sábado, 31 de julho de 2021

O MUNDO A PRETO E BRANCO

 Novo texto de Eugénio Lisboa: 

Ainda os julgamentos que por aí campeiam sobre os méritos e deméritos de Otelo Saraiva de Carvalho. Um grande número de portugueses, que incluem personalidades conhecidas, como António Barreto (sempre muito assertivo e a quem a dúvida metódica de Descartes parece não  afligir), persistem em analisar a personalidade humana do estratega do golpe de 25 de Abril, encafuando-se na dicotomia primária do culpado ou inocente, herói ou arruaceiro criminoso. 

Nenhum ser humano, mesmo o mais medíocre, pode ser correctamente avaliado, com tais pressupostos simplistas. Muito menos os grandes homens ou os que não sendo necessariamente grandes, num determinado momento feliz, se excederam a si próprios, realizando uma tarefa de enormes consequências para os seus compatriotas. Foi o caso de Otelo Saraiva de Carvalho. Que ele tenha ulteriormente descarrilado e praticado actos condenáveis, ninguém o nega. São precisamente as personalidades invulgares as mais dadas a tais severas e dolorosas contradições. 

Disse-o, de uma vez por todas, esse grande pensador aforístico francês, La Rochefoucauld, nestes termos de medalha: “Só aos grandes homens cabe terem grandes defeitos”. E não me venham cacarejar graçolas, insinuando que Otelo não era um grande homem: soube sê-lo, repito, num momento privilegiado da sua vida. O mesmo La Rochefoucauld, um dos mais penetrantes analistas da alma humana, disse, falando agora, não apenas dos grandes homens, mas dos homens em geral: “Os vícios entram na composição da virtude, como os venenos entram na composição dos remédios” Uma viagem, mesmo superficial, da História comprovará isso mesmo. Mas, confinando-me, à História do século XX, poderei dar alguns exemplos edificantes.

O general George Patton foi, no norte de África, na Sicília e, depois, na ofensiva europeia a seguir à invasão da Normandia, o mais brilhante general no terreno que os aliados ocidentais tiveram. O seu esforço monumental, ao desmantelar a perigosíssima armadilha das Ardenas ficará como um dos mais extraordinários feitos militares. E só não chegou mais cedo a Berlim, porque Eisenhower o não permitiu, para não ofender os russos que, na altura eram aliados. A dívida da humanidade para com Patton é formidável e muito difícil de pagar. 

Pois bem, foi este mesmo Patton, quem, ao chegar a Berlim, e, tendo, com os russos, posto fim a um dos conflitos mais mortíferos que a humanidade já viveu, foi este mesmo Patton que detestava mais os russos do que detestava os nazis, quem quis convencer os americanos a invadirem imediatamente a União Soviética, que ele visava destruir! Este desígnio delirante e monstruoso, valeu-lhe ter sido imediatamente demitido do seu posto. Que vamos fazer dele? Esquecer o herói de tantas campanhas brilhantes? A insensatez final anula todo o brilhantismo militar de uma vida? Atire a primeira pedra quem disso se sentir capaz.

Outro exemplo foi o do general MacArthur, herói da guerra no Pacífico, que, em condições inicialmente muito desfavoráveis, acabou por infligir uma espectacular derrota ao império nipónico, que seriamente ameaçara todo o Pacífico e a própria América. Mas foi este mesmo indiscutível herói, que salvou o mundo da praga militarista e expansionista do Império de Hiroito, quem, na guerra da Coreia, em acesso de megalomania, se propôs invadir a China, pondo o mundo todo em sério risco. Foi imediatamente demitido pelo Presidente Truman, apesar da glória que o aureolava. Mais uma vez pergunto: o desvairo da Coreia anula a descomunal campanha do Pacífico?

Terceiro exemplo: outro grande herói da segunda guerra mundial foi o general Montgomery, cuja derrota infligida a Rommel em El Alamein ainda hoje inflama as imaginações. Na ofensiva europeia contra os nazis, desempenhou, de uma maneira geral o seu papel, com eficácia, embora ficasse totalmente obscurecido pelo génio militar de Patton. Houve, porém, um episódio em que a sua estrela se apagou, quando convenceu Eisenhower (“Operation Market Garden”) a invadir os Países Baixos e o Ruhr: falhou estrepitosamente, com perdas humanas desastrosas. Por outro lado, como pessoa, era conhecido como “unbeatable and unbearable” (imbatível e insuportável). 

Depois da guerra, aureolado de glória como poucos, apoiou vigorosamente o apartheid e opôs-se veementemente à legalização da homossexualidade, querendo preservar a lei brutal que levara Oscar Wilde à prisão, à ruína e à morte. Que vamos então fazer de Montgomery? Esquecer que ajudou homericamente a salvar-nos da praga nazi? Excomungá-lo por causa do apartheid e da sua homofobia? 

Repito: atire a primeira pedra quem se sinta capaz de o fazer!

Eugénio Lisboa

PORQUÊ O “AVÔ DOS DINOSSÁURIOS"?

Novo texto do Professor Galopim de Carvalho.


São duas as causas da minha relação muito próxima com estes bichos do passado geológico da Terra. 
 
Uma foi a longa e árdua luta que, em nome pessoal e do Museu Nacional de História Natural e a partir de 1990, entendi travar face às administrações central e local, pela defesa das duas importantes jazidas com pegadas de dinossáurio que, entretanto, foram descobertas, “Pego Longo” (mais conhecida por Carenque), no concelho de Sintra, e “Pedreira do Galinha” no limite dos concelhos de Ourém e Torres Novas.

A outra foi ter usado o conhecido fascínio que os dinossáurios exercem sobre o público, em geral, e sobre as crianças e adolescentes, em particular, como elemento dinamizador na imensa tarefa de recuperação e valorização do que restou do Museu Nacional de História Natural, em grande parte destruído pelo incêndio de 1978. 

Como se imaginou, esta via surtiu efeito e, em 1992, a grandiosa exposição “DINOSSÁURIOS REGRESSAM EM LISBOA”, com as magníficas réplicas robotizadas, da empresa japonesa Kokoro, com mais de 340 000 visitantes, em apenas onze semanas, foi o começo de uma dezena de outras centradas nestes grandes sáurios, face às quais, actuei como responsável científico.

No propósito de me documentar científica e pedagogicamente para estes dois objectivos, tive de estudar o essencial do ramo da paleontologia que lhes diz respeito. Escrevi artigos em jornais e revistas, quatro livros de divulgação e dei dezenas de entrevistas na rádio e na televisão, acções que, sem me ter dado conta, me tornaram figura pública e, para as crianças, o pai dos dinossáurios e, agora, passados mais de 30 anos, o avô dos ditos. 

Tem acontecido, e não raras vezes, que jornalistas menos preparados ou menos rigorosos me apresentam como “especialista” neste ramo da paleontologia ou, mesmo, o “maior especialista”, incorrecções que, sempre que posso, tenho desfeito, uma vez que nuca fui nem sou investigador neste ramo científico.

Ser o pai ou o avô dos dinossáurios, para as crianças, rapazes e raparigas dos nossos jardins escolas e escolas, abriu-me as portas a quaisquer temas do conhecimento que a oportunidade ditasse, nas muitas vezes que, ao longo destes anos, tive a oportunidade e o prazer de conviver com eles.

A. Galopim de Carvalho

Ser Poeta

Novo texto de Eugénio Lisboa.

De que massa são feitos estes obcecados com a linguagem, com a beleza, com o ritmo, com a música, com o equilíbrio, com a luz, com a dor, com o amor, com o sentir? O que se junta para produzir estes “donos da sensibilidade”? Que misteriosos agentes forjam esta sensibilidade de alta voltagem? 

Charles Péguy era um grande poeta e um homem de «causas». Mas ei-lo arengando, nas vésperas da primeira guerra mundial: 

“assim que se declarar a guerra, a primeira coisa que faremos será fuzilar Jaurès. Não vamos deixar na rectaguarda esses traidores para nos apunhalarem pelas costas.” 

Linguagem acesa de político assanhado? Por certo. Linguagem de poeta? Sensibilidade de poeta? Em todo o caso, o seu desejo foi amplamente atendido: Jaurès foi assassinado. Mas Péguy também foi morto, na batalha do Marne, batalha por que ele – poeta – tanto ansiara, como coisa boa para a França e, se calhar para os requisitos da sua sensibilidade. 

Shelley era geralmente considerado um poeta de altíssima sensibilidade. Gostava de poesia e de beleza. Mas gostava também, como Franklin, de se entreter a “apanhar” a electricidade das trovoadas, lançando papagaios que a atraíam. Como detestava gatos, um dia atou a guita de um desses papagaios, em dia de trovoada, à cauda de um gato, para ver o bichano a ser electrocutado.

Não são estranhos os caminhos da poesia e da sensibilidade? Não é curioso ver este alado Ariel entregue a torturar animais, qual Joãozinho-Monstro? Haveria dois Shelleys: um que sentia a beleza e o ritmo, o outro que se deleitava com a maldade? 

