quarta-feira, 31 de julho de 2019

É preciso tornar a "matemática mais suave“

No discurso usado para justificar as reformas curriculares em curso sobressaem diversos argumentos relativos aos conteúdos disciplinares. Eis três exemplos: o aprofundamento dos conteúdos implica a sua redução; devem prevalecer os conteúdos úteis e funcionais; os conteúdos não têm de ser ensinados na escola porque estão disponíveis no google/na internet.

Sendo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) responsável pelo Programa Internacional de Avaliação do Estudantes (PISA) e medindo esse programa as competências requeridas no quotidiano derivadas da aprendizagem na Língua Materna, Ciências e Matemática, de alguma forma fomos levados a pensar que, pelo menos nestas três áreas, seriam mantidos os conteúdos que servissem tal fim. 

Enganámo-nos: a OCDE mudou a sua orientação, aposta agora em competências "suaves", sobretudo de ordem "social e emocional", a "felicidade" é o objectivo central que traça para os sistemas de ensino. É preciso tornar a "ciência e a matemática mais suaves“, disse o seu máximo representante para a educação, A. Schleicher, na Câmara dos Comuns em 27 de Fevereiro de 2919 (ver aqui)

Em Portugal, como noutros países, corrobora-se esta orientação. Livremo-nos dos conteúdos disciplinares, mesmo que sejam de matemática, é a ideia que se faz passar. E isto em todos os níveis de escolaridade, mesmo no superior, nos cursos que formam professores. Na verdade, se os conteúdos desaparecem não faz sentido preparar quem os ensine.

Esta nota é a propósito de um texto saído anteontem no Público intitulado Matemática!? Matemática nunca! e assinado por Isabel Hormigo, professora de Matemática. Começa desta maneira:
No médio prazo, o problema mais sério da educação resume-se em poucas palavras: que professores vamos ter daqui a 10 ou 15 anos, quando a atual geração se reformar? Como estarão eles preparados para educar as novíssimas gerações? Serão pelo menos tão conhecedores e dedicados como a geração atual? 
Devemos ter confiança no futuro e nas novas gerações. Mas é a nossa, precisamente a nossa, que às vezes toma decisões egoístas e cegas que comprometem o futuro. 
Um exemplo desse egoísmo e dessa cegueira foi dado recentemente por vários membros do Conselho Nacional de Educação quando disseram que os novos professores não precisam de saber matemática (...) Expliquemo-nos. 
Continua aqui.

sábado, 27 de julho de 2019

PASSÁMOS À FRENTE OU PASSÁMOS AO LADO?

Artigo de Guilherme Valente no Sol de hoje:

"Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante."
 G. Orwell

 1. Elogiei a intervenção no 10 de Junho do jornalista e cronista João Miguel Tavares (JMT), cujo estilo irreverente e frontal acho útil e aprecio. Crítico hoje um seu artigo recente no Público em que defende uma tese que redutora, universal e intemporal como se apresenta é insustentável, exemplo incluído: a da "superioridade de umas culturas"* sobre as outras, concretamente a superioridade global do que designa “cultura ocidental” sobre as outras (sem precisões de época, de aspectos, de duração...).

É uma visão pouco informada, simplista. Nessa sua crónica JMT confirma a asserção popular de que o sapateiro não deve ir além da chinela. Como de facto foi. Cronista arguto e corajoso, controverso também, o que é bom, JMT não revela na especialidade a formação necessária e suficiente para se aventurar, com rigor, a tais domínios, e sobretudo para se atrever à generalização ingénua que fez. É natural, aliás, pois não se pode saber tudo de tudo. Não se devia ter atrevido a tanto, portanto.

Por hoje, apenas duas ou três interrogações... se JMT se dignar pensar nelas. Culturas superiores... globalmente? Sempre? À luz de que critérios? Haverá um critério único que permita uma avaliação global, intemporal, extensiva... definitiva? Que critérios, repito?

Por exemplo: uma cultura em que os homens e as religiões se matem umas às outras é superior a outra em que as religiões convivam pacificamente? Uma cultura cheia de artefactos tecnológicos em que uma grande parte da população se consuma numa velocidade existencialmente incompreensível, logo, porventura, injustificada? Se gaste no stress, na angústia, no medo do futuro, na dependência de antidepressivos e drogas? Será superior a outra em que a vida é vivida dominantemente de modo oposto, os conflitos e as depressões resolvidas sem perda? Uma cultura que quis converter e dominar as outras culturas, que permitiu que se afirmassem e dominassem os maiores monstros da História, que gerou e permitiu a emergência das ideologias mais assassinas da História, que teve meios para atear e ateou as chamas que incendiaram o mundo todo como nunca tinha acontecido, é superior a uma cultura não invasiva, não dominadora, não escravizadora das outras culturas?

