domingo, 25 de julho de 2021

A MINHA EXPERIÊNCIA COMO PROFESSOR

Novo texto do Professor Galopim de Carvalho.

(40 anos de vida na Faculdade de Ciências, dos quais, 15 na de Letras, em Geografia).


Terminada a licenciatura em Ciências Geológicas, em 1961, e sem qualquer preparação pedagógica, comecei imediatamente a leccionar, como assistente, em aulas práticas, na Faculdade de Ciências de Lisboa. Nos últimos anos de uma cristalografia essencialmente morfológica, baseada nas medidas de ângulos entre as faces dos cristais, e no começo de uma outra, dita estrutural, a penetrar no âmago da matéria cristalina e fundamentada nos arranjos tridimensionais dos respectivos átomos, tive à minha responsabilidade as aulas práticas de Cristalografia e de Mineralogia, sob a orientação do titular da cadeira, então o Doutor Rodrigo Boto, um compêndio vivo nestas matérias. 

Com ele ganhei um gosto especial pelo estudo dos minerais, uma semente que guardei ao longo dos anos e que, mais tarde, deu os seus frutos nos vinte anos (1983-2003) em que tive a meu cargo o sector de Mineralogia e Geologia do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. 

Só após o doutoramento me iniciei na regência de aulas teóricas. Os tempos eram outros e os jovens docentes eram preparados para prestar serviço na maioria das disciplinas da licenciatura. Da Cristalografia, Mineralogia e Petrologia, passando pela Geologia, Paleontologia e Geomorfologia, à Sedimentologia e Jazigos Minerais, quer em trabalhos práticos no laboratório e no campo, quer em aulas teóricas, em auditórios repletos de alunos, os docentes dos anos 60 e 70 eram conduzidos a uma visão ecléctica da sua área científica. 

Um tal eclectismo estava bem patente nas modalidades de doutoramento e de agregação de então que, para além das respectivas dissertações, incluíam provas teóricas e práticas incidindo sobre a totalidade das disciplinas da respectiva área. 

Como hoje, a par da investigação científica, o docente da minha geração criava a sua própria pedagogia. Definia os conteúdos das suas cadeiras, regia-as a seu modo e, no final do ano, examinava os seus próprios alunos. A diferença com os tempos presentes está no facto de os actuais docentes, praticamente, só leccionarem as matérias afins do seu domínio de investigação. Desta nova visão do ensino resulta que grande número de docentes são, logo de início, conduzidos a especialização, adquirindo muitos conhecimentos num domínio bem delimitado, e muito poucos no restante saber abrangido pelo universo científico do respectivo departamento, incluindo aquele saber que nos habituámos a considerar como cultura geral. 

Ao iniciar funções docentes e, como disse, sem qualquer formação pedagógica, era minha convicção, que confirmei ao longo dos anos, que aprender a gostar de saber é uma das chaves que abre o caminho ao sucesso escolar. As outras, que a experiência me ensinou, são, por um lado, inculcar no aluno a consciência do dever cívico de estudar e, por outro, estimular-lhe a auto-estima. Quaisquer que sejam as matérias em causa ou o nível de escolaridade ou etário do aluno, estas chaves fazem dele alguém que encara o estudo como uma condição de cidadania e que, além disso, tem gosto em estudar e que frequenta a escola com prazer. 

Para tal, o professor tem de conseguir estabelecer com o aluno uma aproximação de confiança e afectividade mútuas que lhe permita actuar, com êxito, nestas vertentes. Em algumas disciplinas da minha responsabilidade, como regente, de entre as mais avançadas e com menor número de alunos, informava-os, logo nas primeiras aulas, da meia dúzia de temas sobre os quais incidiria o essencial da avaliação final e acrescentava que, de entre eles, tirariam dois, à sorte e com quarenta e oito horas de antecedência, sobre os quais dissertariam ao nível da preparação que adquirissem.

