sexta-feira, 20 de junho de 2025

UM PROBLEMA ÉTICO DE PRIMEIRA GRANDEZA E DE ESCALA GLOBAL - 2

Ainda no documentário Young Addictions, objecto de texto anterior, vale a pena prestar atenção aos seguintes depoimentos:

Jeff Seibert (Ex-produtor executivo do Twitter). Estamos aqui em Silicon Valley, o centro do ecossistema tecnológico, a casa das grandes empresas tecnológicas mundiais e a sede da inovação tecnológica nas últimas décadas. Estou no setor da tecnologia há quase 20 anos. Criei três empresas diferentes e fui diretor de produtos de consumo no Twitter. Percebi que não havia alternativa. Deixei o Twitter e jurei nunca voltar a trabalhar numa empresa baseada em anúncios porque não queria roubar o tempo das pessoas. A partir de meados da década de 2000 em Silicon Valley começaram a perceber que era possível aplicar truques e técnicas de psicologia social para tornar as aplicações ainda mais viciantes. E começou a haver aulas em Stanford sobre como o fazer. Os funcionários destas empresas tornaram-se especialistas nisto.

Anne Lemke (Psiquiatra responsável pela Unidade de Medicina Dual no Diagnóstico Clínico de Dependências na Universidade de Stanford): Essas empresas contrataram neurocientistas que têm um conhecimento elevado sobre os padrões de recompensa e aplicam esse conhecimento para manter as pessoas agarradas. E fazem-no de muitas maneiras. O constante e interminável scroll é uma delas, porque nunca chegamos a sentir que já terminámos.

Jeff Seibert. A economia da atenção está basicamente a tornar-nos num produto. O que estas empresas estão realmente a vender é a nossa atenção. Um algoritmo é uma série de instruções que os computadores seguem com um certo objetivo. O algoritmo subjacente aos produtos das redes sociais está predefinido com o objetivo de ser o mais lucrativo possível.

Carissa Véliz (Doutorada em Filosofia pela Universidade de Oxford e autora de Privacidade é Poder”). E esse é um dos problemas que estamos a enfrentar, o facto de estes algoritmos não serem concebidos para melhorar a qualidade de vida das pessoas. São concebidos para fazer as empresas enriquecer e para tornar os jovens dependentes.

Jeff Seibert. O conteúdo (…) que as novas plataformas oferecem é cada vez mais simples. O Twitter usa texto e isso é demasiado difícil, é preciso energia para escrever e ler. Depois o Instagram é fotografia, é mais fácil de tirar e ver. E quanto ao vídeo? O Snapchat lançou vídeos de dez segundos. Agora, com o TikTok, é um fluxo interminável de conteúdo em vídeo. É tão hiponotizante que se torna muito atrativo para as crianças.

Anne Lemke. O vídeo vai diretamente para o nosso córtex visual. Combinando-o com música estimula-se o nosso sistema límbico ou cérebro emocional. Combinando estas coisas (…) temos uma droga muito potente e muito ativa nas nossas mãos. E esta nova droga digital chama-se TikTok. E ao contrário da cocaína que acaba, o TikTok é infinito.

Jeff Seibert. Esses algoritmos prestam atenção a tudo. O conteúdo das pesquisas, as fotografias em que clica, ao tempo que olha para essas fotografias. Tudo, cada interação é cuidadosamente monitorizada, registada e utilizada pelo algoritmo (…). Estão a tentar encontrar formas de cativar o mais cedo possível as crianças para que fiquem obcecadas por estas plataformas. Preocupa-me muito que as crianças cresçam a ver estas plataformas. A maioria das pessoas que conheço das tecnologias não permitem que os seus filhos passem tempo em frente aos ecrãs.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

UM PROBLEMA ÉTICO DE PRIMEIRA GRANDEZA E DE ESCALA GLOBAL - 1

Está disponível na RTP Play o documentário Young Addictions, que foi dirigido por Alejandra Andrade e Tomás Ocaña, e escrito por Mónica Palomero. Nele recolhi mais uma contribuição, a somar a outras que disponibilizei aqui e aqui, para ilustrar um problema ético de primeira grandeza e de escala global para o qual continuamos cegos, incluindo aqueles de nós que têm responsabilidades educativas.

Refiro-me às estratégias das grandes empresas tecnológicas para tornar os jovens e, mais recentemente, as crianças dependentes dos ecrãs, ao mesmo tempo que os seus donos e funcionários colocam os seus filhos em escolas onde eles não entram.

Essas escolas, cuja imagem de marca é a pedagogia Waldorf, encaixam na ideia comum de escola tradicional e para pobres: salas de aulas convencionais com as mesas dos alunos viradas para a secretária do professor e para o quadro de giz; livros, papel, lápis e outros recursos que se podem manusear; espaço exterior de terra e verde; experimentação de ofícios e artes manuais. 

Mas não é só a escola que veda o acesso a ecrãs, também as amas têm de o fazer.

Mais recentemente, a China limitou dentro de portas, para a sua populaçáo o uso de uma rede social que criou, incentivando-a fora.

Passo a palavra a alguns dos intervenientes que participaram no documentário

Pierre Laurent (Diretor da Escola Waldorf - Silicon Valley, Califórnia). Este campus está localizado ao funda da rua da Google (…). O Facebook fica a cerca de 10 minutos de distância, A Microsoft a outros cinco minutos e a Apple a 15 minutos. Estamos no coração das grandes empresas de tecnologia. Cerca de 75% dos nossos alunos vêm de uma família em que pelo menos um dos pais trabalha no setor da alta tecnologia. Até aos onze anos de idade, não usamos ecrãs digitais, telemóveis ou computadores. Os alunos não os trazem, nem estão autorizados a tê-los no campus. Dos 11 aos 14 anos podem ter os aparelhos desligados na mochila mas não os utilizam na escola. A partir dos 14 anos podem utilizar alguns computadores, desde que seja de forma produtiva, embora os telemóveis permaneçam nos cacifos durante todo o dia.
 
Sohe (Aluno da Escola Waldorf). No 7.º ano, quando recebi o meu primeiro telemóvel, tinha 14 anos e era um flip phone, só para telefonar às pessoas (…). Não vejo qualquer utilidade nas redes sociais. Por vezes parece que ficamos um pouco de fora, mas consigo abstrair-me do meu telemóvel

Maia (Aluna da Escola Waldorf). Bem, primeiro comecei por não ter redes sociais para além do Instagram, porque os meus pais me proibiam de o fazer (…). Até hoje, acho-as praticamente inúteis. Posso ficar sem telemóvel durante várias semanas ou meses, sendo que o único problema seria a comunicação com os meus pais ou ir a algum lado que precisasse de utilizar o GPS
Em 2017 enquanto os gurus da tecnologia admitiram proibir as crianças de usar ecrãs, doaram 300 milhões de dólares à Administração Trump para equipar tecnologicamente as escolas New York Times
Robin LeGrand (Diretora da Nanny Connection). Ganhei protagonismo graças aos trabalhadores tecnológicos de Silicon Valley. Eles tendem a ser muito restritivos relativamente aos dispositivos tecnológicos, tanto que no contrato que fazem com a ama há sempre uma cláusula restritiva (…). Estão mais preocupados porque conhecem as coisas viciantes que acompanham os dispositivos. Têm câmaras em casa para poder vigiar tudo, o que também consta no contrato (…). Considero controverso que os funcionários da indústria tecnológica não permitam que os seus filhos usem os dispositivos que desenvolveram. Se sabem que o uso pode ter consequências para os filhos, porque é que estão a desenvolver estas aplicações e dispositivos?

Martha Domínguez (Cuidadora). Assinámos um contrato. Não querem que as crianças utilizem tablets. Não querem que empreste o meu telemóvel às crianças. Dizem que é proibido para os seus filhos, porque não querem que eles fiquem viciados nos tablets. [Somos] muito vigiadas. Existe mesmo uma aplicação para todos os que vivem aqui, chama-se “Neighbours” (…). Tive uma entrevista com uma família Google. A casa deles estava cheia de câmaras (…) os seus cinco filhos foram proibidos de utilizar tablets. Eu disse: “mas se eles trabalham para a Google, porque não ensinam o mesmo aos seus filhos?”