Outro exemplo: Gide conta algures um encontro que o assombrou. Viajando por Itália, entrou numa estalagem para jantar. Numa mesa perto da sua, viu um senhor já idoso, respirando finura de maneiras e espiritualidade – tudo pontuado por uma fabulosa cabeleira branca, tratada e penteada com esmero. O perfil, de grande nobreza clássica, quase majestosa, impressionou-o. Mas eis que o empregado de mesa se aproxima, trazendo para a mesa da nobilíssima figura, um prato bem servido. Diante da comida, o quadro mudou subitamente: o senhor, aureolado de espiritualidade clássica, precipitou-se com sofreguidão animal sobre o prato, pondo-se a devorar a comida, com ruído e espalhafato descomposto. Gide estava fascinado com o espectáculo: nunca antes assistira a uma tal mutação, em matéria de segundos… Registou-o nestes termos: 

“Il ne mangeait pas; il bâffrait…” (“Ele não comia; ele alambazava-se…”). 

Não contendo a sua curiosidade, chamou o empregado e perguntou-lhe quem era aquele senhor. A resposta siderou-o: era Carducci, o grande poeta que Gide tanto admirava. 

O que é ser poeta? 

Não era Mozart um rufia fala-barato? Não se comportou Eliot de maneira atroz com a primeira mulher e com um companheiro de apartamento de tantos anos? 

O que é ser poeta? É mais uma questão de linguagem do que propriamente de sensibilidade? 

O grande Coleridge. A sensibilidade de Coleridge. Eis esta passagem de uma carta escrita a sua mulher Sara: 

“Permit me, my dear Sara, without offence to you, as Heaven knows! it is without any feeling of Pride in myself, to say – that in sex, acquirements, and in the quantity and quality of natural endowments whether of Feeling, or of Intelect, you are the Inferior.” 

Conheci alguns grandes poetas com qualidades igualmente refinadas, no tratamento de mulheres (suas ou de amigos). 

Voltamos ao princípio: o que é ser poeta? De que é feito? Para que é feito? Como é feito? 

(Mas lembro-me, para me consolar, daquela lúcida “verificação” de Nietzsche: “Além de ser um decadente, eu sou também o contrário”.) 

Eugénio Lisboa

sexta-feira, 30 de julho de 2021

"Esta alteração curricular representa um empobrecimento radical do currículo"

O programa da RTP "O último apaga a luz" do passado dia 23 de Julho foi iniciado com um tema a que, não obstante a sua importância, não se tem dado grande atenção: a "mudança de fundo" do currículo da escolaridade obrigatória em Portugal (cf. Despacho n.º 6605-A/202, que "procede à definição dos referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular, incluindo a avaliação externa"). Vale a pena ver essa parte do programa pelas reiteradas posições opostas que evidencia, posições que são, de imediato, (mal) catalogadas como progressistas umas e conservadoras outras. Pela fuga a esta catalogação, que só pode ser derivada de estudo e análise, destacamos a intervenção da historiadora Raquel Varela, de que extraímos o seguinte:

"Esta alteração curricular representa um empobrecimento radical do currículo, aliás um esfacelamento do currículo. Conhecimento não é informação, são duas coisas completamente diferentes. Se só precisássemos de dar informação às crianças e aos jovens não precisávamos da escola. O currículo é a sistematização daquilo que de mais avançado foi produzido pela humanidade no campo da arte, da ciência, da filosofia (...). 
[Esta reforma não é uma surpresa] porque a OCDE tem há muito uma política de, para as classes trabalhadoras e médias;  (...) nos colégios privados vai continuar a dar-se o melhor (...), aliás os colégios privados, de elite (…) não cumprem o programa curricular, dão muito mais. 
O que nós temos é, de facto, um aligeiramento das aprendizagens porque há um processo de automação em curso, porque Portugal é um país muito dependente, com cada vez menos produção própria e, portanto, às crianças e aos jovens ensina-se cada vez menos, exige-se cada vez menos e paga-se cada vez menos (...). Porquê ensinar-lhes os fundamentos do conhecimento? até porque tudo aquilo que depende dos fundamentos do conhecimento nós vamos comprar lá fora. (…). 
Através da educação e da cultura desenvolvemos as funções psíquicas superiores (funções que os animais não têm): memória, atenção dirigida (muito difícil porque os miúdos são hiperestimulados, e a escola devia ser, justamente, o contrário da hiperestimulação dos gadgets), o raciocínio abstracto, o domínio conceptual (...). 
Tudo isto exige uma escola muito exigente, muito completa e o currículo é a sistematização do conhecimento. 
Isto [que está a acontecer] é tão classista, tão classista... primeiro, eu adorava ter um estudo … não gosto que as pessoas contem a sua vida pessoal (…) mas um estudo transversal, que permitisse saber onde é que as elites intelectuais e políticas do país têm os filhos. Não é preciso individualizar, mas[era importante saber se estão naquele currículo aligeirado [ou se] têm um currículo exigente, para percebermos do que estamos a falar. 
O que nós estamos a assistir é as classes trabalhadoras e médias (...) é um povo que (…) aprende a carregar nuns botões, a operar máquinas. E as elites dirigentes dominam o conhecimento. 
Isto não é só um problema de desigualdade social isto é um problema de democracia (...)"

Maria Helena Damião e Isaltina Martins 

quarta-feira, 28 de julho de 2021

UMA REFLEXÃO EM TORNO DO AFECTO

Novo texto do Professor A. Galopim de Carvalho.

O afecto, palavra que fomos buscar ao latim affectus, afigura-se-me como um sentimento marcado por uma natural, espontânea e notada dose de ternura na relação com o outro, que tanto pode ser uma pessoa, um animal ou, mesmo, um objecto. 

No seu último livro SENTIR & SABER – a Caminho da Consciência, editado em Novembro do ano passado, pelo Círculo de Leitores, António Damásio, veio reforçar uma convicção muito enraizada em mim, segundo a qual o afecto é fundamental em todos os domínios da nossa vida em sociedade, com destaque na relação ensino/aprendizagem.

Este distinto neurocientista diz que “as capacidades afectivas são fundamentais porque são as primeiras”. São, diz ele, “os alicerces da nossa mente, daquilo que é o nosso ser”. E acrescenta que “é sobre essas capacidades que se vão colocar as capacidades cognitivas”. Para este professor da Universidade do Sul da Califórnia, a conhecidíssima frase “Penso, logo existo”, do filósofo Descartes, é profundamente errónea, porque nasce da ideia, para ele errada, de que aquilo que é mais valorizável no ser humano é o pensamento cognitivo puro. 

Contrapõe a seguir, dizendo que o alicerce da nossa mente, é tudo o que tem a ver com o nosso próprio corpo, com a vida que está a manifestar-se em nós, e cujo estado (bom ou mau) é transmitido através do sentimento. Para Damásio, “as capacidades afetivas têm sido sistematicamente menosprezadas pela nossa cultura, pelo melhor da nossa cultura, não apenas hoje, mas na cultura filosófica tradicional”. 

Há 25 anos, num seu outro livro O Erro de Descartes, Damásio já denunciava “a sobrevalorização das capacidades cognitivas puras, em detrimento das capacidades afectivas”. Para o autor de Sentir & Saber, o fundamental é que se perceba que aquilo que é ser humano não é redutível aos aspetos cognitivos da mente. Pelo contrário. Para ele é preciso alicerçar essa mente do raciocínio puro no que é fisiológico, naquilo que é a vida, naquilo que é o corpo. 

Não é dizer que somos só corpo, isso seria um disparate. O que não se pode é tentar entender a mente humana sem aí incluir o papel do corpo, da fisiologia, e a expressão dessa fisiologia nos sentimentos. Para Damásio “aquilo que é a nossa vida, aquilo que é a nossa história e a nossa identidade, não é puramente cognitivo. É cognitivo misturado com o afecto. A vários níveis”.

Estas sábias palavras de quem há, décadas, estuda a anatomia do cérebro e a sua relação com os fenómenos da consciência, vêm ao encontro de uma convicção muito enraizada em mim e que posso expressar, servindo-me, em parte, das suas palavras, dizendo que aquilo que foi e ainda é fundamental no meu trabalho e no meu pensamento tem a ver com a mistura do que é afectivo com o que é puramente racional.

Damásio deu-me, pois, a imensa alegria de confirmar esta muito minha convicção. Tenho plena consciência de todos os êxitos no muito trabalho que desenvolvi, para além do empenho e da persistência que neles coloquei, foram ditados, sobretudo, pela afectividade que sempre caracterizaram o meu relacionamento com as pessoas, quaisquer que sejam as suas posições no tecido social, dos Presidentes da República ao mais humilde dos cidadãos, dos ministros aos contínuos dos ministérios, dos patrões aos assalariados, dos generais e almirantes aos soldados e marinheiros.

Na árdua e prolongada luta que travei pela salvaguarda da jazida com pegadas de dinossáurios de Pego Longo (Carenque), tive oportunidade de me relacionar intensamente com a comunicação social escrita, falada e televisionada. Nesse relacionamento fiz tantos apoiantes e amigos quantos os media com quem privei, em número de algumas dezenas, entre os seniores mais prestigiados e influentes e os mais simples e apagados estagiários que, com o passar dos anos, se fizeram respeitados profissionais.

Percorri os corredores do Poder e, sem nunca me afastar das causas que abracei e pelas quais me bati, bato e dei a cara, fiz amigos e estabeleci relações de muita simpatia com alguns ministros e, o que sempre foi muito importante, com os chefes de gabinete e com as respectivas senhoras secretárias. Outro tanto aconteceu no universo da Assembleia da República, independentemente das filiações partidárias, dos líderes das diferentes bancadas parlamentares aos deputados de todos os partidos. Tem sido assim nas muitas Câmaras Municipais, à margem das respectivas cores políticas, com as quais iniciei e tenho mantido estreita cooperação, sempre a título gracioso, nunca remunerado (pro bono), condição essencial que sempre garantiu e garante a minha não dependência desse outro poder e me não inibe de exercer livremente o meu juízo crítico e de procurar levar a bom termo os projectos em que me tenho envolvido.

