limitar-se a operacionalizar e executar, por isso, tais itens (alguns deles iníquos) são muito parecidos de instituição para instituição.

Detenho-me em dois aspectos muito óbvios que, entre vários outros, distorcem esta avaliação. 

Um aspecto é a dupla condição (de avaliador e de avaliado) que é conferida aos mesmos sujeitos. Se A avalia B e B avalia A, cria-se, mesmo que implicitamente, uma tensão entre ambos, procurando cada um geri-la em função das vantagens que possa retirar para si mesmo.

Outro aspecto, ligado ao anterior, é o desequilíbrio em termos de objectividade e responsabilidade, que se introduz na relação pedagógica. Quando se trata de avaliação sumativa, os professores têm (e bem) de atender aos regulamentos e normas da instituição (que são cada vez mais e mais pormenorizados), têm (e bem) de explicitar (no início do semestre/ano lectivo, por escrito) as opções para as "unidades curriculares" que leccionam, têm (e bem) de se guiar por critérios pertinentes e objectivos de classificação, têm (e bem) de corrigir com rigor de modo que os estudantes possam (caso queiram) perceber a sua prestação. Tudo isto é público e requer a assinatura dos professores. Por seu lado, aos alunos é solicitado que "se pronunciem" sobre o trabalho dos professores sem outro suporte que não seja as suas percepções e afins. E anonimamente.

Deixo o leitor com as palavras de Raquel Varela, uma das poucas pessoas, entre professores, que em Portugal tem trazido a debate este cenário muito mais complexo do que descrevi e que, no meu entender, arruína o ensino superior (ver aqui):

"Pode um aluno avaliar um professor? (...). É legal e legítima a avaliação anónima de docentes, e com as cores e os números com que se avalia num supermercado?

Faço uma declaração de interesses. Como aluna recusei-me, por escrito, a fazer avaliações anónimas, sempre. Como professora em qualquer instituição, e estive em várias, sou contra a figura anónima, seja do que for, avaliação, denúncia. É coisa de ditaduras (...).

Fiz duas ou três queixas na vida em serviços, inúteis, mas por escrito assinadas. E quando fui alvo de assédio moral pela direcção de uma instituição onde estava, escrevi uma carta, com cc para toda a direcção superior, relatando, assinando, e tinha um contrato precário (...). Era o que defendia com 18 anos e o que defendo com 46 anos.

O medo, de perder o emprego, ou ter conflitos, ou de ter más notas, não pode legitimar a bufaria e a cobardia, sob pena de vivermos numa sociedade onde não é possível viver (...).

A sua gravidade, porém, deixa a descoberto a Universidade neoliberal, e em geral a completa inversão da noção de educação e avaliação, que tomou conta das escolas públicas e também do ensino superior no mundo (sim, em todo o mundo neoliberal) (...).

É eticamente perigoso, incluindo para a saúde mental do próprio professor. Não é possível um aluno avaliar um professor (...).

As instituições de ensino devem ser espaços de conhecimento apaixonante? Ou pelo contrário empresas de venda de certificados, com notas inflaccionadas, ao sabor da delação e do medo? (...).

Assim, não se faz ciência, não se educa, não se promove o conhecimento. Trata-se de gestão pela ameaça. Deplorável."

segunda-feira, 14 de abril de 2025

OS AMANTES DA HUMANIDADE

As palavras de Eugénio Lisboa
Os homens que amam a humanidade
detestam as pessoas, uma a uma.
Esse amor convive bem com crueldade
e vive, hirto, em penosa bruma.

O amor abstracto é confortável,
porque tem muito poucas exigências.
É um amor frio e pouco afável,
que não se desgasta em minudências.

É amor distante e algo sinistro,
incapaz de um orgasmo verdadeiro.
É um despacho seco de ministro,

um amor que ao amor é estrangeiro.
Amar a humanidade, em geral,
é um amor castrado e doutrinal.

Eugénio Lisboa

ESQUECIMENTO E CULPA COLECTIVA

O inglês Frederick Forsyth, piloto de aviação, jornalista, escritor - sobretudo de histórias de espionagem - e, ao que confirmou na sua autobiografia, agente secreto (nunca pago) do MI6, no livro Odessa (Dossier Odessa), publicado em 1972 e dedicado a "todos os repórteres da impressa", constrói um diálogo entre a personagem principal, o jornalista Peter Miller, e a sua mãe. 
 