Senado dos EUA, 5 de Outubro de 2021. Chamo-me Frances Haugen. Trabalhava no Facebook. Acredito que os produtos do Facebook prejudicam as crianças, dividem as pessoas e enfraquecem a nossa democracia. A liderança da empresa sabe tornar o Facebook e o Instagram mais seguros, mas não fará as mudanças necessárias porque colocou os seus lucros astronómicos à frente das pessoas. Tenho trabalhado em quatro tipos diferentes de redes sociais, compreendo as complexidades e as nuances destes problemas (…). Pelos nossos filhos, pela nossa segurança pública, pela nossa privacidade e pela nossa democracia

Rob Bonta (Procurador-Geral do Estado da Califórnia) (...). A China impõe restrições à utilização que as crianças chinesas fazem do Tiktok mas estas não estão a ser aplicadas no resto do mundo. Interessa-me saber que razões existem para tal.

terça-feira, 17 de junho de 2025

FICAMOS A SABER QUE HÁ UMA BOA E UMA MÁ IDEOLOGIA NA EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA

Por dever de ofício, revisitei recentemente, no site da Direção-Geral da Educação, os documentos de "educação financeira", um dos domínios da área curricular de "Cidadania e Desenvolvimento".
 
Percebi que tinha havido actualizações no sentido de reforçar o domínio (aqui, aqui e aqui, por exemplo). Em resultado escrevi um texto, que a seu tempo publicarei neste blogue, sobre o pendor marcadamente ideológico da área, tal como ela se apresenta. 
 
Ontem vi no blogue de Paulo Guinote (aqui) o que se segue, retirado do Programa do XXV Governo Constitucional (aqui):

O título que deu ao post foi, e muito bem, "A Piada Faz-se Sozinha".
 
Será que o domínio designado por Educação para os Direitos Humanos está cativo de "amarras e agendas ideológicas? Os direitos humanos são ideologia?!

Quanto à educação ou literacia financeira, tomadas erradamente como sinónimos, extraí do dito Programa, que ainda não havia consultado (os sublinhados são meus):
 
"Elevar o nível de literacia financeira da população, nomeadamente nas matérias relativas à segurança social, poupança e preparação para a reforma (p. 14).
Apostar na elevação do nível de literacia financeira da população, nomeadamente nas matérias relativas à segurança social, poupança e preparação para a reforma. Sendo esta necessidade mais premente entre as gerações mais jovens de trabalhadores, propõe-se que estes três temas integrem o plano nacional de formação financeira, em articulação com o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, com a preparação de materiais formativos dirigidos a diferentes públicos em função da interação das pessoas com a Segurança Social ao longo do seu ciclo de vida (p. 210).
 
Aqui as "amarras e agendas ideológicas" parecem-me óbvias... Se o leitor ficar com dúvidas pode consultar o site que acima indiquei.
 
Também é dito no Programa:
 
Garantir a implementação dos conteúdos de literacia financeira como conteúdos obrigatórios já no próximo ano letivo 2025/2026 (p.167)
 
Ora, os conteúdos que conheço de literacia financeira constam no Referencial de Educação Financeira que não é uma directriz, um programa oficial, é um "documento orientador" "não prescritivo" (p. 6).

segunda-feira, 16 de junho de 2025

ESFEROVITE

Por A. Galopim de Carvalho
 
Criado e produzido a partir de meados do século passado, o esferovite, nome comercial do poliestireno expandido, também conhecido por isopor (em outros países), é um tipo de plástico e um dos muitos derivados do petróleo e do gás natural. É um material espumado, muito leve, branco e eficaz isolante térmico e acústico. 
 
Durante a sua produção, o poliestireno é expandido com vapor d’água, formando esférulas brancas (daí o nome de esferovite), susceptíveis de serem aglomeradas e moldadas em blocos que podem ser cortados em placas, da espessura desejada, com o auxílio de um arame metálico quente. Pode ainda ser moldado em volumes, de modo a embalar peças ou aparelhos frágeis. 
 
A esferovite é um produto reciclável, que demora dezenas de anos decompor-se, o que gera preocupações ambientais. Tem grande capacidade de absorção de impacto, amolgando-se facilmente. É esponjoso, cheio de ar, muito leve e não absorve água facilmente, o que o torna útil em ambientes húmidos. 
 
É usada: na construção civil em isolamentos térmico e acústico, em paredes, telhados e lajes; em caixas térmicas, para transporte de alimentos, vacinas ou medicamentos e câmaras frigoríficas; em embalagens, na protecção de produtos frágeis, como eletrodomésticos, eletrónicos, louças e outros; como material para confecção de maquetes, cenários e peças decorativas.
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Nota
: O poliestireno é um tipo de plástico abundante e frequente no nosso dia-a-dia, em múltiplas aplicações. É um polímero sintético, derivado do estireno (um produto derivado do petróleo) que, ao ser submetido a polimerização, forma este produto. O poliestireno expandido (ou Isopor) é muitíssimo leve, com estrutura espumada (cheia de ar), usado para isolamento térmico, embalagens de proteção e na construção civil. É fácil de moldar, muito bom isolador térmico, é inflamável, não biodegradável e inimigo do ambiente se não for reciclado. Por polimerização entende-se um processo químico que consiste na união de pequenas moléculas pequenas, (monómeros), para formar moléculas maiores (polímeros). Os polímeros podem ser naturais ou sintéticos e estão na base de plásticos, borrachas e fibras sintéticas

RELER DE LA BOÉTIE PARA MELHOR ENTENDER QUE O PRIMEIRO SUSTENTÁCULO DA FORMAÇÃO CIDADÃ É O CONHECIMENTO

A transformação do currículo escolar, sobretudo a partir da última década do passado século, assenta em pressupostos (aparentemente) simples. Entre eles contam-se os seguintes:

1) ele, o currículo, é demasiado "obeso", "gordo", "comprido"... em termos de conteúdos disciplinares pelo que se torna necessário centrá-lo no fundamental, no essencial (leia-se mínimo), até porque, nas palavras de um alto dirigente da OCDE na área da educação escolar, "o google sabe tudo"; aos alunos cabe "pesquisar" por lá e "aplicar" o que recolherem...; 

2) o núcleo do currículo deve ser a "área de cidadania", onde se colocam as emoções, o bem-estar, a felicidade. Logo, a selecção das disciplina e dos seus conteúdos não se prende com o "valor que têm por si mesmos", mas pela funcionalidade que se lhes vê para desenvolver "competências de cidadania";

3) e diz-se serem as STEM ou STEAM (ciência, tecnologia, engenharia - artes - e matemática), requeridas no mercado de trabalho, que mais concorrem para tal fim porque podem conduzir ao "sucesso". As humanidades (a cultura e línguas clássicas, a história, a literatura, a geografia e as artes, em geral), tidas como uma lamentável perda de tempo, são acantonadas, reduzidas, extintas...

Estes pressupostos têm feito "engordar" a "educação para a cidadania", prevendo-se que assim continue. Em Portugal, aproxima-se dos vinte domínios (ver aqui).

Neste ponto, devemos colocar uma pergunta: que ideia de educação para a cidadania está subjacente à mencionada transformação? 

Levando-nos ela para terrenos movediços e sem fim à vista, perguntemos de modo mais modesto: é possível que os alunos se pautem por valores (éticos) sem saberem história e geografia, sem conhecerem as raízes da cultura ocidental, sem lerem de modo compreensivo textos que veiculam dimensões e perspectivas diversas da vida, sem terem explorado a condição humana através da literatura, do cinema, da pintura? 

Eu diria que não, pelo menos com a substância que esses requisitos permitem, ainda que tenha de reconhecer que, mesmo cumpridos, não são garantia da acção ética. Esta resposta levanta pelo menos três objeções:

1) E, as ciências? Não se pode menosprezá-las.
Claro que não: as várias disciplinas, se encaradas na sua essência e se devidamente exploradas, podem concorrer para essa acção consciente no mundo. E, reconheçamo-lo, as ciências (não as STEAM) também não estão de boa saúde, porque têm sido aligeiradas, desvirtuadas, subjugadas a uma ideia difusa de cidadania, que as secundariza, as torna objectos ao seu serviço;

2) Os valores éticos são universais? Se sim, isso é problemático pois "cada aluno tem o direito de "construir os seus próprios valores".
O dissenso é real pois nos mesmos documentos curriculares em que são enunciados valores éticos (sim, universais), como democracia e tolerância, consta essa afirmação subjectivista. Não parece, no entanto, muito credível que as crianças e os jovens consigam "construir" alguma coisa - e muito menos tais valores - sem educação deliberada;

3) De que adianta saber, por exemplo, muito de história se não se for um "bom cidadão".
Como acima notei, bem sabemos que não há uma relação directa entre o que se sabe e o que se faz, mas isso não significa que não haja alguma relação. Por outro lado, não será por deixarmos de ensinar história ou outra disciplina consagrada que obteremos "bons cidadãos".