Criar pontes de afecto com presidentes ou directores e funcionários, dos mais categorizados aos mais humildes, nas mais variadas instituições públicas e privadas com as quais tive de me relacionar, profissionalmente ou apenas como cidadão, agilizou grandemente todo o trabalho que desenvolvi numa fase da minha vida em que estive ligado ao Museu Nacional de História Natural.

Devo dizer, em abono da verdade, que sem o suporte institucional deste museu e sem o apoio de alguns dos seus funcionários (meus muito amigos) eu não teria tido nem a voz nem a visibilidade que os “media” me deram. Nas duas décadas em que tive responsabilidades, no Museu Nacional de História Natural, de que fui director, beneficiei da muita estima e do afecto dos quatro reitores que nos tutelaram nesses anos, nomeadamente os Profs. Rosado Fernandes, Meira Soares, Barata Moura e Sampaio da Nóvoa.

Na Faculdade de Ciências, onde exerci a docência entre 1961 e 2001, ano em que me jubilei, a vida correu-me bem. Pode dizer-se que tive uma carreira sem dificuldades de maior, que me permitiu viver em paz comigo, com os colegas e com a instituição, num ambiente de grande afectividade e simpatia. Foi prova deste viver a numerosa assistência, nunca vista (cerca de 800 pessoas, entre amigos, colegas, alunos e ex-alunos), à minha última lição, “Geologia e Cidadania”, em 30 de Maio de 2001, no grande auditório da minha Faculdade. Foi, em especial, a afectividade que determinou a presença do general Ramalho Eanes e sua esposa, bem como a do Prof. Mariano Gago, nessa inolvidável cerimónia. É verdade que, praticamente, tudo o que experimentei fazer ou fiz, foi feito com amor, algumas vezes com paixão. 

Foi assim em criança, em que, brincando, fui aprendiz atento de muitas artes. Como estudante, só fui bom aluno com os professores com quem estabeleci relações de afecto. Com os outros fui sofrível ou, mesmo, mau.

Como professor que fui durante quatro décadas pude confirmar que a relação de afecto entre o aluno e o professor constitui uma componente fundamental para o sucesso escolar. Como divulgador de conhecimento que também fui durante esse mesmo período, mais os vinte anos que se seguiram à jubilação, diz quem me ouve ou lê nos meus livros, que as minhas palavras tocam a afectividade e que, muitas vezes, têm sabor de poemas. E eu sei que é verdade, posto que, ainda hoje, as minhas madrugadas são trocas de afectos com os meus mais de 22 200 leitores, no Facebook e nos blogues em que participo.

Quando, em 1997, o Presidente Jorge Sampaio me incluiu, como representante da comunidade científica, na comitiva que o acompanhou na sua viagem de Estado ao Brasil, foi certamente a proximidade afectiva estabelecida entre nós que determinou a sua escolha, deixando de fora muitos outros bem mais categorizados do que eu. Ver o meu nome, na edição de 22.06.99, do Expresso, ao lado de personalidades tão ilustres, como Abel Salazar, António Damásio, Egas Moniz, Gago Coutinho, Gentil Martins, Miguel Bombarda, Odete Ferreira, Orlando Ribeiro, Pulido Valente, Queirós de Melo, Ricardo Jorge e Rómulo de Carvalho, tendo ficado de fora desta lista um sem número de cidadãos bem mais merecedores de nela figurarem, tenho de concluir que nesta escolha, pesou, de sobremaneira, o relacionamento de simpatia e afecto que sempre mantive com os profissionais de informação e, através deles, com o público.
A. Galopim de Carvalho

terça-feira, 27 de julho de 2021

IPSISSIMA VERBA OS MALEFÍCIOS DA MATEMÁTICA

Novo texto de Eugénio Lisboa.

Para a maior parte das pessoas, a matemática é antipática (rima e, por acaso, é verdade). Mas, para outras pessoas, a matemática é pior do que antipática: é maléfica e, mesmo, francamente perigosa. Tcheckov escreveu uma peçazinha em um acto a que deu o título pedagógico de Os Malefícios do Tabaco. Poder-se-ia escrever todo um livro, coligindo e comentando testemunhos de eminências diversas, que viram, no uso intensivo da matemática, malefícios em nada menos deletérios do que os causados pelo tabaco. 

A matemática, por exemplo, ataca a saúde, de maneira assaz devastadora. Não sabiam? Pois quem o disse foi um médico suíço, Simon-Auguste David Tissot (1728-1797), que nada teve a ver com os relógios da afamada marca Tissot. Usava também o nome de Simon-André Tissot e escreveu várias obras interessantes, como, por exemplo, Avis au Peuple sur sa santé, Taité des nerfs et leurs maladies e, sobretudo, aquela que aqui nos interessa: De la santé des gens de lettres, publicada em 1769 e que viu uma sexta edição em 1795 (o que mostra o êxito editorial que a bafejou).

Nesta obra, entre outras coisas, faz este aviso que aqui deixo, para benefício do Professor Nuno Crato, sobre o mal que a matemática pode fazer às pessoas. Eu traduzo, do original, em francês: 
"O estudo [das matemáticas], desarranjando os nervos, produz uma infinidade de males. Um célebre matemático cuja conduta tinha sido sempre irrepreensível e que estava sob a ameaça de uma gota hereditária, apressou o deflagrar desta, ao empenhar-se demasiado na solução de um problema difícil.” 
O autor não especifica, infelizmente, se, entre a “infinidade de males” que a matemática desencadeia nas pessoas, estaria incluído o início caótico dos anos lectivos. Mas, pelo que tenho lido nos jornais e visto nas televisões, desconfio bem que sim. Pessoalmente, sempre achei o Professor Nuno Crato uma pessoa simpática e bem intencionada, de modo que só posso explicar as aflições em que anda metido, pelo seu empenho imoderado no terreno malsão da matemática. Tissot aconselhar-lhe-ia, estou certo, uma rigorosa dieta de alimentos pitagóricos. Vá por mim!

Mas há outros testemunhos igualmente preocupantes sobre as inquietantes consequências de nos devotarmos demasiadamente ao ameaçador universo de Pitágoras. Por exemplo, Monsenhor Dupanloup, de sua graça completa, Félix Antoine Philibert Dupanloup, nascido em 1802 e falecido em 1878, veio a ascender, tanto religiosa como secularmente, aos mais altos escalões da hierarquia: promovido a Bispo, foi, por outro lado, eleito para a augusta Academia Francesa, em 1854, e, pelos seus trabalhos sobre educação, veria Gregório XVI chamar-lhe, varado de apreço, Apostulus Juventutis. Era, diz-se, imponentemente alto, de feições nobilíssimas e dotado de brilhantes dotes de eloquência. Deixou, entre outras obras egrégias, uma monumental De la Haute Éducation Intelectuelle, em três formosos volumes, editada em 1866. É desta obra que transcrevo, transido de receio (como Crato, também gosto de números e de álgebras), estas palavras que, incompetentemente, traduzo:
“O estudo das matemáticas, ao comprimir a sensibilidade e a imaginação, torna, por vezes, terrível a explosão das paixões.” 
Imagine-se Crato, frio, amarrado ferozmente à beleza gélida dos números, comprimindo, formidavelmente, doentiamente, o fluir natural das paixões e da imaginação: o resultado só pode ser funesto. Quando a pressão sobe até valores intoleráveis, a espessura da botija de gás não aguenta: boum! 

Aqui têm, por fim, a explicação do que se passou com a abertura do ano escolar! É esta a única crónica fiável daqueles momentos de tanta consequência e das verdadeiras causas deles. Tudo quanto se tem escrito sobre o momentoso assunto é para esquecer. Cherchez la flame dans les chifres!
Eugénio Lisboa 

OTELO ANTES DA FAMA

Texto de João Boavida na sequência de texto de Eugénio Lisboa (aqui).


Muito se tem escrito sobre Otelo Saraiva de Carvalho, e muito continuará a escrever-se. Aqui, no De Rerum Natura, Eugénio Lisboa escreveu um dos melhores textos que li nos últimos dias sobre ele. Mas eu gostaria de falar sobre o Otelo Saraiva de Carvalho anterior ao 25 de Abril, desse tempo em que ninguém, fora da esfera militar, o conhecia. Penso que será a melhor maneira de encontrar a pessoa que ele foi.

Trabalhei com ele, diariamente, de setembro de 71 a setembro de 73, no Comando-Chefe do Quartel-General da Guiné. Muitas vezes pensei, nessa altura, como as suas qualidades estavam a ser mal aproveitadas, como se estava a gastar, ingloriamente, um homem daqueles. É certo que o mesmo estava acontecendo a muitos outros - toda uma geração foi sacrificada - mas de dentro da hierarquia, e ali, era porventura mais evidente ainda. 

Era então capitão de artilharia, arma onde as promoções eram lentas, o que de vez em quando lamentava, tornando mais evidente a injustiça da situação. Era, com toda a evidência, pessoa com qualidades para um posto e responsabilidades superiores. 