Uma cultura que perdure durante milhares de anos é inferior a outra que inundada de realizações tecnológicas se auto-destrua e conduza o mundo á auto destruição? Uma cultura regulada pela ética é inferior a uma cultura regulada pela polícia? 

Reparem que não estou a concluir nada, não estou a concluir sobre generalizações não fundamentadas, a dar como absoluto nada que evidentemente o não é, sem referência de critérios de apreciação e juízo. Se o fizesse isso seria uma manifestação ignorante elementar igual à de JMT. As interrogações que coloco pretendem apenas sugerir que a tese de JMT, tal como é apresentada e com a radicalidade como é aplicada, não faz qualquer sentido.

Para não falar, claro, no facto de JMT demonstrar ignorar a interacção entre culturas, a permanente reelaboração de todas elas (mesmo as mais fechadas) e, fait divers en passage, o facto da cultura a que chama europeia ser na verdade, nas suas origens e desenvolvimentos, eurasiática. O que ela bebeu na civilização do Extremo-Oriente, particularmente! Tal como o Extremo-Oriente veio “cá” importar agora. Selectivamente...

Leia, pelo menos, o livro de Ernest Jones, O MILAGRE EUROPEU, a obra de referência-base citada por todos os que depois dele escreveram sobre estes temas. (Da Gradiva, claro... uma obra que me foi ainda sugerida pelo melhor leitor, A. Sedas Nunes).

Como é natural, JMT experimenta dificuldades quando o tema e a análise são mais finos. Impõe-se-lhe, por isso, self control.

2. “Onde surge o perigo nasce salvação”**. A Europa terá chegado ao liberalismo, aos valores liberais, adoptado a democracia liberal, para se defender... de si própria! E durante muito tempo esses valores foram só para consumo interno, pois continuou a matar, a roubar, a condicionar os outros como fizera antes.

É por isso que os dirigentes chineses ficam sempre muito irritados quando os Ingleses lhes falam em direitos humanos. É bem revelador de uma visão diferente, essa sim superior, do mundo e da História o facto de terem superado (sem esquecer como não deve ser esquecido), por exemplo, o horror da imposição cruel do consumo do ópio pela Inglaterra. É sempre oportuno lembrar que a formalização dos Direitos Humanos na liberal Declaração Universal do Direitos Humanos é para todos! ***

3. A ciência e a tecnologia mudaram o mundo e elevaram a qualidade da vida humana até níveis inimagináveis, sobretudo nos prodigiosos últimos 100 anos. E convém notar que as dificuldades e ameaças criadas pela tecnologia só podem ser resolvidas, serão resolvidas, com mais ciência e melhor tecnologia.

Mas sem a reflexão ética e moral a ciência e a tecnologia conduzirão o homem e o mundo à autodestruição. Por isso Carl Sagan insistiu tanto no imperativo dessa reflexão ética e moral. E ainda não se estava no ponto a que agora se chegou... Receio o futuro que se prefigura se não forem vencidos os demónios que voltam a infestar o mundo.
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* Uso a expressão “cultura”, mas deveria ser usado com mais precisão termo “civilização”, “civilizações”, estas com um mosaico inumerável de culturas.

 **Tradução livre de um verso de um poema de Hoelderlin.

 *** A pensar sobretudo nas escolas e nos pais, a Gradiva editou recentemente um livrinho com a história da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Venderam-se 85 exemplares! Culturas superiores, JMT, maldita hubris, que cega o homem.
Guilherme Valente

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Efemérides científicas de 16 de Julho

Informação, que agradecemos, vinda de Adriano Simões da Silva:

26 de julho de 1963 – Lançamento do Syncom 2, o 1.º satélite geoestacionário da Terra (fica a um ponto fixo sobre a Terra, possibilitando as comunicações e a TV), porque o lançamento do Syncom 1 tinha corrido mal. Ciência.

26 de julho de 1969 – Os astronautas da Apolo-11 passam a quarentena numa “caravana” luxuosa (“Diário do Norte”, capa e p. 11). Ciência.

26 de julho de 1972 – Lançamento da Apolo-15, que seria a a usar um veículo lunar. Ciência.

Ética no quotidiano


Início do capítulo "Amor romântico" do livro "Ética no Quotidiano" de Dave Robinson (Gradiva):

"O amor é importante (mas não muito filosófico)

A maioria de nós apaixona‑se num dado momento da sua vida, e há inúmeros romances, peças de teatro, canções e poemas acerca dos triunfos e tragédias do amor. O amor é muito importante para nós — determina o modo como pensamos e nos comportamos. Tem um enorme papel na pessoa que somos e em quem nos tornamos. Há quem diga que tem um elemento espiritual e ético que falta à simples luxúria.