Face à enorme confusão que gravita à volta da designada "educação para a cidadania", e de que só aflorei alguns aspectos, é preciso assentar pelo menos uma ideia: 
 
o elogio da ignorância, ainda que mascarado de boas intenções, não é caminho para a liberdade e, por inerência, para a dignidade; até prova em contrário, o melhor caminho é o conhecimento facultado pela educação.
 
Esse conhecimento abre-nos os olhos para vermos a tirania que "subtrai toda e qualquer liberdade de agir, de falar e quase de pensar", exercida por um, acolhida por alguns e consentida por muitos. Também nos dá a perspicácia e a força para recusarmos ser servos submissos, ou, pelo menos, para o tentarmos.
 
Sem essa educação informada nem sequer perceberemos a subjugação a nos querem obrigar e muito menos saberemos como lhe resistir. Sobretudo quando "pelos favores, ganhos e lucros que os tiranos concedem (...) são quase tantas as pessoas a quem a tirania parece proveitosa como as que prezam a liberdade".

O que acabo de dizer foi escrito, no século XVI, por um jovem com menos de vinte anos que se chamava Étienne de La Boétie. O livro que deixou e que Montaigne, seu cunhado e amigo, publicou após a morte, que o levou precocemente (Discurso sobre a servidão voluntária), é uma incisiva e corajosa crítica aos governantes que impõem interesses e loucuras próprias, arrastando aqueles que deveriam proteger, os quais, por diversos motivos, se tornam voluntariamente servos.

Há momentos, como os que atravessamos, em que, lamentavelmente, esta reflexão ganha particular actualidade. Por isso, como educadores, temos o dever de, primeiramente, indagar se a condição de servidão voluntária nos toca e o que precisamos de fazer para honrar a liberdade que nos assiste e, acima de tudo, levar os alunos, que estão ao nosso cuidado, a serem capazes de reconhecer tal condição e libertarem-se dela.  

Atenção que liberdade, na vida pública, em comunidade significa ter a possibilidade de escolher o que é bem, o que é bom para todos. Este viver na cidade não se pode operacionalizar em soft skills treináveis e demonstráveis, antes exige conhecimento disciplinar alargado e profundo, trabalhado na escola em continuidade, com seriedade e empenho. 

E, mesmo assim, os tiranos hão-de continuar a surgir pelos tempos fora. É que eles fazem parte do mais atávico que mora em nós e que, tanto quanto sabemos, só pela educação conseguimos superar.
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Nota
: Sobre o livro citado, pode consultar, neste blogue, um texto de João Boavida (A desejada servidão, publicado em 2011 - aqui) e um meu (Assim são os tiranos, publicado em 2022 - aqui).

domingo, 15 de junho de 2025

A "VOZ DOS ALUNOS" QUE (NÃO) QUEREMOS CONHECER

Uma iniciativa do Ministério da Educação designada por A Voz dos Alunos, surgida na década passada, teve dois momentos altos: a Conferência Currículo para o Século XXI: A Voz dos Alunos, em 2016, e o Dia do Perfil do Aluno, em 2018. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que, no seu projeto para o horizonte 2030, destaca a student agency, louvou-a muitíssimo e deu-lhe visibilidade em Paris. 

O consenso pareceu-me, à altura, generalizado (ver aqui, aqui, aqui): a opinião livre dos alunos era dita como nada menos do que crucial para renovar as orientações para a educação no mundo e para aferir a legislação nacional. O grande entusiasta da iniciativa foi um secretário de estado da educação que se tornou ministro da pasta. As escolas aderiram e puseram-na em marcha, a comunicação social transmitiu-a sem fazer perguntas incómodas e a academia não lhe prestou grande atenção.

Nesta década, o Conselho Nacional de Educação publicou, em 2021, uma recomendação com o título A voz das crianças e dos jovens na educação escolar e, no site da Direção-Geral da Educação, vejo anunciada a 2.ª edição do Projeto Voz dos Alunos, que terá decorrido entre finais de Novembro de 2024 e Maio de 2025. A livre exposição de ideias e debate de opiniões mantêm-se como pressuposto básico.

Acontece que o referido secretário de estado e, depois, ministro publicou recentemente um longo artigo no jornal Expresso (ver aqui, está em acesso aberto), no qual se mostra apreensivo, indignado com opiniões que alunos do segundo ciclo do ensino básico expõem numa prova de avaliação nacional, alegando serem influenciadas por um certo clima político que se adensa no país,

Passando por cima da questão delicada que é a revelação de uma pergunta constante nessa prova bem como do uso de respostas de alunos sem o devido consentimento, e não podendo deixar de reconhecer que as transcrições são, de facto, muito preocupantes, a verdade é que "dar voz" aos alunos sem delimitação de barreiras ou estabelecimento de regras (barreiras e regras académicas, entenda-se) não é, ao contrário do que possa parecer, um procedimento educativo; é, realmente, o contrário pois faz passar a mensagem de que tudo se pode dizer no espaço público e, mais, tudo o que se diz tem o mesmo valor e legitimidade.

A solicitação da opinião dos alunos, sem mais, porque destacada em documentos curriculares, incluindo manuais, e solicitada em provas de avaliação passará, presumo, para o ethos pedagógico. Tenho visto, nesses documentos e provas, tornar-se abundante e soberana, valerá para justificar tudo o que os alunos digam - pois se é opinião... -, mesmo na ignorância ou negação do conhecimento que deveriam ser levados a aprender na escola. 

Deduzo que, no caso, nem haveria conhecimento concreto a avaliar pois a pergunta em causa seria um "apelo à elaboração de um texto narrativo e à criatividade dos alunos". E eles (ou alguns deles) "criaram", que é como quem diz, reproduziram ipsis verbis o que o "contexto social" e as "redes sociais" lhes incutem ininterruptamente, sem qualquer respeito pela sua condição de menores, com direito a serem educados. E é isso que se sobrepõe ao que a escola ensina ou tem obrigação de ensinar. 

Há, sem dúvida, um mérito no artigo em causa: levar-nos a indagar a efetiva importância da escola neste preciso momento. De modo mais claro, a importância que tem na formação humanista, tão destacada no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO PARA A PAZ?

"O ódio cresce em escolas", escreveu um ex-ministro da educação (ver aqui). Deve estar informado, confio na sua avaliação, até porque ela é corroborada por professores sensatos que conheço. 

Mas, há que perguntar: seria de esperar que o ódio crescesse nas escolas com tantos domínios de Educação para a Cidadania/Cidadania e Desenvolvimento previstos para aí serem tratados, desde a educação de infância até ao final da escolaridade obrigatória? São dezassete domínios ou mais, em cujos documentos curriculares abunda a referência a valores como a Paz, a Tolerância, a Democracia, a Empatia...

Estará a sociedade a sobrepor-se à escola, impondo um modo de ser que contraria esses valores? Estarão as redes sociais a conseguir uma tal instrumentalização que mais velhos e mais novos são levados a abastardá-los? Estarão, de facto, os adultos a demitir-se de educar crianças e jovens ? Será que perante isto e, por certo, mais do que isto, a escola nada pode fazer? 

Não sei responder. Não pensei devidamente no assunto que é sério e de escala global. Poderia dar uma opinião, mas as opiniões valem o que valem e, na verdade, pouco valem. Esta foi a minha resposta à pessoa que hoje me fez chegar o artigo de onde tirei a frase que inicia este texto. Perguntou-me essa pessoa, não há um domínio de Educação para a Paz? Sim, há, mais precisamente de Educação para a Segurança, a Defesa e a Paz.
 
Em 2014 foi publicado um Referencial para orientação do trabalho escolar, a que prestei atenção (ver aqui), o qual foi republicado em 2022 com actualizações que, alega-se, a "crescente digitalização do mundo atual" exigia (ver aqui).
 
Na nota de apresentação disponível no site da Direção-Geral da Educação, diz-se que ambos resultam de uma parceria entre essa entidade, o Instituto da Defesa Nacional e o Centro Nacional de Cibersegurança. E que assentam "no conjunto de princípios e condições que tornam a atividade da Defesa um elemento essencial no reforço da cidadania e da construção da Paz."