Otelo Saraiva de Carvalho era uma pessoa encantadora. Alegre, aprumado, despachado de gestos, era-o naturalmente e de forma espontânea, sem empáfia nem presunção. Criava à sua volta um ambiente de boa disposição e até de entusiasmo, mesmo quando as situações e as tarefas não eram nada entusiasmantes. Com uma voz forte e bem timbrada, tinha no entanto o cuidado de tratar os subordinados com delicadeza e sempre na perspetiva da pessoa concreta que estava à sua frente. Senhor de uma memória prodigiosa, tratava a todos pelo nome e não precisava de ir à lista dos números dos múltiplos telefones de toda aquela complexa engrenagem militar, para fazer a ligação que queria.
 
Pouco antes de eu chegar à Guiné tinha tido ele, e a esposa (Dina Alambre) o grande desgosto de lhes morrer uma filhita por umas febres brutais provocadas por um paludismo galopante. Mas, apesar disso, nunca deixou de cumprir com as suas tarefas nem se sentia isso nas formas de lidar, embora, por muito tempo, se lhe pressentisse o desgosto. 

Era, como se deve ter já percebido, uma pessoa delicada e gentil, não se lhe ouviam grosserias, e conseguia conciliar estas qualidades com elevadas qualidades militares. Era senhor de uma grande capacidade de comando, de planeamento e de supervisão, estava sempre atento aos pormenores e às situações imprevistas; previa-as, tanto quanto era possível, e integrava-as nos seus planos de ação. 

A organização, planeamento e execução do 25 de Abril demonstraram tudo isto, pelo que não estou a dar novidades a ninguém. Mas penso que é de alguma utilidade falar da pessoa que ele era, antes do que depois foi, ou do que dele fizeram ou quiseram fazer mais tarde. Com ele, e com outros, de resto, mudei a ideia dos militares que levava da Universidade. Reconhecendo embora que a desconsideração dos militares de carreira feita por nós era justa em relação a muitos, em relação à maioria daqueles com quem lidei de perto, não era. Havia na classe militar pessoas de elevada craveira intelectual e humana, e Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho era uma delas, e das melhores.

Que depois tenha sido capturado por forças radicais, só tenho a lamentar. Mas embora eu não tenha estado, nem de longe nem de perto dentro do processo judicial, custa-me muito a crer que ele tenha sido responsável pelos atentados que as FP 25 levaram a efeito. 
João Boavida

Conversa com Carlota Simões no Café Santa Cruz em Coimbra na quarta-feira. 28/7, pelas 19 horas


 Ciência Viva no Verão "Património e Ciência" 

No âmbito do projecto Ciência Viva no Verão, o RÓMULO leva a ciência à rua com conversas sobre Património e Ciência aos fins de tarde dos dias 21 e 28 de Julho e 1 e 8 de Setembro, todos eles às quartas-feiras, entre as 19h e as 20h, na muito agradável esplanada do histórico e emblemático Café Santa Cruz, na baixa de Coimbra.

A segunda tertúlia, realiza-se no dia 28 de Julho, das 19h às 20h (depois da habitual sessão de fado de Coimbra no Café), Carlota Simões, professora do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra que foi directora do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, conversará com Carlos Fiolhais, director do RÓMULO e com o público interessado, num diálogo que se pretende vivo e informal.

Para estas sessões, a participação é livre e gratuita.

Esperamos continuar juntos em prol da cultura científica, em particular defendendo e divulgando o nosso património. 

Julho:
Dia 21 - Sérgio Rodrigues à conversa com Carlos Fiolhais - 19 h
Dia 28 - Carlota Simões à conversa com Carlos Fiolhais - 19h 

Setembro: 
Dia 1 - João Fernandes à conversa com Carlos Fiolhais - 19h 
Dia 8 - João Rui Pita à conversa com Carlos Fiolhais - 19h 

Conheça o programa completo no site do RÓMULO.

HOJE DAVID SOBRAL ÀS 18 H NO "CIÊNCIAS ÀS SEIS" ON-LINE



Na terça-feira, dia 27 de Julho às 18h via plataforma Zoom, realiza-se a sessão intitulada "Em busca das nossas origens cósmicas" com David Sobral, astrofísico e professor na Universidade de Lancaster e moderação do Professor Carlos Fiolhais, director do Rómulo. 

 Esta é a última sessão da 5ª edição do ciclo "Ciência às Seis" do ano lectivo de 2020/21, iniciativa do RÓMULO - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, coordenado por Carlos Fiolhais e colaboração de António Piedade. Destinada ao público em geral, a sessão é de participação livre, sem necessidade de inscrição. 

 Acesso à sessão no Zoom: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/85680890756 ou ID da reunião: 856 8089 0756 

 Resumo da Palestra: É natural que os seres humanos se interroguem sobre as origens. De onde vem o Universo? De onde veio tudo o que existe? Em particular, de onde vieram as estrelas e as galáxias? A moderna ciência astrofísica veio trazer luz sobre a origem do Universo: hoje sabemos que teve início com o Big Bang, há 14 mil milhões de anos, e que as primeiras estrelas e galáxias começaram cerca de um milhão de anos mais tarde. Mas como eram essas estrelas e galáxias primitivas que hoje estão muito longe de nós devido à expansão do espaço? 

 Biografia do Orador: 

 David Sobral, professor associado da Universidade de Lancaster, no Reino Unido. A sua área de especialidade é a astrofísica extragaláctica, isto é, tudo o que está fora da nossa Galáxia, a Via Láctea, o conjunto de milhares de milhões de sóis. Em particular tem estudado a origem e evolução das galáxias. Natural do Barreiro, David Sobral doutorou-se na Universidade de Edimburgo, na Escócia, em 2011, Nos dois anos seguintes foi pós-doc no Observatório de Leiden, nos Países Baixos. De 2013 a 2016 trabalhou na Universidade de Lisboa, para depois se transferir para Lancaster onde está hoje. O seu feito que teve mais impacte nos média foi a descoberta em 2015 da galáxia “COSMOS Redshift 7” (CR7), a 12,9 mil milhões de luz da Terra. O limite do Universo observável é 14 mil milhões de anos luz. Essa galáxia, com nome associado ao jogador português mais famoso de sempre, é a mais brilhante do Universo primordial e um sítio onde formaram algumas das estrelas mais antigas, mas David Sobral também estudou a chamada “crise cósmica”, os filamentos galácticos e os “tsunamis” de galáxias. O seu trabalho já lhe valeu várias distinções. 

segunda-feira, 26 de julho de 2021

OTELO: A AUDÁCIA DE FAZER

 

Novo texto de Eugénio Lisboa: 

Há serviços tão grandes que não se
podem pagar a não ser com ingratidão.
Alexandre Dumas 

Morreu no passado dia 25 Otelo Saraiva de Carvalho, nascido em Lourenço Marques, como eu, tendo frequentado o mesmo liceu que eu frequentei (ele, seis anos mais novo), de certo modo, moçambicano, sem deixar de ser português, mas com a marca distintiva dos ali nascidos: uma certa candura, simplicidade, afectuosidade e fácil entrega, em suma, uma total falta de ronha, em língua de boa cepa moçambicana. Coração na boca, capaz dos maiores dislates, mas não intrinsecamente mau, bem ao contrário.

Sem grande cultura, nem mesmo cultura política, superficial, susceptível de derivas perigosas, impulsivo, mas invulgarmente audacioso e determinado no fazer, como poucos portugueses: a maioria acomodou-se, durante décadas, sem grandes problemas de consciência, no seio de um regime pífio, provinciano, inculto, censório, persecutório, sem ambição, dispensando sem escrúpulos os melhores e apaparicando os medíocres acomodatícios, imitando timidamente os fascismos disponíveis no mercado, mas com uma falta de visão de dona de casa pobre (mas agradecida), sem ideias e odiando quem as tivesse, um regime sufocante, vergonhoso mas sem vergonha – em suma, um pântano mal cheiroso e venenoso.

Um regime em que os meus textos, que me tinham custado anos e anos de estudo empenhado e amoroso, eram trucidados às mãos de censores boçais e analfabetos, desconfiados de tudo e da própria sombra. Um regime em que o acesso aos livros e à cultura em geral era brutalmente vigiado e reprimido por incompetentes caninamente obedientes à voz do dono. 

Tudo perpetrado, de alma contente, a bem da Nação. O homem do leme, Salazar, no seu casamento de conveniência com a Igreja Católica de Cerejeira, fora ao ponto de dizer que quem não era católico era antipatriota. Isto explica o aparecimento de tantos Tartufos, logo apostados em parecer mais devotos que os devotos. O mérito era secundário ou mesmo perigoso. Nos estudos, se um aluno se destacava em conhecimento e rebeldia, logo aparecia um ou outro professor colado ao regime, que avisava: “Cuidado! De pequenino é que se torce o pepino…” A mediocridade, por outro lado, sossegava e era abençoada.

Uma guerra absurda e mortífera – que o tiranete de Santa Comba sempre soubera que não ia acabar bem – arrastava-se, perante os olhos de uma comunidade internacional que nos condenava sem apelo e nos remetia para um patético “orgulhosamente sós”. E deixando um rasto pavoroso de mutilações físicas e psíquicas, que ficariam a marcar pela vida fora os por elas atingidos.

Otelo e outros capitães souberam ousar pôr fim a tudo isto. Não é pouco, ao fim de 48 anos de opressão, de Caxias, Peniche e Tarrafal a bem da Nação, 48 anos de terror e desmotivação, aparecer alguém a ter a audácia de achar que podia pôr termo ao absurdo, mostrando como fazê-lo e fazendo-o. “Um herói”, disse-o Romain Rolland, no seu romance Jean-Christophe, “é aquele que faz o que faz. Os outros não o fazem.” 