Como sabemos quando estamos apaixonados? É uma emoção que nos parece evidente em si mesma. Porém, é um fenómeno privado, não algo que possamos descrever literalmente ou explicar com clareza. Como poderia de todo tornar‑se algo lógico, corroborado ou refutado, tornado moral ou imoral? Afinal de contas, no amor e na guerra vale tudo. O leitor pode ver por que razão isto é um problema para os filósofos.

O cortejar e a cultura

Há muitas regras culturais não escritas que regem o romance. Tradicionalmente, o amor envolve um homem activo que «corteja» uma mulher, a qual inicialmente finge indiferença. Isto torna o acto de cortejar um manancial de possíveis mal‑entendidos e constrangimentos. As mulheres supostamente existem num estado de «disponibilidade» passiva, embora possam ocasionalmente dar ao seu escolhido um ou outro incentivo.

O amor pode também ser instantâneo. Muitos jovens continuam a afirmar que, intuitivamente, «souberam» logo que acabariam por casar com aquela rapariga que viram «do outro lado de uma sala apinhada de gente».

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Q Acredita no amor à primeira vista?
R Paixão e luxúria à primeira vista são uma coisa. O amor parece ser algo diferente.

Q Poderemos de todo decidir estar apaixonados?
R O amor não parece algo que se possa escolher. Seria como escolher uma crença. Ou a temos ou não. É uma questão involuntária.

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O amor pode também tornar‑se obsessivo, um tipo de doença. O amor pode ser terrivelmente destrutivo. Pode destruir casamentos, traumatizar os filhos, levar ao desespero suicida. Vá à ópera e veja.

Portanto, o amor romântico é, ainda, em parte, «cultural», e a sociedade ainda vê com maus olhos as mulheres promíscuas, porque a sociedade permanece patriarcal — os homens têm mais poder económico e político. Porém, muitas mulheres são hoje economicamente independentes e menos constrangidas pelas expectativas masculinas. As raparigas arrojadas convidam os rapazes para sair e não esperam receber longos poemas dedicados à sua pureza e beleza. Temos mais liberdade, mais parceiros, pelo que aprendemos mais acerca do poder, da insegurança e das complexidades das relações. No entanto, o amor não correspondido pode ainda assim ser uma experiência horrível.

Será o amor apenas físico?

Além de ser parcialmente cultural, o amor romântico é obviamente também algo bastante «natural». O desejo sexual é algo inato, um impulso tão natural quanto a fome ou a sede.
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PARA PENSAR

Apaixonar‑se produz nos nossos corpos consideráveis acontecimentos de natureza química que estimulam os centros de prazer do cérebro para nos deixar felizes e excitados, até mesmo algo doidos. Isto sucede porque a Natureza quer que perpetuemos os nossos genes e os misturemos, e apaixonar‑se é o início deste processo. Os homens em geral procuram companheiras jovens e belas, e as mulheres gostam de homens bem‑parecidos. No entanto, as mulheres procuram também segurança, estatuto e fiabilidade. Precisam de parceiros que as protejam e à prole até que os seus próprios filhos se tornem potenciais parceiros. Talvez seja por esta razão que as mulheres, pelo menos superficialmente, são mais relutantes do que os homens em ter relações, e os homens mais promíscuos.

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Contudo, o amor não tem apenas a ver com a procriação. As pessoas são atraídas umas pelas outras por todo o género de razões: compaixão, amizade, empatia, um desejo de pertença, medo da solidão, sentimentos de insegurança e inferioridade, egotismo e outros sentimentos, quer bons quer maus.

Amor maduro — o fim do romance?

Não é fácil determinar quanto de cultura ou de Natureza determina o comportamento romântico dos
homens e das mulheres — porque se trata de uma mistura confusa de ambos. O amor romântico é uma mescla complexa de poderosos impulsos inatos e convenções sociais, culturais e históricas que canalizam ainda os nossos instintos para os códigos de comportamento a que a sociedade dá preferência.
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Q Haverá maneira de saber se uma relação perdurará?
R Como poderíamos saber se uma relação perdurará?
Como quase tudo na vida, trata‑se de um jogo. Muitos de nós sentimo‑nos já fisicamente atraídos por alguém que posteriormente viemos a considerar enfadonho, irritável, trivial, obsessivo ou apenas desagradável. Portanto, é uma boa ideia considerar o carácter, além da aparência. O amor, a longo prazo, é mais do que a mera paixão.
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Se somos como a maioria das pessoas, então a paixão acabará por se tornar menos premente, ainda «romântica», mas também mais consciente e menos determinada por desejos físicos. A nossa relação será moderada pelo respeito mútuo e pela empatia. Ambas as partes se apercebem de que é sensato permitir aos seus parceiros serem eles mesmos e não uma cara metade idealizada. Parece mais monótono, mas tem os seus méritos. Há maior abertura, talvez, e mais negociação. Isto pode ser uma coisa boa, ou não. Pode tornar‑nos felizes e satisfeitos, ou não. Tudo depende das pessoas envolvidas.