Assim, "pretende-se incentivar os alunos a conhecer, refletir e agir em torno de questões como a segurança, os novos riscos, perigos e ameaças emergentes num mundo globalizado, interdependente e em mutação contínua, bem como a familiarizar-se com as condições e instrumentos que favorecem a construção e preservação da paz. As atividades de aprendizagem deverão combinar a perspetiva individual com a compreensão da inserção geopolítica de Portugal e do papel das instituições internacionais cuja função primordial é assegurar a paz, a cooperação e a preservação dos direitos humanos."

Para perceber melhor o espírito deste domínio, pode o leitor consultar um webinar explicativo aqui (que tem publicidade incluída!)

domingo, 8 de junho de 2025

DIA MUNDIAL DOS OCEANOS, M. Ruivo.

No DIA MUNDIAL DOS OCEANOS cabe recordar e homenagear a memória de Mário João de Oliveira Ruivo (1927-2017), figura central na ciência e na política ambiental em Portugal e no mundo, reconhecido como um dos principais pioneiros na defesa dos oceanos e na promoção da governação sustentável dos mares.

Terminado o Liceu, em 1946, onde o conheci como colega mais velho, este campomaiorense que a profissão do pai trouxe para Évora, veio para Lisboa onde cursou e se licenciou em Ciências Biológicas pela Faculdade de Ciências, em 1950. Especializou-se, a seguir, em Oceanografia Biológica e Gestão de Recursos Vivos, na Universidade de Paris.

Mais do que um investigador científico de laboratório, possuidor de uma imensa e notável carteira de contactos internacionais, Mário Ruivo tornou-se figura pública como promotor e organizador de ciência e como político. Reconhecido pioneiro na defesa dos oceanos e embaixador de Portugal neste domínio e no das pescas, foi ainda participante interessado e activo na defesa do ambiente em Portugal.

Juntamente comigo e com o Prof. David Ferreira, da Faculdade de Medicina e vice-reitor da Universidade de Lisboa, Mário Ruivo fundou a Federação Portuguesa das Associações e Sociedades Científicas (FEPASC), organização não governamental visando dotar a comunidade científica portuguesa de um instrumento representativo, alargado aos vários domínios do conhecimento, com capacidade de intervenção ao mais alto nível.

Interventor activo, desde muito novo, na vida social e política do país, foi dirigente do Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil, iniciado em 1945 e ilegalizado por Salazar, três anos depois. Nos governos provisórios que se seguiram à Revolução dos Cravos, foi Secretário de Estado das Pescas e Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Ao longo da sua carreira, desempenhou cargos de topo em organizações internacionais, incluindo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Comissão Oceanográfica Intergovernamental da UNESCO (COI/UNESCO), onde foi Secretário Executivo de 1980 a 1989.

Foi figura chave na realização da Expo’98, em Lisboa, e na atracção de agências europeias e internacionais para Portugal na área do mar. Foi também membro da Comissão Mundial Independente para os Oceanos e desempenhou um papel crucial na criação da Agência Europeia de Segurança Marítima (EMSA) em Lisboa. Além disso, foi fundador e presidente do European Centre for Information on Marine Science and Technology (EurOcean) e presidiu ao Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, à Comissão Oceanográfica Intersectorial e ao Comité Português para a COI/UNESCO

• Movendo-se, a um tempo, nos planos científico, político e diplomático, incansavelmente, até ao fim dos seus dias, aos 90 anos, Mário Ruivo foi diretor e presidente de diversas instituições nacionais e internacionais ligadas aos oceanos e às pescas, à investigação científica, em geral, e ao ambiente e desenvolvimento sustentado, em particular. Personalidade conhecida e respeitada internacionalmente, sendo numerosos os prémios, as medalhas e as condecorações nacionais e estrangeiras com que foi agraciado, com destaque para: Prémio D. Carlos I (1951); Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada; Cavaleiro da Legião de Honra (França); Doutoramentos Honoris Causa pela Universidade dos Açores (2010) e pela Universidade do Algarve (2016); Prémio Cidadão Europeu (2015).

O seu legado permanece vivo através do trabalho de cientistas, que continuam a promover a sustentabilidade dos oceanos, inspirados pela sua visão e dedicação.

DIA MUNDIAL DOS OCEANOS, J. Mariano Gago

No DIA MUNDIAL DOS OCEANOS cabe recordar e homenagear a memória de José Mariano Gago (1948-2015), o “cientista que pôs a ciência na agenda política”, como escreveu Teresa Firmino, no Público. Professor do Instituto Superior Técnico e investigador em Física no Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), distinguiu-se como político, onde realizou obra que perpetuará o seu nome como Ministro da Ciência.

Ciência Viva, uma prestigiada realidade, fruto do seu empenhamento na divulgação e na experimentação das ciências, já lhe prestou significativa homenagem pela atribuição, do topónimo Largo José Mariano Gago, no Parque das Nações.

Como físico de prestígio, outros mais habilitados do que eu, já falaram. É dele, como grande impulsionador da investigação científica e paladino da cultura científica, que posso falar com conhecimento de causa.

Ao lembrar José Mariano Gago, recordo que nos conhecemos há um bom par de anos, na livraria Buchholz, em Lisboa, numa sessão/debate sobre o estado da ciência em Portugal, em que investigação e divulgação eram temas da sua preocupação. E ficámos amigos e irmanados no mesmo ideal.

Lidei com ele também de muito perto nos anos em que participei no programa inovador em Geologia Marinha, iniciado em 1988, era ele Presidente da então Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (hoje Fundação para a Ciência e a Tecnologia), e não me surpreendeu quando, em 1996, na qualidade de Ministro da Ciência e Tecnologia, por um seu Despacho de 1 de Julho, criou o programa Ciência Viva.

Dois anos depois, em 17 de Julho de 1998, “Ciência Viva”, hoje uma grande e laboriosa família, sob a dinâmica eficaz direcção de Rosalia Vargas, era uma feliz realidade com o objectivo de divulgar, através de campanhas, a cultura científica e tecnológica entre os portugueses, promover o ensino experimental das ciências no ensino básico e secundário e criar uma Rede Nacional de Centros Ciência Viva, a funcionarem como museus interactivos de Ciência, de Norte a Sul do Continente e nas Ilhas.

Em 1987 a então Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), hoje Fundação para a Ciência e a Tecnologia, de que era presidente, lançou o “Programa Mobilizador de Ciência e Tecnologia”, no qual tinha cabimento uma componente dinamizadora das Geociências do Mar, apresentada publicamente pelo Prof. Mário Ruivo, surgiu em Portugal o primeiro grupo de investigação em Geologia Marinha e Oceanografia Geológica, com ligações internacionais, conhecido por DISEPLA, acrónimo de Dinâmica Sedimentar da Plataforma.

Nascido e desenvolvido no Museu Nacional de História Natural, da Universidade de Lisboa, sob a minha direcção, com a coordenação científica do Doutor João Alveirinho Dias, do Prof. António Ribeiro e minha, e o indispensável e sempre disponível apoio do Instituto Hidrográfico, ao tempo do Director–Geral, Vice-Almirante José Almeida Costa e dos Comandantes Vidal de Abreu (Chefe da Divisão de Marés e Correntes) e Torres Sobral (Director-Técnico), o Grupo DISEPLA deixou descendentes, ou seja, fez escola que continuou a dar frutos.

Com uma primeira geração de investigadores que, de juniores passaram a seniores, vimos partir estes “filhos”, independentes e a trilharem os seus próprios caminhos, o que nos enche de satisfação e orgulho. Actualmente há “netos” que já nem conhecem os “avós”, mas que só existem porque nós tivemos a ousadia de iniciar esta viagem e de segurar o leme deste navio, nas primeiras milhas desta gratificante navegação que conduziu à introdução das geociências do mar nas nossas universidades, designadamente, nas do Algarve, de Aveiro e de Lisboa, onde os mestrados e os doutoramentos se sucedem.

sábado, 7 de junho de 2025

OS FILÓSOFOS QUE ABRAÇAM O CONHECIMENTO DA VERDADE

O texto abaixo reproduzido, escrito pelo jovem Giovanni Pico Della Mirandola (1463-1494) e constante no seu Oratio de Hominis Dignitate, toca uma indignidade que atravessa os tempos: a secundarização, subalternização ou, mesmo, desconsideração do "valor em si" do conhecimento, valor que tem "por si mesmo", independentemente do valor utilitário que também tenha ou possa ter. E não é aos príncipes (com o poder de governar) que atribui tal indignidade, mas aos próprios filósofos (cujo dever é amar o conhecimento). Estes, sim, têm uma responsabilidade directa na preservação desse valor, mas, cedendo a tentações muito humanas, nem sempre cuidam dela com deveriam...