Otelo e os seus companheiros de Abril fizeram o que havia a fazer: o que a maioria dos portugueses não fizera, o que, para não poucos, viria a constituir uma encapotada afronta.

Antes do 25 de Abril, quando eu ia lá fora encher-me do que não havia em Portugal, acesso livre à cultura, sem o intermediário de vigilantes, quando ia a Paris, a Londres, a Roma, a Bruxelas, e quando me perguntavam qual era a minha nacionalidade, tinha vergonha de dizer que era português. Depois do 25 de Abril, passei a ter menos vergonha e até a ter algum orgulho. 

Fiquei, em suma, com uma dívida insanável para com Otelo e os capitães de Abril. E nunca gostaria de a pagar com a moeda mais em uso nestes casos: a ingratidão, que Dumas denuncia na epígrafe que colei a este texto. Com isto, não quero encobrir os actos ulteriores de Otelo, que totalmente repudio. Quero muito lisinhamente não ser ingrato.

Otelo, a despeito de tudo o que, depois, fez, de tonto, de perigoso e de mal, foi, com outros, o herói que pôs fim ao reino da estupidez e da vergonha. Regatear-lhe reconhecimento, a pretexto de derivas mal congeminadas, pode ser mesquinho e tortuoso (ou simplesmente exercício de má pontaria). 

Não houve quase nunca heróis quimicamente puros, embora um Salgueiro Maia, rara excepção, se tenha aproximado muito desse ideal. 

Dos gregos antigos, de Alexandre da Macedónia, de Júlio César até Napoleão e, mais recentemente, George Patton ou MacArthur (na segunda guerra mundial), não há heróis puros, repito. A todos eles se podem pôr as mais severas reservas. A coragem e a audácia têm o seu preço elevado, no equilíbrio instável dos temperamentos dos homens não vulgares. Não compreender isso é não compreender nada. É querer comer o bolo e guardá-lo. É ser ingrato.

“Não há um único dos que comigo aprenderam a disparar, que depois não faça de mim o alvo”, observou o acutilante Montherlant, que nunca teve frio nos olhos. No exercício quotidiano da mesquinhez e da ingratidão, há não sei quantos a quem Otelo restituiu a liberdade e que lhe agradecem escoicinhando-o e, às vezes, insultando-o. 

Não nos enterneçamos: as coisas são o que são e os homens são o que podem ser.

Eugénio Lisboa

domingo, 25 de julho de 2021

A MINHA EXPERIÊNCIA COMO PROFESSOR

Novo texto do Professor Galopim de Carvalho.

(40 anos de vida na Faculdade de Ciências, dos quais, 15 na de Letras, em Geografia).


Terminada a licenciatura em Ciências Geológicas, em 1961, e sem qualquer preparação pedagógica, comecei imediatamente a leccionar, como assistente, em aulas práticas, na Faculdade de Ciências de Lisboa. Nos últimos anos de uma cristalografia essencialmente morfológica, baseada nas medidas de ângulos entre as faces dos cristais, e no começo de uma outra, dita estrutural, a penetrar no âmago da matéria cristalina e fundamentada nos arranjos tridimensionais dos respectivos átomos, tive à minha responsabilidade as aulas práticas de Cristalografia e de Mineralogia, sob a orientação do titular da cadeira, então o Doutor Rodrigo Boto, um compêndio vivo nestas matérias. 

Com ele ganhei um gosto especial pelo estudo dos minerais, uma semente que guardei ao longo dos anos e que, mais tarde, deu os seus frutos nos vinte anos (1983-2003) em que tive a meu cargo o sector de Mineralogia e Geologia do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. 

Só após o doutoramento me iniciei na regência de aulas teóricas. Os tempos eram outros e os jovens docentes eram preparados para prestar serviço na maioria das disciplinas da licenciatura. Da Cristalografia, Mineralogia e Petrologia, passando pela Geologia, Paleontologia e Geomorfologia, à Sedimentologia e Jazigos Minerais, quer em trabalhos práticos no laboratório e no campo, quer em aulas teóricas, em auditórios repletos de alunos, os docentes dos anos 60 e 70 eram conduzidos a uma visão ecléctica da sua área científica. 

Um tal eclectismo estava bem patente nas modalidades de doutoramento e de agregação de então que, para além das respectivas dissertações, incluíam provas teóricas e práticas incidindo sobre a totalidade das disciplinas da respectiva área. 

Como hoje, a par da investigação científica, o docente da minha geração criava a sua própria pedagogia. Definia os conteúdos das suas cadeiras, regia-as a seu modo e, no final do ano, examinava os seus próprios alunos. A diferença com os tempos presentes está no facto de os actuais docentes, praticamente, só leccionarem as matérias afins do seu domínio de investigação. Desta nova visão do ensino resulta que grande número de docentes são, logo de início, conduzidos a especialização, adquirindo muitos conhecimentos num domínio bem delimitado, e muito poucos no restante saber abrangido pelo universo científico do respectivo departamento, incluindo aquele saber que nos habituámos a considerar como cultura geral. 

Ao iniciar funções docentes e, como disse, sem qualquer formação pedagógica, era minha convicção, que confirmei ao longo dos anos, que aprender a gostar de saber é uma das chaves que abre o caminho ao sucesso escolar. As outras, que a experiência me ensinou, são, por um lado, inculcar no aluno a consciência do dever cívico de estudar e, por outro, estimular-lhe a auto-estima. Quaisquer que sejam as matérias em causa ou o nível de escolaridade ou etário do aluno, estas chaves fazem dele alguém que encara o estudo como uma condição de cidadania e que, além disso, tem gosto em estudar e que frequenta a escola com prazer. 

Para tal, o professor tem de conseguir estabelecer com o aluno uma aproximação de confiança e afectividade mútuas que lhe permita actuar, com êxito, nestas vertentes. Em algumas disciplinas da minha responsabilidade, como regente, de entre as mais avançadas e com menor número de alunos, informava-os, logo nas primeiras aulas, da meia dúzia de temas sobre os quais incidiria o essencial da avaliação final e acrescentava que, de entre eles, tirariam dois, à sorte e com quarenta e oito horas de antecedência, sobre os quais dissertariam ao nível da preparação que adquirissem.

Durante as aulas sempre fiz questão de prender os alunos ao tema em tratamento, desencorajando-os de, como era seu hábito, tomar apontamentos de tudo, frase a frase, estenograficamente. Convidava-os a acompanharem a exposição, a reflectirem e a atingirem conceitos novos com base em dados adquiridos e ideias já formadas. Relativamente aos temas essenciais, passíveis de avaliação em exame, avisava-os disso e indicava-lhes a bibliografia que deveriam consultar. Face a outros temas, não essenciais, mas que me não dispensava de abordar, acrescentava que não seriam matéria de exame e que bastava que me seguissem com atenção, e que, caso isso os interessasse, podiam sempre retomar o tema, comigo, ou consultar o livro mais adequado.

Esta metodologia funcionou sempre bem e com bons frutos. Por razões diversas, umas conhecidas, outras não, é frequente numa qualquer turma haver um, dois ou mais alunos menos motivados e visivelmente desinteressados das matérias em apresentação. Face a esses alunos, logo identificados nas primeiras aulas, adoptei uma estratégia que quase sempre resultou. Dava-lhes mais atenção, procurando estabelecer com eles um relacionamento de simpatia, que não era difícil transformar em amizade, e lhes tornava agradável a presença e o convívio na sala de aula. Colocava-lhes problemas simples, ajudando-os, se necessário, a resolvê-los, sem que se dessem conta dessa ajuda. Posto isto, elogiava-os na presença dos colegas, dava-lhes consideração e tratamento que acabava por os estimular a estudar e, assim, continuarem a merecer essa consideração.

O resultado deste procedimento era, quase sempre, ganharem gosto pelas matérias, pelo seu estudo e, sobretudo, a já referida auto-estima. - Estuda-se para saber e não para passar no exame. - Dizia-lhes sempre que surgia oportunidade para o lembrar, rematando. - É o saber que nos valoriza como profissionais e como cidadãos. E o saber pressupõe trabalho. Numa época em que os alunos faltavam muito às aulas teóricas, aulas que, em alguns casos, eram perfeitamente substituíveis pela correspondente e hoje, felizmente, desaparecida sebenta, a grande maioria dos alunos assistia às minhas aulas do primeiro ao último dia. 

Uma grande aproximação entre alunos e professores foi, aliás, uma característica do nosso departamento de Geologia, e o principal potenciador dessa vivência era o convívio no campo, durante as saídas que fazíamos e cuja frequência tem vindo, infelizmente, a diminuir. Passar dias juntos, em plena natureza, comer a merenda sentados no chão em cordial camaradagem, favorece essa aproximação, com efeitos positivos na vivência académica. Nos exames, o aluno sentia-se na presença de um professor com quem tinha um bom relacionamento e não na de um qualquer examinador desconhecido. Sempre dei grande importância ao exame oral, quanto a mim, o que melhor avalia o aluno. Nunca apreciei, nem enquanto aluno nem, mais tarde, como professor, o estilo de orais, nas quais o examinador fazia uma pergunta e ficava, calado, à espera da resposta que, ou não vinha ou era recitada, estereotipadamente.