Durante as aulas sempre fiz questão de prender os alunos ao tema em tratamento, desencorajando-os de, como era seu hábito, tomar apontamentos de tudo, frase a frase, estenograficamente. Convidava-os a acompanharem a exposição, a reflectirem e a atingirem conceitos novos com base em dados adquiridos e ideias já formadas. Relativamente aos temas essenciais, passíveis de avaliação em exame, avisava-os disso e indicava-lhes a bibliografia que deveriam consultar. Face a outros temas, não essenciais, mas que me não dispensava de abordar, acrescentava que não seriam matéria de exame e que bastava que me seguissem com atenção, e que, caso isso os interessasse, podiam sempre retomar o tema, comigo, ou consultar o livro mais adequado.

Esta metodologia funcionou sempre bem e com bons frutos. Por razões diversas, umas conhecidas, outras não, é frequente numa qualquer turma haver um, dois ou mais alunos menos motivados e visivelmente desinteressados das matérias em apresentação. Face a esses alunos, logo identificados nas primeiras aulas, adoptei uma estratégia que quase sempre resultou. Dava-lhes mais atenção, procurando estabelecer com eles um relacionamento de simpatia, que não era difícil transformar em amizade, e lhes tornava agradável a presença e o convívio na sala de aula. Colocava-lhes problemas simples, ajudando-os, se necessário, a resolvê-los, sem que se dessem conta dessa ajuda. Posto isto, elogiava-os na presença dos colegas, dava-lhes consideração e tratamento que acabava por os estimular a estudar e, assim, continuarem a merecer essa consideração.

O resultado deste procedimento era, quase sempre, ganharem gosto pelas matérias, pelo seu estudo e, sobretudo, a já referida auto-estima. - Estuda-se para saber e não para passar no exame. - Dizia-lhes sempre que surgia oportunidade para o lembrar, rematando. - É o saber que nos valoriza como profissionais e como cidadãos. E o saber pressupõe trabalho. Numa época em que os alunos faltavam muito às aulas teóricas, aulas que, em alguns casos, eram perfeitamente substituíveis pela correspondente e hoje, felizmente, desaparecida sebenta, a grande maioria dos alunos assistia às minhas aulas do primeiro ao último dia. 

Uma grande aproximação entre alunos e professores foi, aliás, uma característica do nosso departamento de Geologia, e o principal potenciador dessa vivência era o convívio no campo, durante as saídas que fazíamos e cuja frequência tem vindo, infelizmente, a diminuir. Passar dias juntos, em plena natureza, comer a merenda sentados no chão em cordial camaradagem, favorece essa aproximação, com efeitos positivos na vivência académica. Nos exames, o aluno sentia-se na presença de um professor com quem tinha um bom relacionamento e não na de um qualquer examinador desconhecido. Sempre dei grande importância ao exame oral, quanto a mim, o que melhor avalia o aluno. Nunca apreciei, nem enquanto aluno nem, mais tarde, como professor, o estilo de orais, nas quais o examinador fazia uma pergunta e ficava, calado, à espera da resposta que, ou não vinha ou era recitada, estereotipadamente.

Em quatro décadas de docência na Universidade de Lisboa, contam-se por milhares os alunos que examinei, ou avaliei, como se passou a dizer a seguir à revolução dos cravos, por repúdio, por parte dos alunos, do substantivo exame e do verbo examinar, (do latim examinare, avaliar, pesar) expressões conotadas com o regime execrável acabado de derrubar. Foi o fim dos exames e o nascimento dos testes, um tema que os sociólogos e os historiadores saberão explicar, e que constitui um capítulo do período conturbado que se seguiu imediatamente ao 25 de Abril, no seio das universidades portuguesas. Nas provas escritas muitos são, entre alunos e professores, os que preferem os testes “à americana”, com respostas imediatas, no estilo de colocar uma cruz numa casinha entre duas, três ou quatro, à escolha. São cómodos e rápidos de classificar, mas estão longe de avaliar, na íntegra, o examinando. 