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Q Os amantes não podem ser amigos. Concorda?
R Esta perspectiva do amor é algo cínica. Sugere que os amantes não sabem na verdade muito acerca uns dos outros e que não aderem a tudo o que foi dito no capítulo anterior acerca da amizade, como a confiança, a partilha, o compromisso e o florescimento. Ainda assim, o amor parece de facto mais volátil e perigoso do que a amizade, especialmente nas suas fases iniciais.

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O filósofo pessimista Arthur Schopenhauer (1788‑1860) pensava que o amor romântico é algo que não raro termina mal, independentemente de quem somos. No momento, todos pensamos que nada há mais importante do que o amor. Far‑nos‑á felizes para sempre. Contudo, infelizmente, diz‑nos
Schopenhauer, o amor é apenas o logro da Natureza para nos levar a procriar. Pensamos que se trata de mais do que isso, mas não. Apaixonamo‑nos por pessoas que, subconscientemente, acreditamos irem eliminar gradualmente as nossas más qualidades quando tivermos filhos. Sou alto e narigudo,
portanto, procuro alguém mais baixo e com um nariz pequeno. E quando tivermos tido filhos e os tivermos criado, bom, foi o fim da viagem para nós. Por que razão haveria um impulso biológico involuntário de ter algo a ver com a nossa própria felicidade pessoal?

O pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856‑1939) concordava com boa parte disto e pensava que casar tinha um preço bastante elevado. Temos de suprimir os nossos desejos mais irracionais e destrutivos de modo a viver numa sociedade ordenada e racional. Isto pode manter‑nos seguros, mas também fazer‑nos infelizes.
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PARA PENSAR

Quando somos amados sentimo‑nos valorizados e especiais. Gostamos mais de nós próprios, tornamo‑nos mais confiantes. O amor pode começar com tempestades de emoção incontrolável, mas pode acabar por ser bom para nós, e até fazer de nós pessoas melhores. Talvez assim seja. Contudo, o amor interfere também na autonomia dos indivíduos. Quando estamos desesperadamente apaixonados, somos menos «livres». Assim, isso faz do amor uma coisa má?"

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(...)

"A Religião dos Fracos"



Início do livro "A Religião dos Fracos", de Jean Birbaum, que acaba de sair na Gradiva


«O crente é o espelho do crente»

Uma vez que os dominantes precisam de ter a última palavra, os guerreiros da jihad não descuram as conclusões. No final das proclamações que fazem, introduzem aquilo a que os manuais de retórica chamam «cláusula», isto é, uma fórmula explosiva que conclui o discurso impressionando o auditório. Neste caso, o procedimento é tanto mais poderoso porque o orador pronuncia as suas derradeiras palavras: os mais célebres vídeos jihadistas exibem um homem que morre depois de ter matado. Aqueles que acaba de eliminar não eram dignos de existir, e ele próprio se prepara para conhecer o sacrifício absoluto. Desde logo, matar outro e matar‑se a si abre‑lhe o caminho de uma sobrevida, ou seja, uma vida mais elevada, mais real, mais intensa. Perante a câmara, o soldado do Califado reivindica o gesto. Está convencido de que as palavras que utiliza serão as palavras do fim: fim dos infiéis, fim da perversão, fim da História. E este fim coincide com um início radical, o advento do Reino divino.

Uma destas fórmulas definitivas marcou‑me particularmente. Uma simples frase pronunciada por Larossi Abballa, um jovem que apunhalou um casal de polícias, Jean‑Baptiste Salvaing e Jessica Schneider, em Magnanville, nos arredores de Paris, em 13 de Junho de 2016. O vídeo que Larossi Abballa publicou no Facebook imediatamente a seguir ao duplo assassínio foi gravado em casa das vítimas. Dura cerca de dez minutos. Junto dele, o cadáver de Jessica Schneider, mas também o filho dos dois polícias, com três anos. O assassino vira a câmara para a criança e indica: «Ainda não sei o que vou fazer com ele.» Trata‑se de um dos raros instantes de improviso da sequência. Quanto ao resto, Abballa lê um texto escrito previamente. Antes de chegarmos à cláusula da sua proclamação, é
preciso descrever o movimento de conjunto.