Em quatro décadas de docência na Universidade de Lisboa, contam-se por milhares os alunos que examinei, ou avaliei, como se passou a dizer a seguir à revolução dos cravos, por repúdio, por parte dos alunos, do substantivo exame e do verbo examinar, (do latim examinare, avaliar, pesar) expressões conotadas com o regime execrável acabado de derrubar. Foi o fim dos exames e o nascimento dos testes, um tema que os sociólogos e os historiadores saberão explicar, e que constitui um capítulo do período conturbado que se seguiu imediatamente ao 25 de Abril, no seio das universidades portuguesas. Nas provas escritas muitos são, entre alunos e professores, os que preferem os testes “à americana”, com respostas imediatas, no estilo de colocar uma cruz numa casinha entre duas, três ou quatro, à escolha. São cómodos e rápidos de classificar, mas estão longe de avaliar, na íntegra, o examinando. 

Não foi este o meu modo de conceber os pontos de exame. Sempre preferi as questões proporcionando respostas escritas, mais ou menos desenvolvidas. Permitem melhor aproximação ao estado de preparação do aluno, não só na disciplina em avaliação, como na globalidade dos seus conhecimentos, organização das ideias, capacidade expositiva, maturidade intelectual. Esta modalidade de exames representa um esforço maior por parte do professor incumbido de os classificar, mas tem vantagens na justeza dessa classificação. Deste esforço sobressai, muitas vezes, demasiadas vezes, o ter de se confrontar com a má utilização da língua materna, a deficiente ortografia e a péssima caligrafia reveladas por um número preocupante dos nossos alunos, fruto de um ensino vindo de trás, que deixa muito a desejar e que os mesmos sociólogos e historiadores saberão, igualmente, interpretar. Por tudo isto sempre achei mais agradável e repousante o exame oral, até porque, em geral, os nossos alunos ainda falam melhor do que escrevem.

Comigo, na situação de encarregado de uma regência e em determinadas disciplinas, não havia prova escrita. Todo o aluno ia à oral e a oral era uma conversa. Neste tipo de provas e seguindo o exemplo do meu velho Professor Torre de Assunção, iniciava o interrogatório com um qualquer assunto que, certamente, o aluno me inspirava, num diálogo prévio de aproximação. A dada altura começava a introduzir na conversa um tema da disciplina em avaliação, dando ao meu jovem interlocutor a oportunidade de entrar no diálogo que se prolongava, menos ou mais, em função da sua participação. 

Nas provas de alunos com muito boa preparação, não se dava conta do tempo, que corria veloz. No caso dos alunos mal ou muito mal habilitados, eu não me calava, continuava a dissertar, percorrendo a matéria dada nas aulas, na busca de um tema que permitisse estabelecer diálogo, sem sujeitar o aluno ao desconfortável e embaraçoso silêncio que sempre se segue a uma pergunta para a qual ele não tem resposta. Findo algum tempo, quinze minutos, no máximo, interrompia o monólogo, pondo termo à prova com bom trato e simpatia que, casos houve de alunos que só a palavra Excluído, escrita na pauta, frente ao seu nome, lhes dava a certeza de terem reprovado. 

Um certo dia, um aluno, já homem feito e pai de família, um trabalhador-estudante que não frequentava as aulas teóricas porque trabalhava o dia todo no seu emprego, ao levantar-se da cadeira, à minha frente, no final de uma prova oral da qual saía excluído, confessou-me que viera à sorte, “a ver se calhava”, mesmo que fosse um dez. Isto porque lá na sua repartição, a licenciatura permitir-lhe-ia subir de posto. Para ser chefe o que era preciso era ser doutor. Não interessava a licenciatura, fosse ela em História, Filosofia ou Geologia, não interessava. O que era preciso era ter o canudo. E ao despedir-se disse-me, o que muito me agradou ouvir, que nesta prova aprendera a gostar da matéria e que, cá estaria, no próximo ano, bem preparado. E assim aconteceu.
A. Galopim de Carvalho

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Programa de Doutoramento em Estudos Globais da Universidade Aberta


Está a decorrer, até ao dia 25 de julho, o período de candidatura ao Programa de Doutoramento em Estudos Globais: https://candidaturas.uab.pt/cssnet/page


Entre outras atividades, os estudantes deste programa de doutoramento têm acesso privilegiado ao Seminário Internacional de Estudos Globais, que tem contado com a participação de insignes especialistas de diversas áreas do saber.

NOVIDADES DA GRADIVA


Informação recebida da Gradiva:

António José Saraiva: A intimidade de um intelectual indomável
(Fotobiografia)
António Manuel P. Saraiva, José António Saraiva, Pedro António P. Saraiva
29,00€ 

A vida quotidiana de um dos mais estimulantes e criativos intelectuais portugueses do século XX, em fotografias e texto escrito pelos três filhos.

Um livro para ler, ver e… guardar.


Disponível a 24 de Julho.


https://www.gradiva.pt/catalogo/52935/antonio-jose-saraiva:-a-intimidade-de-um-intelectual-indomavel-

As Canções das Árvores
Histórias sobre as grandes redes da natureza
David George Haskell
16,00€ 

VENCEDOR DA MEDALHA JOHN BURROUGHS 2018 PELA EXCELÊNCIA NA ESCRITA DE HISTÓRIA NATURAL.

ESCOLHIDO COMO UM DOS MELHORES LIVROS DE CIÊNCIA DE 2017 POR SCIENCE FRIDAY E BRAIN PICKINGS

«Uma canção de amor às árvores, uma exploração da sua biologia e uma análise filosófica maravilhosa do seu papel na história humana e na cultura moderna.»

Science Friday

Dono de uma escrita eloquente David Haskell reflecte neste seu livro apaixonante em como a história humana, a ecologia, e o bem-estar estão intimamente ligados com a vida das árvores.

Com um prefácio de António Bagão Félix.

https://www.gradiva.pt/catalogo/52927/as-cancoes-das-arvores

Os meus compatriotas
Luís Valente de Oliveira
14,00€

Como são os Portugueses deste século XXI?
Atributos, comportamentos, hábitos, manias…
Reflexão em nome próprio resultante da observação que o autor fez dos portugueses durante os vários cargos públicos que ocupou.

Nota de abertura disponível aqui.

https://www.gradiva.pt/catalogo/52925/os-meus-compatriotas


Alix Senator 2
O Último Faraó

Valérie Mangin, Thierry Démarez
16,50€ 

Roma, ano 12 a. C. O imperador Augusto é todo-poderoso. Alix tem mais de cinquenta anos e é senador. Mas a paz que reina em Itália não é senão aparente. O próprio imperador por pouco não foi morto por um louco que dizia agir em nome de... César! Loucura, logro ou verdadeiro regresso? Alix e os seus filhos vão ter de o descobrir…
A segunda aventura Alix, agora senador de Roma, já disponível.

Primeiras páginas disponíveis aqui.

https://www.gradiva.pt/catalogo/52926/alix-senator-2-

Frankenstein em Bagdade
Ahmed Saadawi
PRÉMIO INTERNACIONAL DO ROMANCE ÁRABE
14,00€ 

Agora em versão papel.

Um romance premiado, que TRANSPORTA o leitor para o IRAQUE DEVASTADO pela guerra.

A tragédia e o absurdo, o horror, o patético e o cómico, num cenário de ruínas e resiliência humana... que  a muitos no Ocidente deve pesar na consciência. Metáfora expressiva de uma realidade que nós ocidentais conhecemos muitos mal. Frankenstein em Bagdade é uma obra extraordinária que retrata com horror e humor negro arrepiantes o mundo surreal de uma cidade aniquilada.

TAMBÉM DISPONÍVEL EM EBOOK.

https://www.gradiva.pt/catalogo/52928/frankenstein-em-bagdade-

Leiria Nocturne
Orlando Ferreira Barros
11,90€ 

O que se conta neste livro é a história de vida – nascimento, agonia e loucura – do credenciado Pierre Bonnechance, aquele que era o único preto da cidade de Leiria. Mas também o mais bem vestido, o mais perfumado, e que fazia dele um preto mais branco que os brancos. Gozou de um estatuto de privilégio, ancorado no seu amor devotado ao Estado Novo, de que se fez, desde a juventude, grande apoiante. O 25 de Abril desbancou-o desde estatuto, levando-o a mergulhar no fel da rejeição. Consegue recuperar quando, no velório de Torcato Bernardes (Os Manuscritos de Leiria, editado pela Gradiva), encontra a viúva Palmira João (Os Manuscritos de Leiria). É ela que o vai ajudar a superar a confusão do vale-tudo, segundo ele, que se instalou no país com o 25 de Abril. Mas a sorte não estava com ele, acabando Pierre Bonnechance num estado de delírio, vagabundeando pela cidade, citando as profecias de Isaías.

Tal como um nocturne de Chopin, pela narrativa perpassa uma aragem de melancolia, tristeza, soturnidade, mas também emoções límpidas e serenas que se desentranham da alma de qualquer ser humano que mantenha a sensibilidade intocada.

TAMBÉM DISPONÍVEL EM EBOOK.

https://www.gradiva.pt/catalogo/49135/leiria-nocturne


REEDIÇÃO

Calvin & Hobbes
Bill Watterson
12,11€ 

«Bill Watterson é um artista de primeira linha. Fascinante. Possuidor de um traço e um ritmo invulgares, tem uma memória de elefante.

