Muito em virtude do Movimento da Educação Nova, iniciado formalmente em finais de 1890 e, em especial, do trabalho de Ellen Key, o século XX foi declarado como o "século das crianças".
Relembro que esta educadora sueca publicou, em 1900, um livro cujo título era este mesmo. Pelo acolhimento que, quase de imediato, recebeu em diversos países, constituiu um dos sustentáculos do reconhecimento dos direitos das crianças como crianças e não como homúnculos ou "adultos em miniatura". Viria, pois a ter influência na redacção da Declaração dos Direitos da Criança, proclamada por Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 20 de Novembro de 1959, e da Convenção sobre os Direitos das Crianças, aprovada pela mesma entidade em 20 de Novembro de 1989. Em particular no Ocidente, as crianças passaram a ser protegidas pela Lei, consubstanciaram-se cuidados de educação e de saúde, entre vários outros.
Esta evolução positiva retirava os mais jovens dos campos, das fábricas e de outros contextos manifestamente adversos a tenras idades. Contudo, ao mesmo tempo, consolidava-se um novo "aproveitamento" destes sujeitos, não menos rentável nem menos deplorável: o aproveitamento como consumidores, como estimuladores do consumo e como reivindicadores do consumo. Percebeu-se que a sua plasticidade cerebral, demonstrada pelas ciências da cognição, fazia deles instrumentos especialmente desejáveis do mercado, cada vez mais global, desde que fossem usadas expeditas estratégias de marketing.
E é isso que tem acontecido, nem na escola estão a salvo. Logo, talvez possamos declarar o século XX como o século de instrumentalização das crianças.
Mário Frota, especialista em Direito do Consumo, fundador e presidente emérito da Associação Portuguesa de Direito do Consumo (apDC), tem-se pronunciado, por inúmeras vezes, sobre o assunto. Insiste, nomeadamente, no facto de a Lei que protege os menores da publicidade ser reiteradamente ignorada, mesmo por aqueles que os deveriam proteger.
Vale a pena ler o artigo que publicou há menos de uma semana sobre o assunto e que pode ser encontrado no jornal Notícias do Douro (aqui).
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O verdadeiro espírito do Natal é uma matéria luminosa, passe a expressão, frágil e preciosa, que só existe porque alguém a guarda, a cultiva, a transmite. Esta matéria luminosa é a promessa de que o humano pode ser mais do que função, mais do que recurso, mais do que engrenagem de um sistema que o ultrapassa.
Mas esta luz não paira no vazio. Ela emerge num fundo de matéria escura, uma força difusa, caótica, quase invisível, que molda silenciosamente as estruturas do mundo contemporâneo: a liberdade mercantil sem freio, o impulso de transformar tudo em produto, a tendência para converter cada gesto humano em oportunidade de lucro. Esta matéria escura não é apenas económica; é simbólica, afetiva, cultural. Ela infiltra-se nos ritmos da vida, nos desejos, nas narrativas, nos imaginários.
E é precisamente por isso que não pode ser deixada sem rédea. Não porque o mercado seja intrinsecamente maligno, mas porque o mercado não conhece limites éticos por si mesmo. A sua lógica é expansiva, indiferente, indiferenciada. Ele avança até onde lhe permitem avançar. Se não for regulado, confinado, enquadrado por critérios em que o lucro não se disfarce de moral, ele ocupará todos os espaços disponíveis, inclusive os espaços da infância, da educação, da relação, da imaginação.
O problema é que este confronto não é um duelo entre dois blocos puros. Não há luz de um lado e trevas do outro. Há interpenetração, contaminação, assimilação mútua.
Aqui emerge a importância inexcedível da educação, que deveria ser o lugar da resistência, e que é já, muitas vezes, um artifício do mercado. Não apenas porque as escolas são pressionadas por “rankings”, métricas, indicadores, plataformas, produtos pedagógicos, mas porque a própria linguagem educativa foi colonizada por categorias mercantis: “competências”, “produtividade”, “capital humano”, “gestão de talentos”, “otimização do desempenho”.
A matéria escura infiltra-se na própria gramática da educação. E quando a linguagem é capturada, o pensamento segue atrás.
Assim, até o que deveria ser um espaço de formação humana se torna, subtilmente, um espaço de formatação funcional. O que deveria ser cuidado torna-se investimento. O que deveria ser relação torna-se serviço. O que deveria ser abertura torna-se preparação para o mercado. A criança, que deveria ser fim em si mesma, torna-se um meio.
É neste ponto que a ética da educação se torna uma tarefa quase trágica: resistir a partir de dentro de um sistema que já assimilou parte da resistência.
A luz luta contra a matéria escura, mas fá-lo num campo onde ambas já se tocam, se cruzam, se confundem. A educação tenta proteger a criança, mas fá-lo com ferramentas que o mercado já contaminou. A ética tenta preservar a dignidade, mas fá-lo num ambiente onde a dignidade é frequentemente traduzida em métricas de “bem-estar” vendáveis.
A luta é assimétrica, mas não é impossível. A luz não vence pela força, vence pela persistência. Não vence pela expansão, vence pela profundidade. Não vence pela visibilidade, vence pela verdade.
A ética da educação é, portanto, a arte de manter viva a matéria luminosa num universo onde a matéria escura domina a gravidade. É a arte de impedir que o lucro se disfarce de moral. É a arte de impedir que a criança seja absorvida por forças que não compreende. É a arte de preservar a chama humana num mundo que a tenta apagar com brilhos artificiais.
E talvez seja na consciência desta dificuldade extrema, desta quase impossibilidade, que a ética encontra a sua força. Porque a ética não é o que fazemos quando é fácil, é o que fazemos quando tudo conspira para que desistamos.
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