Se olharmos para os discursos dissonantes relativos à educação escolar, percebemos a actualidade deste breve texto, tendo de reconhecer que uma parte do que nele consta foi muito aperfeiçoada tendo-se tornado a "cartilha vigente".

"E digo tudo isto, não sem uma enorme dor e profunda indignação (...) contra os filósofos do nosso tempo, os quais acreditam e dizem que não se deve filosofar porque não se estabeleceram prémios e recompensas para os filósofos; como se não mostrassem precisamente com esta afirmação não serem filósofos. Toda a vida destes, efectivamente, ao assentar no lucro ou na ambição, mostra que eles não abraçam por si mesmo o conhecimento da verdade. A mim mesmo concederei apenas isto, e não corarei, pois, por ser elogiado, que nunca filosofei senão pelo amor da pura filosofia, nem nunca esperei ou procurei com os meus estudos e as minhas meditações obter alguma mercê ou algum fruto a não ser a formação da minha alma e o conhecimento da verdade, por mim ansiada acima de qualquer outra coisa. Da qual tenho sido sempre um amante tão apaixonado que, abandonada toda e qualquer preocupação relativamente aos negócios privados e públicos, me dediquei completamente à paz da meditação; disto nem calúnias de invejosos nem a maldade dos inimigos do saber me puderam até aqui desviar e nunca o poderão. Foi a filosofia que me ensinou a depender mais da minha consciência do que dos juízos dos outros; a estar sempre atento, não ao mal que de mim se diz, mas a não dizer ou a não fazer eu próprio o mal."
 
Nota: a edição consultada da Oratio foi das Edições 70 (pp. 83 e 35), mas podem encontrar-se edições online, por exemplo, aqui.

terça-feira, 3 de junho de 2025

UM TEXTO QUE NÃO SENDO SOBRE EDUCAÇÃO ESCOLAR PÚBLICA TEM TUDO A VER COM ELA

O Diário de Notícias publicou ontem um artigo de opinião com o título Liberalismo: a política como projeto pessoal, assinado por José Mendes, professor universitário. A sua análise incide no pensamento social prevalecente, que delineia a política e, digo eu, o funcionamento das instituições públicas, incluindo a escola. Reproduzo, abaixo, extractos do artigo, omitindo a identidade dos sujeitos a que alude, pois poderia referir-se a muitos outros, aqueles que são apresentados como modelos aos alunos logo que chegam à escola para lhes criar essa aptidão empreendedora com vantagens para si, para o seu bem-estar.

Nos Estados Unidos (...) foi aclamado como um símbolo da nova ordem empreendedora. Um “visionário” que acreditava que o Estado era, na melhor das hipóteses, um estorvo, e que o mercado se bastava a si mesmo (...). Em Portugal (...) terá percebido que o seu projeto pessoal de vir a ser ministro não se iria concretizar. Sai de cena como quem fecha a loja, porque o lucro não compensou o esforço (...).
 
O que une estas duas figuras, separadas por oceanos, mas irmanadas por uma ideologia, é a crença dogmática de que a sociedade é apenas a soma de vontades individuais. Um liberalismo que despreza o papel do Estado, ignora o peso das estruturas sociais e reduz a pobreza a uma simples falta de empenho (...) os pobres são os que não se esforçaram o suficiente, os que não inovaram, os que não souberam “criar valor”. A desigualdade é, na sua visão, um produto natural da meritocracia - não um problema a corrigir, mas uma prova de que o sistema funciona (...).

Este é o liberalismo que se vende como ousado e reformista, mas que se revela, no fundo, profundamente egoísta (...). Porque, para esses liberais, o compromisso com a comunidade só dura enquanto os seus interesses pessoais estiverem garantidos. Quando não há prémio, não há jogo.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

"O discurso neoliberal e o discurso acatado e consolidado no âmbito da esfera educacional"

O artigo abaixo identificado, que se encontra aqui, já não é propriamente recente. Na voragem da publicação académica, textos com mais de cinco anos estão, por princípio, "fora de prazo", podem ser referidos, mas só em circunstâncias excepcionais.

A verdade é que este artigo, publicado em 2016, mantém-se actual, esclarecendo, em poucas páginas, os passos que já demos e estamos a dar no sentido de ajustar os sistemas educativos públicos à "teoria do capital humano". Essa teoria que vingou em todos os continentes, que se entranhou em todas as instituições e dita todas as políticas ou, pelo menos, assim parece, constituiu-se no modo prevalecente de pensar a vida. 

Cabe aos educadores, professores e formadores fazer o que Karl Popper sugeriu: discuti-la e conjecturar as suas consequências para os educandos, para o mundo...

"A teoria do capital humano tem origem desde as ideias desenvolvidas por economistas como Adam Smith (1776), na obra A Riqueza das Nações, e por Alfred Marshall (1920), no livro Os princípios econômicos do mais valioso investimento dos capitais, os seres humanos, sendo melhor estruturada na Escola de Chicago com os teóricos da economia Gary Becker, Jacob Mincer e Theodore Schultz. 

Theodore Schultz, renomado professor da Escola de Chicago (1902-1998), foi quem cunhou a expressão e expôs sua teoria na década de 1960. A nova ideia de capital compreenderia então as aptidões e habilidades pessoais, que podem ser características naturais intrínsecas da pessoa ou adquiridas no decorrer do tempo. Isso levaria o indivíduo a auferir vantagens e a tornar-se mais produtivo. A teoria desenvolvida por Shultz dispõe de uma abordagem que nos permite identificar alguns pontos de convergência entre o discurso neoliberal e o discurso acatado e consolidado no âmbito da esfera educacional (...).

O termo capital humano afirmou que a melhoria do bem-estar dos menos favorecidos não dependia da terra das máquinas ou da energia, mas principalmente do conhecimento. Essa teoria sugere considerar que todas as habilidades são inatas ou adquiridas e devem ser aperfeiçoadas por meio de ações específicas que levam ao enriquecimento do capital intelectual. Desta forma, cada pessoa seria capaz de aumentar seu conhecimento através de investimentos voltados à formação educacional e profissional de cada indivíduo. 

Portanto, o aumento do capital humano poderia representar as taxas de produtividade do trabalhador, favorecendo o desenvolvimento de um país. Além de proporcionar o bem-estar individual, tal teoria também afirma que esse seria o caminho para o desenvolvimento das nações: investir em capital humano. Essa teoria teve impacto no então denomina-do Terceiro Mundo e apareceu aqui como alternativa para reduzir as desigualdades sociais.

Dentro dessa perspectiva, Schultz (1973) deixa claro (...) que, para ocorrer o crescimento do capital humano, era preciso a iniciativa do poder público, detentor da autoridade necessária para provocar um planejamento educacional que atendesse a tais objetivos. Ele ainda acreditava que mesmo que houvesse iniciativas privadas seriam em segunda ordem, pois atenderiam a um público mais reduzido e não estaria disponível a todos. 

Neste processo, os professores assumem um papel central, como ‘peças fundamentais’ para moldar, configurar e ajustar os estudantes ao desenvolvimento econômico."

terça-feira, 27 de maio de 2025

"A Filosofia pode até, calcule-se, ensinar a viver"

Em Novembro de 2012, Joel Costa, o culto e virtuoso radialista, começava o seu blogue Questões de moral com um texto intitulado Mudar a vida. A linhas tantas, disse:
"Noutro dia ouvi dizer que não há alunos nas faculdades de Letras, que o ensino das Humanidades está pela hora da morte. Sendo a música dos tempos aquela que indubitavelmente é, tais licenciaturas serão passaportes para o desemprego.

Seja como for, quanto mais consciência se tiver da vida que se vive menos bem se suportam as realidades que nos são impostas, e menos a sério se levarão os políticos, os jornalistas, os magistrados, os professores, os dirigentes, a propaganda.

Os governos não podem permitir ao cidadão uma consciência excessiva – ou seja, verdadeira, rigorosa – da realidade. Para tanto usam os media.