De cabeça rapada e longa barba, Larossi Abballa começa porfazer uma oração ritual, em árabe. Jura fidelidade ao Estado Islâmico e diz: «As minhas primeiras palavras são para a comunidade
muçulmana, para a Oumma al‑islamiya: que se passou contigo? Como chegaste a este ponto? Que castigo se abateu sobre ti? Antes, governavas o mundo; agora, vês‑te governada! Aplicavas as
leis de Alá na terra, e hoje aplicam‑te as leis do Taghout [o poder ilegítimo, que corresponde ao homem desnaturado]! Desviaste‑te do caminho de Alá e do seu profeta. Por isso, o castigo de Alá
abateu‑se sobre a tua nuca.» O conjunto deste palavrório desenvolve a mesma ideia, bastante vivaz no discurso jihadista: os muçulmanos dominavam, agora já não dominam. Se conheceram a decadência — afirma Larossi Abballa, entre tantos outros —, a razão é simples: desviaram‑se do combate ao serviço de Alá. Quem abandonar a jihad condena‑se ao aviltamento: entre o domínio e a humilhação, não há meio‑termo. Dirijo‑me aos muçulmanos de França, aqueles que Alá privilegiou ao conceder‑lhes a compreensão adequada dos textos: ataquem os infiéis como preferirem! Façam
tremer as almas deles e toda a França! Façam que Alá devolva a supremacia à sua religião.»

Restabelecer o islão na sua posição hegemónica, é esta a urgência, um objectivo para o qual é justo e bom sacrificar‑se. De repente, Larossi Abballa mostra um sorriso caloroso e uns olhos húmidos quando declara em tom fraternal: «Basta que nos lancemos, que morramos, e ver‑nos‑emos
no paraíso! [...] E, nesse momento, desaparecerão as preocupações, os problemas; restará apenas um prazer infinito.» No entanto, o semblante de Abballa não tarda a endurecer, para exortar os «irmãos» a assassinarem guardas prisionais, representantes eleitos da República, jornalistas e rappers, cujos nomes fornece numa lista. Pouco depois de ter fechado este parêntesis operacional, o jovem chega à conclusão. É o momento da cláusula para que convergia o conjunto da declaração. «Gostaria de concluir com estas palavras: o crente é o espelho do crente.»

Esta formulação foi retirada de um hádice, das palavras atribuídas ao profeta Maomé. Na tradição islâmica, foi objecto de abundantes comentários, os quais frequentemente a interpretaram como forma de sublinhar a responsabilidade e a sinceridade do muçulmano para com os outros muçulmanos: cada qual deve servir de espelho aos outros, devolver o reflexo tanto das suas qualidades quanto dos seus defeitos, tanto da sua fidelidade quanto da sua errância. No caso em apreço, esta formulação pode ser entendida de outra forma. Pronunciada por um jihadista que acaba de massacrar dois «infiéis» à frente do filho destes, dirigida aos franceses e à Europa como um gesto de desafio, ela poderia significar: «Vocês, que nunca levam as nossas palavras a sério, revejam‑se no meu discurso, pois a minha crença é o espelho das vossas crenças. Europeu, vê‑te em mim. Contempla a minha fé e vê aquilo em que acreditas.»

Este efeito de espelho era já central no meu livro anterior. Com Un silence religieux1, pretendi mostrar como a fé dos jihadistas nos revela — a nós, europeus secularizados — a nossa certeza de que a crença religiosa não é nada. Ou, então, nada de real, quando muito um ornamento que oculta as coisas sérias (políticas, económicas, sociais...), um arcaísmo destinado a ser dissipado pelo progresso. Mas o essencial, naquela altura, era quebrar o silêncio, o nosso silêncio exaltado quanto à religião, para finalmente ouvirmos o que diziam os jihadistas. Levar a sério o seu fervor sem o limitar a algo que não fosse ele próprio, apreender a visão do mundo que os move, sem continuar a fazer deles simples casos sociais ou lunáticos: tratava‑se de compreender o seu ímpeto, a imensa sedução que exercem por todo o mundo, o seu poder de atracção.

Nós, apesar de tudo?