Nesse diálogo, de aparência despretensiosa, mostra bem a oscilação da memória, colectiva e individual, sobre acontecimentos especialmente traumáticos, no caso, a guerra e as suas inauditas iniquidades: mantê-los vivos na lembrança porque eles são uma realidade ainda que com consciência de que isso nos martiriza, ou procurar esquecê-los para continuarmos a viver com alguma vontade, pois, afinal, o mal ficou para trás e se o invocarmos muitas vezes ele torna-se banal.
- Mãe...
- Diz querido.
- Durante a guerra... essas coisas que as SS fizeram às pessoas, nos campos... Alguma vez suspeitou... alguma vez soube o que se passava?
A mãe começou a levantar a mesa com uma energia e uma actividade invulgares. Só passados momentos respondeu:
- Coisas horríveis. Coisas horríveis! Os ingleses obrigaram-nos a ver os filmes, depois da guerra. Não quero ouvir falar mais disso.
Saiu e Peter levantou-se e foi ter com ela à cozinha.
- Lembra-se de, em 1950, quando tinha 16 anos, ter ido a Paris, com um grupo da escola?
- Lembro - respondeu a mãe, enquanto enchia o lava-loiça.
- Levaram-nos a visitar uma igreja chamada Sacré Coeur. Quando chegámos, estavam a terminar um serviço religioso em memória de um homem chamado Jean Moulin. Saíram algumas pessoas e ouviram-me falar alemão com outro rapaz. Uma delas virou-se e cuspiu-me. Lembro-me de ver o cuspo a escorrer pelo casaco abaixo e lembro-me também de que, quando voltei para casa, lhe contei o sucedido. Recorda-se do que me disse, então?
A senhora Miller lavava furiosamente os pratos do jantar.
- Disse-me que os franceses eram assim, que tinham hábitos porcos.
- E têm! Nunca gostei deles.
- Ouça, mãe, sabe o que fizemos a Jean Moulin antes de ele morrer? Não foi a mãe, nem o pai, nem eu, mas, sim, nós, ao alemães... ou melhor, a Gestapo, o que para milhões de estrangeiros parece significar o mesmo.
- Não sei nem estou interessada em saber. Já chega dessa conversa.
- Bem, eu também não lho posso dizer, porque não sei, mas provavelmente, está registado em qualquer lado. O que interessa é que me cuspiram em cima, não por pertencer à Gestapo e, sim, por ser alemão.
- Devias orgulhar-te de ser alemão.
- Oh, orgulho, acreditem orgulho! Mas isso não significa que tenha de me orgulhar também dos nazis, das SS e da Gestapo.
- Ninguém se orgulha disso, mas não se ganha nada em falar do assunto. As coisas não melhoram por esse facto.
Estava irritada, como sempre que ele argumentava com ela acerca fosse do que fosse. Limpou as mãos ao pano da louça e voltou para a sala. O filho seguiu-a. (...)
- (...). Não comeces a remexer no passado, não ganharás nada com isso. Está morto, morto e enterrado. O melhor é esquecê-lo (...). Além disso, já ninguém quer esses horríveis julgamentos em que todos os pavores são trazidos a público. Ninguém te agradecerá (...). Já não querem mais julgamentos: é demasiado tarde. Abandona essa ideia, Peter, por favor! Por amor de mim.

À oscilação junta-se a simplificação e a generalização que remete para a "teoria da culpa colectiva": todos os que estão de um lado de certa fronteira, que têm esta ou aquela característica, nacionalidade ou religião são algozes... Acontece que esta "teoria" protege, precisamente, os verdadeiros algozes:

A teoria da culpa colectiva de sessenta milhões de alemães, incluindo milhões de crianças pequenas, mulheres, reformados, soldados, marinheiros e aviadores que não tiveram nada a ver com o holocausto, foi originalmente concebida pelos Aliados, mas depois agradou muito aos antigos membros das SS. A teoria é o seu melhor aliado, pois eles compreendem - e poucos são os alemães, além deles, que parecem compenetrar-se disso - que enquanto a teoria da culpa colectiva persistir, ninguém começará a procurar assassinos específicos - ou, pelo menos, não começará a procurá-los com muito empenho. Portanto, os assassinos das SS ainda hoje se continuam a esconder atrás da teoria da culpa colectiva.