Os poderes sabem o quanto um estudo de Filosofia pode mudar o pensamento de um cidadão, pode despertar uma consciência individual. A Filosofia ensina a pensar, o que é coisa posta fora de moda, porque há que consumir e acreditar no que se vê na televisão. E se o pensar ficou fora de moda por alguma razão superiormente determinada foi.

Pensar pode ser um perigo. Até para as instituições. Um perigo para a credibilidade das hierarquias decisórias.

Disciplina que ensine a pensar é um incómodo para os poderes. Se ensina a pensar, até pode ensinar a falar, a escrever. É factor de desenvolvimento mental. Desmascara as pesporrências, coisa proibida em Portugal. E não só… o que é pior…
A Filosofia pode até, calcule-se, ensinar a viver. Se ensina a pensar, a falar e a escrever, ensina seguramente a viver. Sim, penso que é tudo o mesmo, cumprido com maior ou menor habilidade."

segunda-feira, 26 de maio de 2025

QUE ESPECIALISTAS DEBATEM QUE TRANSFORMAÇÃO DE QUE EDUCAÇÃO?

Por estes dias, realiza-se em Portugal MAIS uma "grande conferência" que se diz ser sobre educação, e cujo título é Educação e Transformação: Mobilizar ideias. Inspirar o futuro (ver aqui e aqui). Está anunciada a participação de "especialistas, alunos, educadores e líderes" (continuo a ter dificuldade em perceber o que é, em educação, liderança...).

Apresentando-se o semanário Expresso como media partner (curiosa designação) ou, talvez, impulsionador da mesma (Projeto Expresso), dá-lhe divulgação à sua escala, usando os meios que lhe estão afectos (ver aqui). Não é pouca coisa.

Anuncia este jornal que participarão mais de trinta especialistas, sendo de presumir, pelo título reproduzido abaixo e pelo textos relativos à conferência, que a sua especialidade é em educação escolar. 

Considerando um especialista como alguém que, em virtude de ter adquirido conhecimento profundo numa determinada área, pode, com propriedade, pronunciar-se sobre algo e/ou fazer algo, vejo ali menos de meia dúzia de nomes nesta condição. Que contributo pode dar a um debate sobre educação escolar quem se alheia do seu propósito e substância, num contexto em que se destacam chavões da "narrativa da educação do século XXI" como transformação, inovação, inspiração, agência dos alunos, desafios do futuro? Também a ligação a "parceiros institucionais", a "parceiros estratégicos" (empresas, fundações e afins, com suporte de meios de comunicação social, mas também de universidades) permite conjecturar que a "discussão profunda e inspiradora" anunciada não será propriamente desinteressada.

(Sim, eu sei... os especialistas em educação credenciados também podem deixar muito a desejar no que acima disse...).

No mencionado jornal surge em destaque a seguinte declaração de um dos convidados que não me parece ser de especialista: “"Alunos motivados progridem notavelmente" com inteligência artificial, os "desmotivados podem usá-la como atalho, aprendendo menos” (...) “A IA só por si não resolve o problema da motivação"”.
 
Terá havido incompreensão do que foi dito? Má transcrição? É que, vejamos: alunos motivados (presumo que se queira dizer, em termos intrínsecos), por princípio, progridem melhor nas aprendizagem seja com IA, seja com outro qualquer recurso, os desmotivados (nesse sentido) aprenderão menos, sim... E seria de esperar que a IA (seja isso o que for) resolva só por si o problema da motivação? E qual problema?

domingo, 25 de maio de 2025

PONHAM-NOS A LER! UM ANTIDOTO PARA AS "CRENÇAS" QUE SE ENTRANHAM NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

O neuro-cientista Michel Desmurget investiga os efeitos dos ecrãs e dos teclados no desenvolvimento humano, em especial na infância e adolescência. O seu trabalho é reconhecido em França, onde vive, e noutros países, incluindo Portugal. Tem um currículo sólido e não há razões para duvidar da seriedade dos estudos que faz, incluindo os de revisão da literatura.

Publicou vários livros acessíveis ao grande público. Para o objecto deste apontamento destaco três:

  • TV lobotomia: A verdade científica sobre os efeitos da televisão (2011);
  • A fábrica de cretinos digitais. Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos (2019);
  • Ponham-nos a ler. A leitura como antídoto para os cretinos digitais (2021)

Isto significa que os educadores e professores, os investigadores que se dedicam ao ensino e à aprendizagem, os formadores de professores e de outros educadores, os responsáveis por reformas educativas e formativas... não podem desconhecer estas publicações ou passar-lhes ao lado. Elas foram bastamente noticiadas, o seu autor desdobrou-se em entrevistas e conferências, foram-lhe dedicados programas de televisão e artigos de fundo nos jornais (ver, por exemplo, aqui, aqui).

A Desmurget devem juntar-se outros investigadores de cujo trabalho se retiram as mesmíssimas conclusões (ver, por exemplo aqui): por regra, os ecrãs e os teclados não ajudam a aprendizagem escolar, perturbam-na! Essa perturbação é de diversa ordem e, tendencialmente, grave. Assim, por regra, devem ser evitados.

Na aprendizagem da leitura (e também da escrita), esses efeitos são particularmente preocupantes. 

Se sabemos isso (temos obrigação de o saber, não o podemos ignorar) e se estamos vinculados ao princípio (temos obrigação de estar, não podemos deixar de estar) de beneficiar (ou pelo menos de não não prejudicar) aqueles que estão ao nosso cuidado, há que perguntar:

Porque insistem educadores e professores, investigadores que se dedicam ao ensino e à aprendizagem, formadores de professores e outros educadores, responsáveis por reformas educativas e formativas... em práticas pedagógicas lesivas?

Regressei a esta pergunta ao ler o artigo de opinião ao lado identificado e de acesso livre. 

Nele a autora, com credenciais académicas e profissionais, defende o uso das novas tecnologias digitais na aprendizagem da leitura,  enunciando várias vantagens.

De notar que não identifica qualquer estudo da "vasta investigação" que diz corroborar a sua posição, nem da vasta investigação que a põem em causa. Assim, o texto resultante, sobre uma aprendizagem escolar básica, assenta na crença. Tal é reconhecido pela autora:

"Acredito que a capacitação digital que é preconizada permitirá num futuro próximo, que todos os professores possam recorrer às tecnologias para ajudar os seus alunos a superar as dificuldades, desenvolvendo-se integralmente com recurso a estratégias diversificadas, eficazes e motivadoras."

O que será de dizer? Talvez, como Desmurget, não agora aos alunos mas aos responsáveis pela sua aprendizagem: que leiam! Leiam os estudos que confirmam e que infirmam as suas posições de partida, verifiquem os seus propósitos, metodologias e resultados e, sobretudo, que se detenham nas consequências da acção pedagógica que deles decorrem.

terça-feira, 20 de maio de 2025

NO AUGE DA CRISE

Por A. Galopim de Carvalho

Julgo ser evidente que Portugal atravessa uma deplorável crise, não do foro económico, financeiro ou social, mas dos partidos políticos e dos seus protagonismos na condução da vida nacional. Uma crise de valores sem precedentes, deveras preocupante que, salvo meia dúzia de excepções, bateu fundo e isso ficou bem claro na pobreza desta corrida ao poder que ontem teve fim. Sou um geólogo e a minha cultura social e política resume-se ao que tenho aprendido na vivencia atenta do dia-a-dia. Bom ou não, é este o meu sentir que, como sempre, divulgo como dever de cidadania, honesta e humildemente.

Sempre procurei pensar pela minha cabeça, na convicção de que a política partidária é uma habilidade para manusear conhecimentos do foro das ciências políticas e sociais, tendo em vista a conquista do poder. Dito isto e para que não restem dúvidas, reafirmo que sempre estive ao lado dos explorados e ofendidos, contra os exploradores e ofensores.

Todos os que os que não andam distraídos, e são muitos, têm vindo a dizer e eu também digo que, no tempo que estamos a viver, paira grande insegurança a nível internacional, não só no que respeita a economia, com inevitável reflexo na vida nacional, como também no que envolve o espectro da guerra e a corrida aos armamentos, com todas as consequências e sofrimentos daí decorrentes.

À semelhança do que se passou com a Primeira República, a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há meio século, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente de facultar aos cidadãos cultura civilizacional necessária na sociedade que se quer democrática. Esqueceu-se ou não quis. Há uma máxima que diz que “o poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”, máxima que é fácil entender como uma metáfora do que tem sido a nossa democracia.