Agora, a tarefa é outra. É preciso voltar o espelho e segurá‑lo com firmeza. Enfrentá‑lo, definitivamente. Contemplar a imagem maior que nos devolve, visto que exibe um nós, apesar de tudo. Nós, precisamente, que somos tão reticentes a dizer «nós», porque traçar um «nós» implica obrigatoriamente delimitar uma fronteira com «eles», sob pena de excluir, de discriminar. No entanto, o jihadista solicita‑nos. «Amamos a morte como vocês amam a vida», repete ele de geração em geração, de Osama bin Laden a Mohamed Merah. Ao dizer «vocês», ele arpoa um «nós» ao nosso corpo defensivo. Um «nós» de todas as origens e de todas as sensibilidades, que é preciso evitar enclausurar em limites arbitrários, mas cujos contornos é urgente deixar emergir formulando a pergunta: «O que preza este ‘nós’? Que prezamos nós?»

O presente ensaio gostaria de contribuir com alguns elementos de resposta. Para isso, por vezes teremos de ser drásticos. Quando assume como objectivo penetrar camadas e mais camadas de não‑ditos, a pluma vê‑se obrigada a ser firme. Capítulo após capítulo, estrato após estrato, ela atravessará episódios diversos, logo, implicações múltiplas (sociais, políticas, religiosas, culturais, sexuais...), de modo a descobrir a crença que o jihadismo nos obriga a olhar de frente. Esta crença, como veremos, coincide em parte com um conjunto de convicções tradicionalmente associadas àquilo que se chama «a esquerda». Porém, dado que em França, e frequentemente noutros países europeus, a esquerda gozou por muito tempo de uma «superioridade de prestígio», para usar a expressão de Raymond Aron, analisar estas evidências comuns equivale a explorar um espaçode doutrina que as extravasa largamente.

Conheço bem tal crença. Nasci no seio dela. Como foi já o caso no meu livro anterior, não julgarei a partir do exterior as certezas que gostaria de explorar aqui. São as minhas certezas, recebi‑as
como herança e por muito tempo aderi a elas sem reservas. Será o efeito da idade ou o calor dos acontecimentos? Seja como for, comecei a duvidar. Depois, após discussões entre amigos e debates públicos, percebi que não era o único. Concluí que chegara o momento de falar disso e, portanto, de questionar: que crença é esta que nos desarma? Dado que faz coincidir um estado de vulnerabilidade e um sentimento de omnipotência, chamar‑lhe‑ei Religião dos Fracos."

(...)

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Último número da revista “Atlantís”

Informação chegada ao De Rerum Natura

A revista “Atlantís” acaba de publicar o seu último número (em acesso aberto).

Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à informação.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

A exaustão dos professores

Quatro professores portugueses faleceram recentemente enquanto trabalhavam ou imediatamente após terminarem tarefas de trabalho: corrigir testes, dar aula, enviar dados para a escola. Se há uma relação entre as mortes e as exigências laborais não foi ainda apurado, mas foi pedido ao Ministério Público que faça uma investigação (ver aqui, aqui, aqui e aqui).

Trabalhar sob constante pressão, a tempo inteiro, em ambientes sociais adversos não é uma particularidade do ensino, mas está bem presente nesta profissão. E são os professores mais dedicados, preocupados e cumpridores que a sentem em contínuo. Abandonar a profissão tem sido, para muitos, a solução ou a salvação. Isto acontece no nosso país e noutros com o mesmo alinhamento político-curricular.

Há algum tempo encontrei e guardei o depoimento de uma jovem professora que ilustra esta situação, a qual parece agravar-se de ano para ano (ver aqui e fui aqui, aqui).

Diz ela (fiz uma tradução-síntese das suas palavras) que as pessoas hão-de pensar que deixou o ensino por insatisfação quanto ao salário ou por ter encontrado uma profissão melhor. Não é o caso, apesar de a sua "paixão pelo ensino" se manter, sentia-se com se tivesse o "cabelo a arder", não podia continuar. E explica.

A desculpa de que "as crianças mudaram" não colhe. As crianças são crianças. O que mudou foi a parentalidade e a sociedade, as crianças são vítimas disso. Os pais trabalham horas sem conta, deixando os filhos em condições instáveis, há influências terríveis dos meios de comunicação. Eventualmente na sala de aula é o primeiro lugar em que as crianças irão ouvir um 'não', em que se lhe colocam limites, precisamente porque é a sua educação que está em causa.

Face a este problema tão grave a resposta é que se precisa de escolas do século XXI apetrechadas com tecnologia, promovendo aprendizagens práticas (isso fica bem no "site" da escola). De alguma forma sugere-se que se esqueçam os conceitos básicos, que não é relevante um comportamento adequado... 

Acresce que, como a abordagem tecnológica não parece estar a funcionar, insiste-se no "treino" aos professores, roubando tempo ao ensino. Um desperdício. 