Não preciso de dizer que, se nos deslocarmos da Alemanha de meados do século XX para o presente, vemos a ficção de Forsyth bem à frente dos nossos olhos.
_______________________________________________
REFERÊNCIA
Forsyth, F. (sd). Odessa. Livros do Brasil (pp. 93-95 e 168).

quinta-feira, 10 de abril de 2025

O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER (2)

Por Galopim de Carvalho
Artigo saído ontem, no jornal Público

 
Os portugueses e portuguesas que estão na força da vida, todos eles e elas nasceram, cresceram e estudaram (pelo menos, até ao 9.º ano) em liberdade, numa democracia que fomos aprendendo a construir e de que, hoje, com todos os defeitos que possa ter, conserva a liberdade. É esta liberdade, associada à incapacidade da classe política para dar solução à nossas, por demais conhecidas, dificuldades em, praticamente, todos os domínios da governação, que tem permitido aos inimigos da democracia, procurar destruí-la.

Aos seguidores dos que propalam, em discursos populistas, as ideias de um passado de sufoco, que prendeu, torturou e assassinou muitos dos que lutaram pela liberdade, importa dar-lhes a conhecer o que era, por exemplo, a escola pública do Estado Novo de Salazar, de que sou testemunho.

Visando banir os projectos educacionais da Primeira República, a orientação política estampada na Constituição de 1933, alterou a formação de professores, substituiu os programas, adaptando-os à nova ideologia, separou os sexos, além de que reduziu a escolaridade obrigatória para 3 anos.

Em 1936, tinha eu 5 anos, com Carneiro Pacheco no Ministério da Educação Nacional (anteriormente chamava-se da Instrução Pública), reforçara-se o papel da Escola no controlo ideológico e orientação política dos alunos, na prevalência do livro único, no culto das virtudes nacionalistas e no elogio da vida modesta e rural. O fervor patriótico e o cunho religioso enquadrados na ideologia oficial do Estado Novo estavam diluídos nas matérias curriculares, nomeadamente, na Leitura, na História e na Geografia, no propósito de, a partir dos bancos da escola, então com início aos sete anos de idade, estimular estas virtudes nos homens e mulheres do futuro.

Foi esta a escola, com esta ideologia, que foi a minha.

Nesses anos, o ensino escolar obrigatório terminava com o exame da 3.ª classe (3.º ano, como agora se diz), certificado pelo diploma do “Primeiro Grau”, exigível, por exemplo, para ingresso nos lugares mais humildes da função pública, no comércio, como caixeiro, nos correios, como carteiro ou boletineiro e, até, para ser eleitor. Ler, escrever e contar era tudo o que, o cidadão comum necessitava para fugir à vida do campo, ao aprendizado artesanal ou oficinal e a outros trabalhos que apenas fizessem uso da força braçal. Esta habilitação mínima vigorou até 1956. A partir de então, a escolaridade aumentou para 4 anos, apenas para os rapazes. Só quatro anos depois, esta obrigatoriedade foi decretada para as raparigas.

A par desta triste realidade, uma outra, vergonhosa, era a da “regente escolar”.

Na imensa maioria mulheres, as “regentes escolares” eram agentes de ensino à frente das chamadas “escolas incompletas”, criadas em 1930, mais tarde designadas “postos escolares”, com o propósito, dizia-se, de combater o analfabetismo no seio de populações sem escola nem condições mínimas de fixar professores. Ganhavam metade do ordenado de um professor, bastava que possuíssem a 4.ª classe, que demonstrarem ter bom comportamento moral e adesão ao regime e eram, de preferência, oriundas dos próprios locais.

terça-feira, 8 de abril de 2025

DAS PEDRAS AOS MINERAIS. SÉCULOS XVII E XVIII

 Por A. Galopim de Carvalho

Em começos do século XVII ainda se acreditava que as gemas como o diamante, o rubi, a safira, as ágatas, entre outras, consideradas os produtos mais preciosos da natureza, repletas de virtudes, nasciam, à semelhança do ouro, por acção dos céus e das estrelas.