Não foi este o meu modo de conceber os pontos de exame. Sempre preferi as questões proporcionando respostas escritas, mais ou menos desenvolvidas. Permitem melhor aproximação ao estado de preparação do aluno, não só na disciplina em avaliação, como na globalidade dos seus conhecimentos, organização das ideias, capacidade expositiva, maturidade intelectual. Esta modalidade de exames representa um esforço maior por parte do professor incumbido de os classificar, mas tem vantagens na justeza dessa classificação. Deste esforço sobressai, muitas vezes, demasiadas vezes, o ter de se confrontar com a má utilização da língua materna, a deficiente ortografia e a péssima caligrafia reveladas por um número preocupante dos nossos alunos, fruto de um ensino vindo de trás, que deixa muito a desejar e que os mesmos sociólogos e historiadores saberão, igualmente, interpretar. Por tudo isto sempre achei mais agradável e repousante o exame oral, até porque, em geral, os nossos alunos ainda falam melhor do que escrevem.

Comigo, na situação de encarregado de uma regência e em determinadas disciplinas, não havia prova escrita. Todo o aluno ia à oral e a oral era uma conversa. Neste tipo de provas e seguindo o exemplo do meu velho Professor Torre de Assunção, iniciava o interrogatório com um qualquer assunto que, certamente, o aluno me inspirava, num diálogo prévio de aproximação. A dada altura começava a introduzir na conversa um tema da disciplina em avaliação, dando ao meu jovem interlocutor a oportunidade de entrar no diálogo que se prolongava, menos ou mais, em função da sua participação. 

Nas provas de alunos com muito boa preparação, não se dava conta do tempo, que corria veloz. No caso dos alunos mal ou muito mal habilitados, eu não me calava, continuava a dissertar, percorrendo a matéria dada nas aulas, na busca de um tema que permitisse estabelecer diálogo, sem sujeitar o aluno ao desconfortável e embaraçoso silêncio que sempre se segue a uma pergunta para a qual ele não tem resposta. Findo algum tempo, quinze minutos, no máximo, interrompia o monólogo, pondo termo à prova com bom trato e simpatia que, casos houve de alunos que só a palavra Excluído, escrita na pauta, frente ao seu nome, lhes dava a certeza de terem reprovado. 

Um certo dia, um aluno, já homem feito e pai de família, um trabalhador-estudante que não frequentava as aulas teóricas porque trabalhava o dia todo no seu emprego, ao levantar-se da cadeira, à minha frente, no final de uma prova oral da qual saía excluído, confessou-me que viera à sorte, “a ver se calhava”, mesmo que fosse um dez. Isto porque lá na sua repartição, a licenciatura permitir-lhe-ia subir de posto. Para ser chefe o que era preciso era ser doutor. Não interessava a licenciatura, fosse ela em História, Filosofia ou Geologia, não interessava. O que era preciso era ter o canudo. E ao despedir-se disse-me, o que muito me agradou ouvir, que nesta prova aprendera a gostar da matéria e que, cá estaria, no próximo ano, bem preparado. E assim aconteceu.
A. Galopim de Carvalho

2 comentários:

Anónimo disse...

A investigação porfiada nas ultimas décadas pelos cientistas da educação, em Portugal, e no resto do mundo, veio demonstrar à saciedade, e à sociedade, que o papel do professor na escola já não é o de ensinar, na aceção que Professor Galopim de Carvalho tão bem descreve no seu depoimento. Hoje em dia, os cientistas da educação defendem que, como os alunos devem começar por aprender a aprender, a função do velho mestre escola, que era ensinar as Letras e as Ciências, tem de ser substituída pelo Coaching Educativo, em que os alunos aprendem a aprender a aprender. Quem aprendeu uma vez como se aprende a aprender, nunca mais vai necessitar de professores que ensinavam a ler, escrever e contar, e também matemática, literatura, história, geografia, música, biologia, informática, francês, geologia, química, física, filosofia, etc, etc, etc.

Fernando Caldeira disse...

É um documento muito forte, Professor Galopim. Digno de figurar numa antologia de textos de leitura obrigatória em qualquer formação em ensino.
Um ponto tocou-me particularmente: “aprender a gostar de saber é uma das chaves que abre o caminho ao sucesso escolar”. Sem dúvida, aprendi isso por experiência própria. E que quem ensina tem por isso, antes de mais, de gostar de aprender; depois transmitir o gosto que teve ao aprender e o gosto que tem em partilhá-lo.

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