Em vez de responsabilizarem os pais e torná-los verdadeiros parceiros, adopta-se a mentalidade de "atendimento ao cliente". Tive pais que, por exemplo, queriam participar de viagens de campo, que me ocupavam muito tempo com telefonemas e que me disseram que não tinha permissão para dizer "não" aos seus filhos.

Sentia que a minha saúde física e mental estava em perigo, percebi que os meus filhos precisavam e mereciam mais do que estavam a receber e que não podia, não era capaz de ensinar verdadeiramente os meus alunos.

Deixei o meu fundo de reforma, a minha licença médica, não fiquei com um salário melhor. Saí da sala de aula mas ainda sinto que estou a defender as crianças, apenas o faço agora de um modo diferente.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Insiste-se: "o sistema educativo já não funciona sem estar ligado às novas tecnologias"

Como sociedade devemos estar atentos aos discursos sobre a educação escolar pois, com frequência, eles não caem no vazio, antes têm implicações concretas, directamente na vida dos alunos e indirectamente na vida de todos. 

Esta afirmação é válida sobretudo para quem, como eu, está, por ofício, ligada a essa área. Procuro, pois, acompanhar as notícias, os programas que a comunicação social, sobretudo a portuguesa, publica/realiza. 

O exercício é, as mais das vezes, penoso: os erros graves e as falácias são uma constante, a que acresce o tom de certeza inabalável com que são veiculadas. Aceita-se que todos se pronunciam sobre a educação, tenham ou não estudado, e que todas as declarações valham o mesmo, até aquelas que são uma vulgar opinião. Raro é o discurso que, além de denotar conhecimento denota também ponderação.

Isto vem a propósito, não só mas também, do programa Prós e contras (da RTP 1) dedicado à Revolução digital na educação, que foi para o ar no dia 1 deste mês e que tinha reservado para análise.

Diz-se na peça de abertura o que já ouvimos dezenas, centenas de vezes, até interiorizarmos como verdade:
"Procura-se tornar o ensino mais próximo das novas tecnologia que os alunos já estão habituados. É uma aposta no futuro mas esta sala não teve qualquer apoio do Estado [a "ajuda" de relevo foi dado por duas fundações] (locução e professor de uma "sala de aula do futuro")
Já vemos muitas experiências a nível do formato da aprendizagem, uma evolução e um acompanhamento a nível disto que são as tendências, a nível dos conteúdos programáticos acho que há um caminho mais longo a ser percorrido (representante de uma empresa).
A escola tem de ser rapidamente reformulada. O sistema educativo já não funciona sem estar ligado às novas tecnologias."
Para (re)pensar estas palavras transcrevo extractos significativos da intervenção de um professor que é também escritor, António Carlos Cortez, de quem já havia destacado outra intervenção no mesmo programa (aqui).
"Não tenho nada contra aulas expositivas, tive grandes professores [que conduziam] maravilhosamente as aulas [algumas] transdiciplinares, conceito fundamental na aprendizagem: um professor, sendo de Português de História ou de Físico-Química, consegue abarcar e fazer relações. Tenho muito esta ideia de que os alunos hoje o que pedem é que as aulas (...) não sejam uma "seca". As aulas só não serão uma "seca" quando são expositivas se o professor tiver aquela compreensão no sentido que lhe dava António Sérgio, do abarcar, no acto de expor uma matéria, de forma sedutora (...). Julgo que estamos de acordo quanto ao facto de nestes últimos anos ter havido uma corrupção do que significa leccionar (...) [muito devido a] essa questão falaciosa dos rankings. Esta ideia de que aprendemos em função da competição é um dos aspectos que mata o ideal de ensino porque, justamente, não leva a que recaia na pessoa do aluno (...), faz-se passar a ideia de que o bom aluno é aquele que é um grande competidor. Ora, o ideal de ensino não pode e não deve ser esse porque [se assim for] estamos a defender uma escola-linha-de montagem (...) [os alunos] podem ter competências, e eles são hoje muito versáteis em competências digitais, mas, por exemplo, na leitura do texto complexo, nomeadamente do texto literário são muito graves as lacunas que têm e [também] ao nível da redacção. E isto não vai lá com oficinas de escrita nem com estratégias pós-modernas vindas das ciências da educação. Isto vai lá com o regresso aos textos, à leitura científica desses textos (...). É fundamental ler, o livro deve regressar à escola. A reportagem do início do programa [traduz o] fetichismo da técnica que é, a meu ver, absurdo. Ficamos com computadores nas salas de aulas e nas bibliotecas mas se formos ver, uma das causas principais para que as bibliotecas escolares não tenham alunos a ler foi, justamente, a introdução [lá] dos computadores (...). O livros e as novas tecnologias devem estar em harmonia (...) a escola não pode ser o lugar da imitação da sociedade digital (...). A capacidade analítica, de saber escrever, a ponderação e a lentidão que é preciso para formar leitores não se compadece com uma sociedade vertiginosa, multitasking. Há alunos que têm dificuldades reais de interpretação de textos e enunciados, seja porque ignoram o verbo, seja porque ignoram construções sintácticas mais complexas ou porque ignoram referentes histórico-culturais.
Tenho esta pergunta: como é que se constrói a tal individualidade, a subjectividade [com] essa ideia da negociação permanente. Qual é o papel do professor na relação pedagógica? (...). Uma das coisas mais extraordinárias na escola (...) é que a reboque daquilo que me parece ser, como direi, uma inflação de um ensino técnico, tecnocrático e burocrático, até, perdeu-se a ideia do que é orientar com conhecimento, com conhecimento sério dos textos e das matérias. Houve (...) a ideia de fazer das aulas oficinas de escrita ou laboratórios disto ou daquilo, e eu não tenho nada contra o professor, o magister... por vezes pergunto-me se os nossos alunos não têm falta dessa figura, do professor conhecedor, do mestre.
Em teoria estou de acordo com tudo o que está a ser dito aqui mas a capacidade de decidir, o sair da zona de conforto, expressão muito curiosa, mas que aluno é que tem capacidade de decidir, que aluno é que pode ter empatia, que aluno é que pode ter capacidade de liderança (...)?. A escola não tem de ir ao encontro dos interesses dos alunos, essa é uma das falácias mais extraordinárias, não, a escola não tem de ir ao encontro dos interesses dos alunos.
Sem um regresso ao livro, sem um regresso aos clássicos, sem um regresso a esse convívio entre humanidades e sem a harmonia entre as novas tecnologias e as competências de leitura e escrita, do saber histórico (...) estamos a construir especialistas de uma sociedade de insensíveis.
Nota: Como em grande parte das actuais conversas sobre educação escolar não podia deixar de ser feita referência ao "Dr. Google". Isto diz muito do conteúdo preocupante dessas conversas.