Em 1618 o médico e alquimista alemão MICHAEL MAYER (1568-1622) escrevia: “como o coral cresce sob as águas do mar e endurece, assim se forma a pedra”.

Mineralogista, químico e metalúrgico sueco, AXEL FREDERIK CRONSTEDT (1722-1765) Afirmou-se como um proeminente perito em mineração e um dos fundadores da moderna mineralogia.

Na análise laboratorial de metais e minerais, foi o primeiro a usar sistematicamente o maçarico de sopro, instrumento fundamental na análise pirognóstica (do grego “pyr”, fogo, e “gnosis”, conhecimento) cujo uso se manteve até à introdução, no século XX, de novas tecnologias químicas e físicas de análise.

Cronstedt foi o primeiro a propor uma classificação em que as propriedades químicas foram tomadas em primeiro lugar, seguindo-se, depois, as propriedades físicas.

A sua proposta de classificação de minerais e rochas (ainda considerados em conjunto), com base em dados químicos obtidos através do uso do maçarico de sopro, publicada em 1758, conhecida por “Sistema de Cronstedt”, pôs finalmente termo à influência alquimista.

O Sistema de Cronstedt compreende ainda as classes:
- terras, incluindo as sub-classes calcareae, silicae, granatinae, argilacae, micaceae, fluores, asbestina, zeolitica e magnesia;
- sais, incluindo as sub-classes acida e alcalina;
- minerais com flogisto, não está subdividida.
metais, inclui metalla perfecta e semimetalla.

Esta, então, novíssima classificação, baseada nos chamados “princípios constituintes” (nome que então se dava aos elementos químicos) possíveis de reconhecer na época, está ainda longe de permitir conhecer a verdadeira natureza dos respectivos minerais e rochas e, assim, compreender-lhes o significado geológico.

Para além da sua monumental contribuição para a sistemática biológica, o naturalista sueco, CARLOS LINEU (1707-1778), abordou a mesma atitude face ao mundo não vivo.

No seu “Natursystem des Mineralreichs” (Sistema de Mineralogia), editado em 1770, que não fez vencimento, Lineu tentou, sem ê
xito, adaptar aos minerais e às rochas os seus critérios que tão bem se têm mantido na sistemática e na nomenclatura biológicas.

Na convicção de que a investigação em química era fundamental para o conhecimento dos minerais, o seu conterrâneo, JOHAN GOTTSCHALK WALLERIUS (1709-1785), médico, químico e mineralogista, criou, em Uppsala, durante o seu tempo como professor, o primeiro laboratório de Química, ainda conservado como relíquia, foi construído.
 
Torbern Olof Bergman
TORBERN OLOF BERGMAN (1735-1784) foi um químico e físico considerado pioneiro da análise química inorgânica quantitativa e um dos fundadores da mineralogia química, com obra notável para o desenvolvimento da mineralogia e da geologia.
 
O Sistema de Bergman, proposto em 1782, considerava nove classes:
- ares,
- águas,
- enxofre,
- substâncias metálicas,
- ácidos,
- alcalis,
- terras,
- sais neutros e
- fósseis.

Ressalve-se que, nesta época, “fóssil” era todo o material (com excepção do orgânico) que se desenterrava ou extraía de dentro da terra (do latim fossile, desenterrado), o que abrangia, não só os minerais e as rochas, como também os “petrificados” (nome que se dava aos fósseis, no sentido que hoje damos ao termo) e os achados arqueológicos.

NOTA: Segundo o químico alemão Georg Stahl (1659-1734), os corpos combustíveis possuiriam uma matéria chamada flogisto, libertada durante os processos de combustão (material orgânico) ou de calcinação (metais). "Flogisto" vem do grego e significa "inflamável", "passado pela chama" ou "queimado”.

NO AUGE DA CRISE

Por A. Galopim de Carvalho Julgo ser evidente que Portugal atravessa uma deplorável crise, não do foro económico, financeiro ou social, mas...