Calvin & Hobbes não precisam disso. A alucinação diária quase não lhes dá tempo para olharem para ontem. Estão connosco todos os dias. São uma dupla de verdadeiros cascadeurs domésticos. Cidadãos do mundo, são universais.
Calvin não tem qualquer explicação. Ele é! Tudo o que faz, pensa ou diz corta-nos a respiração. A todos. De resto não é só a nós. Que o digam os pais, a babysitter, Hobbes ou mesmo os inofensivos bonecos de neve.
Hobbes é o melhor amigo da onça. Não é por acaso que é um tigre. Uns dias, é um boneco voyeur impenitente. Outros, um companheiro de todas as horas. O melhor.»

Henrique Cayatte

https://www.gradiva.pt/catalogo/13922/calvin-&-hobbes


VICTOR GIL: UM QUÍMICO ARRUMA A CASA

 


Meu artigo no I de ontem:

Acaba de sair com a chancela da editora Texto, do grupo Leya, um livro autobiográfico da autoria de Victor Gil (1939-2018), professor de Química da Universidade de Coimbra, que também ensinou na Universidade de Aveiro, da qual foi o primeiro reitor em 1973. Foi investigador pioneiro em Portugal na área da Ressonância Magnética Nuclear, com a instalação do primeiro laboratório em 1967, e um notável pedagogo, não só directamente através das suas aulas universitárias, mas também pela autoria de numerosos livros de Química e Física. Foi ainda pioneiro em Portugal dos centros interactivos de ciência com a criação em 1995 do Exploratório Infante D. Henrique, em Coimbra, com base na sua experiência anterior na organização de exposições de ciência para jovens.  É um legado que, no seu conjunto, não pode deixar de ser considerado extraordinário. Poucos professores terão sido tão eclécticos como ele.

O formato do livro póstumo é muito original, pois trata-se de uma entrevista que o autor fez a si próprio, depois de ter dado uma entrevista ao jornalista João Almeida, da Antena 2, (programa “Quinta Essência”), na qual ele achou que tinha ficado muito por dizer. Aproximando-se dos 80 anos - o título Arrumar a Casa Antes dos 80 é elucidativo, como também o é o subtítulo Viagem ao passado em entrevista do próprio – achou boa ideia deixar por escrito a história da sua vida e o essencial das suas ideias sobre a vida e o mundo. Trata-se de um livro de memórias, um estilo insuficientemente cultivado entre nós, com o formato, um tanto espartilhante, de perguntas e respostas. O livro tem um subsubtítulo; As perguntas que já foram feitas e as outras. Um projecto em que o autor se desdobra naquele que pergunta e naquele que responde, aqui identificados por P e R, respectivamente. Começa com o capítulo «Sentimentos conjugados no pretérito recente» e termina com o capítulo «As outras actividades. Vidas e o futuro condicionado», passando por outros sobre a educação, o amor, a profissão e a “relação com os mistério”. No fim a “casa” fica “arrumada”.

Claro que o próprio só pergunta o que quer e, perante as perguntas colocadas, só responde o que quer. Mas, lido o livro de fio e pavio, não pude deixar de me admirar com algumas das perguntas que coloca e com algumas das respostas que dá. A obra, que tem prefácio de Júlio Pedrosa, ex-reitor da Universidade de Aveiro e ministro da Educação, conta a trajectória de vida do autor, num estilo, em certos passos, bastante intimista (lembrei-me do livro O Bilhete de Identidade, de Maria Filomena Mónica, Alêtheia, 2005). Os cientistas costumam ser bastante reservados relativamente à sua vida pessoal, mas o autor, de quem fui amigo e coautor numa dúzia de manuais e meia dúzia de artigos, desnuda-se amiúde, deixando-nos um testemunho pessoal terminado semanas antes de morrer. Houve um certo pressentimento de um final cuja hora não podia adivinhar: morreu de um ataque cardíaco repentino, durante a noite, sozinho em sua casa.

A obra foi publicada agora com a ajuda dos seus dois filhos, a química (quem sai aos seus…) Ana Gil e o engenheiro electrotécnico João Gil, que assinam a introdução. Os filhos cumpriram, assim, a vontade paterna ao divulgarem o projecto, cuja existência conheciam. Este é o segundo livro póstumo de Victor Gil, pois saiu em 2020 o livro de poesia Poréns e Encantos na Sana Editora de Aveiro. O livro mais recente contém alguns poemas desse livro, cuja qualidade literária será só incipiente. Os filhos ficaram admirados perante a quantidade de poemas que encontraram. Os colegas, como eu próprio, não lhe conheciam esse seu culto das musas.

Victor Gil nasceu de origem modestas na aldeia de Santana, perto da Figueira da Foz: a mãe era costureira que vendia em feiras e o pai agricultor, com uma ou duas vacas leiteiras. A criança cedo percebeu que, se não estudasse, não poderia escapar ao destino pobre que o seu berço lhe traçava. Estudou então com afinco, tendo obtido excelentes notas primeiro na escola primária local e depois no Liceu D. João III em Coimbra (uma escola que eu também frequentei, embora bastante mais tarde). Completou a seguir a licenciatura em Ciências Físico-Químicas na Universidade de Coimbra. Escreve o autor: «Lembro-me de algumas vezes o meu pai ter de pedir emprestados 500 escudos a um vizinho para eu poder pagar os encargos de alojamento e refeições e outras despesas, algumas significativas como a capa e batina». Mas, uma vez que Victor Gil continuava a revelar-se aluno brilhante (teve 18 a Matemática dada pelo Doutor Esparteiro, nota que este só tinha dado uma vez… a uma rapariga bonita!), obteve uma bolsa de estudo e foi convidado para ficar como assistente e ir para o estrangeiro estudar a Ressonância Magnética Nuclear – RMN, uma técnica de análise química então nova entre nós. O RMN consiste em sujeitar núcleos atómicos a um campo magnético, de modo a revelar certas características químicas da substância em análise. Victor Gil completou o doutoramento na Universidade de Sheffield, em Inglaterra, em 1965, na altura já casado e com a filha Ana recém-nascida. O Departamento de Química de Sheffield conta com quatro prémios Nobel, um dos quais Harry Kroto, descobridor dos fulerenos, que aparece numa fotografia do livro ao lado de Victor Gil (os fulerenos incluem o futeboleno, molécula parecida a com uma bola de futebol).

O primeiro laboratório de RMN em Portugal foi criado pelo Doutor Victor Gil logo que regressou. Em 1973, no tempo em que José Veiga Simão, catedrático de Física em Coimbra com o doutoramento também feito em Inglaterra, o designou reitor da então criada Universidade de Aveiro. Cumpriu só um mandato, embora tivesse continuado em Aveiro como catedrático. Voltou a Coimbra em 1982, ano em que eu também voltei à cidade, vindo da Alemanha. Conheci-o por essa altura, tendo verificado interesses convergentes quanto ao ensino e divulgação das ciências.

A obra pedagógica de Victor Gil é impressionante: foi coautor de mais de 40 títulos de manuais escolares e universitários, que foram utilizados por mais de 200 000 estudantes. Desatacam-se os seus vários manuais de Química do 12.º ano, os dois manuais universitários da Fundação Gulbenkian, um deles uma obra de referência sobre o RMN, e Orbitals in Chemistry, publicado em 2000 pela prestigiada Cambridge University Press.

Os centros interactivos de ciência têm uma longa história no mundo. O Palais de la Découverte em Paris é de 1937 e o Exploratorium de São Francisco é de 1969. Pois em Portugal, esses centros começaram a ser ensaiados entre nós apenas em 1991 por Victor Gil. O primeiro centro interactivo de ciência entre nós chamou-se «centro de iniciação à ciência», mas, em 1995, tomou o nome de Exploratório Infante D. Henrique. Lembro-me de, em Coimbra, ter apresentado a Victor Gil o meu amigo, então jovem, José Mariano Gago, físico experimental de partículas, que seria, em 1995, a primeira pessoa a ocupar a pasta da Ciência e Tecnologia em Portugal, no primeiro governo de António Guterres. Gago defendia o valor da experimentação na difusão da cultura científica e Gil, então à frente de uma exposição na Casa da Cultura de Coimbra, tinha ideias e know how para construir módulos interactivos de ciência. O Exploratório haveria de se mudar para Santa Clara, para um edifício que foi crescendo, albergando uma actividade também crescente. Porém, o fundador viu-se inopinadamente afastado da direcção, num processo que muito o magoou pela injustiça cometida. Escreve o autor: «Embora considere a ingratidão um dos piores defeitos, superei à custa de me manter activo». Passou a dedicar-se às artes: à poesia e às artes plásticas. Ainda viveu o suficiente para fazer uma exposição individual de arte na Universidade de Aveiro («Criar… na outra margem»), onde presidiu ao Conselho de Ética e Deontologia. Claro que o Exploratório não melhorou com o afastamento do seu criador, limitando-se a manter uma rotina, longe do fulgor de outrora.

Um bom indicador da criatividade de Victor Gil encontra-se num apêndice devotado ao humor químico no livro aqui em apreço. Eis algumas «piadas secas» aí contidas: «Uma solução que não é concentrada é distraída«, “Os electrões de Valência falam espanhol», e «Os metais são bons condutores porque não bebem quando conduzem».

Da extensa produção bibliográfica do autor, elencada apenas em resumo no final, destaco As Minhas Primeiras Investigações Científicas (Almedina, 1984), em colaboração com o filho, na altura ainda infante, e 33 Casos de Acaso em Ciência (Gradiva, 1996).