Já escrevi o essencial destas minhas palavras não sei quantas vezes, mas sei que não foram as suficientes. Também já disse e volto a dizer que, entre os sectores da vida nacional que nada beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia está a educação. E, aqui, a escola falhou completamente. Uma escola que tem vindo e continua a dar diplomas, mas que não deu e continua a não dar cultura no sentido mais amplo da palavra.

Nesta “apagada e vil tristeza”, uma muito significativa parcela do nosso povo, destituído dessa cultura, foi presa fácil do populismo da extrema-direita. Uma extrema-direita que, beneficiando da liberdade e democracia que tanto custaram a ganhar, já mostrou, sobejamente, procurar destruí-las e voltar ao “antigamente”.

Tudo isto são gravíssimas preocupações nacionais, que se adicionam as das áreas da saúde, da habitação, da justiça e outras. Preocupações que, tendo em conta as condicionantes nacionais e internacionais, socialistas e sociais-democratas, cujos fundamentos que os inspiraram não estão, assim, tão afastados, tinham obrigação de se ter entendido, a bem deste, deste sempre, maltratado povo. Os seus actuais protagonistas mostraram não terem sabedoria ou vontade para o fazer, pelo que há que encontrar, entre os seus correligionários, quem o possa fazer. Chame-se Bloco Central ou outra coisa qualquer, mas é, no tempo que estamos a viver, em que as esquerdas se têm vindo a autodestruir, o único caminho a seguir.

Quem me conhece e tem acompanhado as minhas intervenções e tomadas de posição públicas, sabe, volto a dizer, da minha independência face aos aparelhos partidários e não espera de mim outro pensamento que não seja este.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

NO DIA EM QUE UMA SAPATILHA "ESMAGOU" A ACRÓPOLE

A imagem é, simbolicamente, forte. Foi, claro está, criada para o ser.
Traduz na perfeição o "ar do tempo", aquele que se respira em todo o lado e, a avaliar pelos currículos oficiais, nas escolas públicas.

A Acrópole (Atenas, século V aC.), património mundial da Unesco, símbolo do alvorecer do que designamos por cultura ocidental, a qual inclui o amor ao conhecimento e o despertar da democracia, pisada, esmagada por uma sapatilha de certa marca comercial com implantação global.

sábado, 17 de maio de 2025

Petroquímica

Por António Galopim de Carvalho

PVC é a sigla de Polímero de Cloreto de Vinil, um tipo de plástico composto por carbono, hidrogénio e cloro, amplamente utilizado em diversas indústrias devido às suas características de durabilidade, resistência, versatilidade e à capacidade de se adaptar a diferentes necessidades e aplicações. É um material omnipresente no nosso dia-a-dia, na construção civil, em casa, nos transportes e no trabalho. 
 
É um dos plásticos mais consumidos no mundo, produzido por polimerização do monómero de cloreto de vinil, um dos muitos derivados do petróleo ou do gás natural. É uma substância durável, resistente a muitos produtos químicos, à água e à humidade, ideal para aplicações em espaços húmidos como cozinhas e casas de banho. Não é tóxico, sendo seguro para o uso humano, de serviço à cozinha, à mesa e em recipientes de produtos de higiene pessoal (frascos, bisnagas e outros recipientes). É pouco denso, fácil de trabalhar e bom isolador térmico e eléctrico. É relativamente barato, quando comparado com outros produtos e reciclável (em alguns tipos). Produzem-se actualmente dois tipos principais de PVC, consoante os aditivos usados:
(1) um rígido, utilizado na fabricação de tubagens para instalações industriais (químicas ou de ventilação), hidráulicas e de esgotos, perfis para portas e janelas, forros e revestimentos de paredes, caixas d'água, placas e chapas industriais, mobiliário diverso, doméstico, de escritório e hospitalar, cartões de crédito (PVC laminado);
(2) um flexível, utilizado em produtos que exigem maleabilidade, utilizado no fabrico de mangueiras de jardim, de gás e outras, cortinas diversas, cabos e fios eléctricos revestidos, cobertura de toldos, pisos vinílicos, brinquedos (com certificação apropriada), bolsas e mochilas sintéticas, películas adesivas, capas impermeáveis para usar à chuva, bolsas e tubos para recolha de sangue, carteiras, sapatos e outros artigos de couro sintético.

ESSE (ANTIGO) HOMEM FUTURO

Parece que a "imaginação artificial" será um avanço da "inteligência artificial", disse-me alguém que me enviou o artigo Towards a science exocortex e de que encontrei uma versão explicativa aqui. Trezentas e seis notas e referências bibliográficas conferem-lhe um carácter "à prova de bala". Ou talvez não... a falta de enquadramento ético e epistemológico deveria ter deixado os avaliadores de sobreaviso, pois essa  "imaginação" é materializada num exocórtex com fins de investigação científica.
 
O seu inventor diz que isso é, ou será, muito útil para desenvolver estudos experimentais, no meu entender acomodados ao modelo clássico. O cientista poderá dispor de um software que funcionará como extensão do seu cérebro; da "conversa" com ele resultará inspiração e produção de pensamento.
 
Além da sofisticação tecnológica que se presume, não há aqui nada de verdadeiramente novo. Por muito que se afirme a "utilidade" desta ou daquela ferramenta, analógica ou digital, o que parece estar em causa é o que Hannah Arendt designou por "rebelião humana" contra a "condição humana" e contra o mundo que a acolhe. Acompanha-a o (estranho desejo) do ser humano de construir "algo produzido por ele mesmo", que o amplie e, em muitos casos, o substitua. E o leve para outros mundo.
 
Do livro A condição humana desta filósofa, publicado em 1958, transcrevo parte do admirável texto que constitui a sua introdução.
"Em 1957, um objeto terrestre, feito pela mão do homem, foi lançado ao universo, onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento dos corpos celestes – o Sol, a Lua e as estrelas. É verdade que o satélite artificial não era nem lua nem estrela; não era um corpo celeste que pudesse prosseguir na sua órbita circular por um período de tempo que para nós, mortais limitados ao tempo da Terra, durasse uma eternidade. Ainda assim, pôde permanecer nos céus durante algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se estes o houvessem provisoriamente admitido na sua sublime companhia.
Este acontecimento, que, em importância, ultrapassa todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo, teria sido saudado com a mais pura alegria não fossem as suas incómodas circunstâncias militares e políticas. O curioso, porém, é que essa alegria não foi triunfal; o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar uma das suas obras, não foi orgulho nem assombro perante a enormidade da força e da proficiência humanas.
A reação imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro «passo para libertar o homem da sua prisão na terra». E essa estranha declaração, longe de ter sido o lapso acidental de algum repórter norte-americano, refletia, sem o saber, as extraordinárias palavras gravadas há mais de vinte anos no obelisco fúnebre de um dos grandes cientistas da Rússia: «A humanidade não permanecerá para sempre presa à terra».

Há já algum tempo este tipo de sentimento vem tomando-se comum; e mostra que, em toda parte, os homens não tardam a adaptar-se às descobertas da ciência e aos feitos da técnica, mas, ao contrário, estão décadas à sua frente. Neste caso, como noutros, a ciência apenas realizou e afirmou aquilo que os homens tinham antecipado em sonhos – sonhos que não eram loucos nem ociosos. A novidade foi apenas que um dos jornais mais respeitáveis dos Estados Unidos levou finalmente à primeira página aquilo que, até então, estivera relegado ao reino da literatura de ficção científica, tão destituída de respeitabilidade (e à qual, infelizmente, ninguém deu até agora a atenção que merece como veículo dos sentimentos e desejos das massas).
A banalidade da declaração não deve obscurecer o facto de ela ser bem extraordinária, pois embora os cristãos tenham chamado esta terra de «vale de lágrimas» e os filósofos tenham visto o próprio corpo do homem como a prisão da mente e da alma, ninguém na história da humanidade havia alguma vez concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?

A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, a sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O artifício humano do mundo separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos.
Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar «artificial» a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, «sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores» e «alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função»; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.

Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo.
Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar da nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas de saber se desejamos usar nessa direção o nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

ÂMBAR

Por A. Galopim de Carvalho
 
Âmbar ou resina fóssil, é também um produto de oxidação de substâncias de origem orgânica. Tem cor amarela-acastanhada ou avermelhada, é transparente e parte com fractura conchoidal, lembrando o pês.
 
