Esquecemos muitas vezes o que nos parece óbvio!
Algumas coisas são tão próprias da nossa natureza, tão habituais e regulares, que não despendemos esforço para reparar nelas.
Todos os anos esperamos e achamos natural que muitas espécies de aves, como as andorinhas e outras pequenas aves como os beija-flores, ou colibris, regressem no início da estação da primavera.
A sua chegada, alegra-nos como prenúncio de um novo tempo de fertilidade, promessas de nova abundância de alimentos, de um clima mais ameno e contrário às agruras das estações frias. Mas de quão longe vêm essas aves que enchem o espaço com anúncios primaveris? Antes de continuar, façamos uma pausa, voltemos ao princípio.
No princípio esquecemo-nos de constatar o óbvio: antes de a vida desabrochar no planeta Terra já havia “tempo”, já havia “espaço”. A evolução da vida no planeta Terra efectuou-se sobre a matriz “física” do “tempo” e do “espaço”. E estes ficaram substantivos, elementos íntimos da vida. Ficaram incorporados nas características e propriedades do que é vivo num determinado período de tempo. Durante esse período de tempo, o ser vivo explorou e migrou num determinado espaço. Como as condições mais apropriadas “à sua vida” variavam no espaço e com o tempo, sobreviveram os grupos de indivíduos que melhor se adaptaram à variação frequente, cíclica, de determinados factores físicos e químicos, também eles variáveis no tempo e no espaço.
Assim, as migrações cíclicas ajustadas às estações climáticas são uma das características da vida neste planeta. Em todas as migrações dos seres vivos é possível encontrar algo de surpreendente que nos maravilha. O exemplo da migração das pequenas aves conhecidas por “beija-flores” (família Trochilidae) é um dos que surpreende pelo grande contraste entre o seu tamanho de poucos centímetros, alguns gramas de peso, e os milhares de quilómetros da sua migração sazonal à procura de flores e primavera.
Algumas espécies de beija-flores efectuam voos de cerca de 2400 km, sem nunca parar e sempre sobre o mar, para regressar às zonas em que a estação primaveril vai despontar. Para isso, estas pequenas aves mantêm uma velocidade de cerca de 40 km/h, durante cerca de 60 horas! Para “aguentar” a migração, estas aves alteram o seu metabolismo de reservas energéticas e armazenam uma significativa quantidade de gorduras na forma de ácidos gordos e cetonas, aumentando cerca de 10 vezes de peso e o dobro do tamanho! Uma transposição para o ser humano significaria um aumento de peso de cerca de 10 kg por dia, durante a preparação para o início da migração!
Um dos aspectos muito curiosos da bioenergética associada a esta migração é o de que água é produzida como um dos produtos da oxidação das gorduras (combustível) durante o voo. As pequenas aves não passam sede, nem fome, nem precisam de recorrer às proteínas dos seus necessários músculos para chegar ao seu destino.
No final da migração, o beija-flor consumiu cerca de dois terços da gordura armazenada, e ainda lhe “sobram” reservas de energia para alguma eventualidade, algum atraso na primavera, algum contra tempo do clima.
(contínua)
António Piedade