Aconselho a leitura de Arrumar a Casa Antes dos 80 a quem queira conhecer, compreender e apreciar o cientista, o pedagogo, o divulgador, o poeta, e, acima de tudo, a pessoa de Victor Gil, uma referência nacional na ciência e um ser humano singular. Para que o leitor se aperceba da obra deixo, como é costume nestas colunas, um excerto. Escolhi, do capítulo em que trata a “relação com os mistérios”, a posição do autor sobre a vida depois da morte: «Agora sou mais categórico: a ideia de uma alma e de uma vida depois da morte há muito que me abandonou. Acho que são meras criações da mente humana para compensar ignorâncias, para garantir justiças (segundo os critérios humanos), para perpetuar o instinto de sobrevivência (…) Não tenho medo de morrer, mas tenho pena, pois estou muito agarrado à vida». Agarrado à vida, viveu uma vida cheia, enchendo a vida dos outros. Que descanse em paz!

 

 

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Exames que não servem para nada

 Texto de Carlos Portela e Maria João Varela:

O IAVE determinou que as provas de exame nacional de Física e Química A (FQA), aplicadas em 2020, contivessem dois conjuntos diferenciados de itens: um conjunto de 8 itens cujas respostas contribuíam obrigatoriamente para a classificação final da prova, e um outro  conjunto de 18 itens dos quais apenas contribuíam para a classificação final os 12 itens cujas respostas obtivessem melhor pontuação.

Sendo o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória e as Aprendizagens Essenciais da disciplina os documentos de referência na conceção das provas de avaliação externa, não é congruente admitir-se  que as provas incluam itens que não avaliem aprendizagens essenciais. Do ponto de vista das aprendizagens avaliadas, não existiam assim diferenças entre o primeiro e o segundo daqueles conjuntos -  todos os itens, quer se incluíssem no primeiro conjunto ou no segundo, avaliavam aprendizagens significativas e essenciais.

Todos os itens incluídos em qualquer um daqueles conjuntos também não se distinguiam pela sua cotação (todos tinham cotação de 10 pontos).

A opção de um ratio de 1:1 nas cotações dos itens de uma prova foi uma inovação introduzida pelo IAVE nas provas de Física e Química A em 2020, e repetida agora em 2021, que nunca foi explicada. Porque é que todos os itens de uma prova, independentemente do tempo médio esperado de resposta associado a cada um deles (itens cujas respostas são obtidas em 1 ou 2 minutos têm a mesma cotação de itens cujas respostas necessitam de mais de 15 minutos) ou da sua tipologia, têm todos a mesma cotação? Esta opção é tecnicamente muitíssimo discutível, muito raramente utilizada pelos professores na sua prática e nem sequer é utilizada pelo IAVE na generalidade das provas…

Todos os itens de uma prova serão assim, à partida, indistinguíveis, quer do ponto de vista da relevância das aprendizagens que pretendem avaliar, quer do ponto de vista da sua cotação, não parecendo existir qualquer rationale para a inclusão de um determinado item no primeiro conjunto (itens ditos obrigatórios) ou no segundo (itens não obrigatórios).

Com base neste pressuposto, considerem-se dois casos.

Num primeiro caso, um aluno A acerta os 8 itens obrigatórios e acerta ainda os 18 itens não obrigatórios, sendo-lhe contabilizados os 12 melhores deste último conjunto. Um aluno B acerta também os 8 itens obrigatórios  mas, dos não obrigatórios, erra ou não responde a 6.  Ambos os alunos têm 200 pontos.

Num segundo  caso, um aluno A erra 4 itens obrigatórios e acerta os restantes – o aluno A terá obtido 160 pontos. Um aluno B erra ou não responde a 6 itens, mas dos não obrigatórios, acertando os restantes  – o aluno B terá obtido 200 pontos.

Fácil será concluir que, num universo de cerca de 40 mil alunos que realizaram a prova da 1.ª fase do exame nacional de FQA em 2020, foram atribuídas classificações idênticas a provas com desempenhos muito diferentes (em 2020, isso sucedeu num espectro largo que incluiu diferenças de desempenho até cerca de 25% do total de itens da prova), e foram  atribuídas classificações mais baixas a provas com melhores desempenhos (esta situação sucede quando as falhas são, fundamentalmente, nos itens ditos obrigatórios).

Fazendo corresponder desempenhos diferentes a classificações iguais ou, em casos ainda mais absurdos, fazendo corresponder desempenhos melhores a classificações mais baixas, é violado o mais elementar princípio que deve estar na base de uma avaliação justa e séria: a correspondência entre o desempenho do aluno e a respetiva classificação. A validade das provas de exame nacional de FQA de 2020 enquanto instrumento de avaliação que se pretendia rigoroso ficou assim seriamente comprometida.

Acresce ainda que esta solução, na qual a classificação depende da escolha das melhores respostas, é mais penalizadora para os examinandos com mais dificuldades ou que não lecionaram parte do programa, dado que esses examinandos não podem obviamente usufruir dessa escolha por não estarem em condições de responderem a todos os itens.

Para ilustrar a total falta de credibilidade e validade do modelo adotado pelo IAVE, na prova de exame nacional de Física e Química A (1.ª Fase) de 2020, analisam-se os resultados desta prova que foi realizada por 39 444 examinandos (a diferença do número total de alunos que realizaram a prova, em relação a 2019, é inferior a 5%, pelo que o argumento que procura justificar a variação dos resultados com o facto de apenas terem realizado o exame os alunos que necessitavam da prova para acesso ao ensino superior é falso).

Na figura seguinte, apresenta-se num histograma o número de classificações, de 0 a 20 valores, na prova realizada em 2020, e num gráfico de linhas o número de classificações, também de 0 a 20 valores, na prova realizada em 2019.



A distribuição de classificações relativa a 2020, além de completamente anómala quando comparada com a distribuição relativa a 2019 (e também com distribuições de anos anteriores) traduz resultados totalmente implausíveis.

Salientam-se os seguintes aspetos relativos à distribuição de classificações de 2020:

    o número de classificações tende a aumentar no intervalo de 0 a 18 valores;

    42,7% dos examinandos obtiveram 16 ou mais valores;

    10,8% dos examinandos obteve a classificação mais frequente que foi 18 valores (em 2019, apenas 2,9% das provas foram classificadas com 18 valores);

    14,5% das provas foram classificadas com 19 ou 20 valores (um aumento de mais de 10 vezes em relação a 2019, em que 1,4% das provas foram classificadas com 19 ou 20 valores);

    5,2% das provas foram classificadas com 20 valores (um aumento de mais de 10 vezes em relação a 2019, em que 0,46% das provas foram classificadas com 20 valores).

Uma vez que a prova de exame nacional da 1.ª fase de 2020 estava alinhada com as provas de anos anteriores, as completas anomalias e distorções que se verificaram nos resultados só podem ser atribuídas ao modelo adotado pelo IAVE e, em particular, à possibilidade de ter sido possível descartar 6 itens de um total de 26, sem que isso acarretasse, só por si, qualquer penalização - o modelo adotado permitiu que tenha havido provas com classificações de 18, 19 e 20 valores, mas, apesar disso, com falhas que puderam ir até 31%, 27% e 23%, respetivamente, do total de itens da prova.

 

Os resultados do exame final nacional de Física e Química A em 2020 mostram que o modelo adotado pelo IAVE não permitiu a avaliação do mérito relativo (uma análise semelhante poderia ser feita para provas de outras discipinas). Não foi assim cumprido o único objetivo definido em 2020 para o exame nacional de FQA:  seriar os alunos no acesso ao ensino superior.

O completo falhanço do modelo adotado em 2020 nunca foi assumido publicamente pelo IAVE, e também nenhuma entidade exterior ao IAVE quis pôr o dedo na ferida, denunciando o completo atropelo verificado no acesso ao Ensino Superior em 2020 (no qual as provas de exame de FQA assumem importância relevante). O IAVE pretende agora, em 2021, fazer a gestão dos estragos, tendo aumentado drasticamente o número de itens cujas respostas contribuem obrigatoriamente para a classificação final da prova (8 itens em 2020, 16 itens em 2021!).

O aumento do número de itens ditos obrigatórios poderá contribuir para a diminuição da amplitude do enviesamento das classificações subjacente ao modelo adotado em 2020, mas não resolve, de modo algum, o problema estrutural da solução adotada: a ausência de correspondência entre o desempenho do aluno na prova e a classificação obtida.

Ainda em relação ao aumento do número de itens ditos obrigatórios em 2021, é de sublinhar a forte injustiça daqui decorrente para os alunos que fizeram agora exame e que se deparam com regras mais uma vez arbitrariamente modificadas (se correu tudo tão bem em 2020, porque vão mais uma vez alterar as regras?...). Embora estes alunos tenham sido, seguramente, mais penalizados pelas condições excecionais de ensino e de aprendizagem, decorrentes da pandemia de COVID-19,  foram confrontados com um modelo de exame mais desfavorável em termos da probabilidade de obtenção de classificações elevadas.

Se a comparação dos resultados de 2020 com os resultados de 2019 não permite tirar qualquer conclusão sobre a evolução/regressão das aprendizagens dos alunos no domínio da disciplina de FQA, também a comparação dos resultados de 2020 com os de 2021 não terá qualquer significado, não permitindo também obter qualquer conclusão.

Resta a resposta confrangedora a uma pergunta muito simples. Para que servem então estes exames? Para nada.

 

Carlos Portela e Maria José Varela

(professores de física e de química do ensino secundário)

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