O mais antigo âmbar foi encontrado em formações do Triásico, mas conhecem-se resinas fósseis no Carbonífero e no Pérmico. As mais divulgadas são as da região do Báltico e resultaram de acumulação de resina de coníferas no Eocénico.

O âmbar do Báltico, ou succinito (do latim succinum, com idêntico significado), foi alvo do interesse dos homens do Neolítico. 
 
Temos provas da sua procura e utilização intensiva nos séculos XVI e XVII. Do seu estudo, na região da Península de Sambia, por geólogos alemães, no século XIX, quando se iniciou a sua exploração industrial, ficámos a conhecer tratar-se de um tipo particular de depósito sedimentar com cerca de 40 Ma, associado a uma vasta estrutura deltaica oriunda da Escandinávia, espalhada em leque, na parte sul do actual mar Báltico. 
 
O âmbar aqui contido nas “argilas azuis” (blue earth) encontra-se também disperso, por desmantelamento desta unidade, nos depósitos do litoral da Alemanha, Polónia, Lituânia e outros países do sul do Báltico, para onde foi transportado por acção fluvio-glaciária durante o Pleistocénico, sendo hoje também aí explorado.

A transformação diagenética da ou das resinas originais no produto fóssil envolve a perda de substâncias voláteis e processos químicos de polimerização, oxidação e outros, com participação activa e reconhecida de bactérias. 
 
Na sua composição elementar participam carbono, hidrogénio, oxigénio e enxofre em muito pequena percentagem (0,5 a 1%), elementos que, sabe-se hoje, fazem parte da macromolécula do âmbar. A dureza, na escala de Mohs, varia entre 2 e 2,5, a densidade oscila à volta de 1 (um) e o índice de refracção está compreendido entre 1,539 e 1,542. Torna-se plástico a 250ºC e funde a 287–300ºC. Estudos recentes, com utilização de espectrometria de infravermelhos, revelam grande semelhança entre esta resina fóssil e a resina actual de Cedrus asiatica. Outras investigações apontam uma certa identidade química com a resina de Agathis australis, uma araucária de grande longevidade.
 
Aprisionadas no succinito do Báltico foram referenciadas mais de duzentas e cinquenta espécies vegetais, como líquenes, fungos, musgos, flores e frutos diversos, sementes, pólens e esporos. Tal diversidade aponta para florestas de montanha numa latitude então subtropical a tropical, como são actualmente as das regiões montanhosas do sudeste asiático, dominadas por coníferas, as responsáveis pela anormal produção de resina que, sedimentada e afundada, evoluiu, diageneticamente, para âmbar. Várias espécies de árvores devem ter concorrido nesta produção e a elas se deu o nome colectivo de Pinus succinifera. 
 
Do reino animal são igualmente muitas as espécies preservadas no âmbar. Variadíssimos artrópodes, formigas, mosquitos, aranhas, etc., etc., e até pequenos vertebrados (lagartos) têm sido encontrados e estudados nos seus mais ínfimos pormenores, anatómicos, histológicos e genéticos.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O 18.º DOMÍNIO DE EDUCAÇÃO CIDADANIA? OU SERÁ O 19.º?

As minhas desculpas aos leitores por insistir na Educação para a Cidadania/Cidadania e Desenvolvimento. É que, tanto quanto vejo, há mudanças de relevo nesta componente do currículo escolar, as quais, por não tocarem directamente as disciplinas, tendem a passar despercebidas ou a serem consideradas de menor importância. 

O entendimento que tenho é diferente. Essas mudanças são, de facto, significativas: é significativa a publicação do Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar, assim como é significativa a replicação de documentos e iniciativas afectos não só a este domínio dito de cidadania mas a vários outros. E é muito significativa a consubstanciação de um novo domínio de cidadania que estava esboçado pelo menos desde 2021.

É sobre este enigmático domínio, designado por Educação para a Ética e Integridade, que deixo breves notas. Peço ao leitor para seguir o meu raciocínio.

1. Na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC) estão contemplados dezassete domínios de educação (ou será "literacia"?) para a cidadania, mas podem ser dezoito pois a Literacia Financeira e a Educação para o Consumo, que já estiveram separadas, têm, na verdade, identidade própria (ver aqui), que lhe é conferida pelos seus referenciais, materiais "pedagógicos", formação de professores, concursos, etc. A minha interpretação é que, numa tentativa de conter o número de domínios (que desde a reforma implementada logo no início do século, não tem parado de aumentar), a tutela decidiu arrumá-los num só.

Enfim, o que aqui é importante dizer é que a tal Educação para a Ética e Integridade não consta na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, ainda que, em abono da verdade, nesta estratégia se deixe aberta a possibilidade de as escolas, caso entendam, incluírem outros domínios.

2. A Educação para a Ética e Integridade não me é estranha, já a havia incluído nas minhas aulas de formação de educadores e de professores como exemplo de reivindicação de novos domínios de Educação para a Cidadania. Efectivamente, vários são os que se encontram em lista de espera...

O historial, tanto quanto fui acompanhando na imprensa, é mais ou menos este: em 2001 foi criado o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) (ver aqui e aqui), destinado a “promover a difusão dos valores da integridade, probidade, transparência e responsabilidade”. Porém, em 2024, o estado do “mecanismo” (curiosa designação!) era consensualmente classificado como de “inacção” nos propósitos sociais, políticos e económicos a que se havia proposto. Também foram notícia divergências com o Governo sobre aspectos pouco edificantes, sobretudo quando se puxam os galões da ética (ver aqui, aqui e aqui). Não sei, não aprofundei, se foi por causa disso que o Conselho de Ministros aprovou recentemente mudanças na orgânica do tal MENAC (ver aqui).

3. Na sua origem, o "mecanismo" tinha prevista a Escola (leia-se Escola Pública) como "uma área prioritária de actuação" (ver aqui). Em 2020 noticiava a Agência Lusa (ver aqui):

"Segundo o projeto de proposta de lei das Grandes Opções do Plano (GOP) para 2021, o Governo quer «introduzir a temática ‘Corrupção – Prevenir e Alertar’ como área transversal a vários domínios da cidadania e desenvolvimento em todos os ciclos do ensino básico e secundário e dar relevo à matéria em unidades curriculares do ensino superior e em bolsas e projetos de investigação financiados por agências públicas»".

Várias escolas aderiram à solicitação (ver exemplos aqui, aqui, aqui) e algumas receberam "prémios e distinções" (ver aqui), parte do "pacote" destas iniciativas.

Nada de original, as organizações, empresas, grupos, etc. a quem cabe resolver problemas relevantes, difíceis, que o mundo apresenta, que têm essa responsabilidade, remetem-nos para a Escola, para que ela os assuma em primeira linha. Em concreto, para o saco sem fundo que é a Educação para a Cidadania. Esta circunstância merecia um comentário que, pela sua extensão e necessária profundidade, deixo para outra ocasião.

Ainda assim, neste caso, não é possível deixar de lado a questão: caberá à Escola funcionar como bastião de primeira linha da luta anticorrupção, que a avaliar pela criação do "mecanismo", é um problema social, económico e político seriíssimo? Tanto mais quando se percebe que o “mecanismo” não tem cumprido os objectivos para os quais foi criado?

Devo sublinhar que não se pode negar a importância da Escola na educação para os valores acima enunciados: eles têm de ser aí veiculados, na esperança de que os alunos os adoptem como marcas do seu (bom) carácter. Contudo, a Escola não pode, não deve assumir funções que cabem, por direito, a outras entidades.

4. Como bem sabemos, isto não importa ao Ministério da Educação, que acolhe mais esta, aquela e a outra entidade no dito saco sem fundo, sendo o "mecanismo" (tanto quanto sei) a mais recentemente acolhida, cenário em que "recomendou ao Governo" a aprovação do Referencial de Educação para a Ética e Integridade.

O documento, resultante de parceria e colaboração diversa (Direção-Geral da Educação, All4Integrity, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Mecanismo Nacional Anticorrupção, Transparência e Integridade de Portugal, e Universidade de Antuérpia) está agora em consulta pública.

Uma vez aprovado, constituirá suporte para o 18.º domínio de Educação para a Cidadania. Ou será o 19.º?

UM PROBLEMA ÉTICO DE PRIMEIRA GRANDEZA E DE ESCALA GLOBAL - 2

Ainda no documentário Young Addictions, objecto de texto anterior, vale a pena prestar atenção aos seguintes depoimentos: Jeff Seibert (Ex-p...