PROPOSTA DE UM NOVO CURRÍCULO PARA A MATEMÁTICA

Em Dezembro passado, o Ministério da Educação constituiu o Grupo de Trabalho de Matemática (cf. Despacho n.º 12530/2018). No final de Junho o grupo apresentou o documento Recomendações para a melhoria das aprendizagens dos alunos em Matemáticaque se encontra em discussão durente noventa dias para "posterior aperfeiçoamento e complementação, dando então origem a uma versão final".

São perto de trezentas páginas que incluem um historial e uma análise dos documentos que têm orientado a disciplina ao longo das últimas décadas no nosso país nos diversos âmbitos e níveis do sistema - educação pré-escolar, ensino básico, ensino secundário e cursos profissionais: programas, metas (de aprendizagem e curriculares) e aprendizagens essenciais. Esse historial e análise estende-se a projectos que têm sido experimentados para superar problemas de aprendizagem.

Segue-se um olhar a documentos curriculares comummente referidos quando se passa para o plano internacional: dos Estados Unidos da América, de Singapura e da Finlândia. E exploram-se os resultados de programas de avaliação internacional (PISA e TIMSS).

Quase no final, no tópico 9.3  (Um ponto de situação sobre o atual contexto curricular), inclui-se uma alusão à matemática no Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular e às necessidades curriculares futuras que devem estar de acordo com o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória. A alusão ao Projecto é descritiva, com recuperação de dados de um estudo com carácter de avaliação publicado em 2018, a alusão às mencionadas necessidades curriculares merece atenção.

Aqui recuperam-se estudos e propostas de entidades cuja vocação não é educativa, é económico-financeira. A saber: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e fundações ligadas a empresas de abrangência global. Estamos a falar de entidades que penetram cada vez mais fundo nos sistemas de ensino, direccionando, como é compreensível, os currículos escolares em função dos seus próprios interesses. É, pois, de estranhar que académicos que investigam o estado do ensino, integrem esses estudos e, sobretudo, as suas propostas num documento que será tomado em consideração pela tutela. Eis uma passagem do mencionado documento:
"Em jeito de conclusão, é absolutamente inequívoco que a Matemática é e será uma disciplina incontornável na formação de qualquer cidadão, em especial na sua preparação para o mundo do trabalho. Um currículo que responda a essa exigência deve ser: pouco extenso; relevante e flexível; envolver todos os parceiros na sua construção; prever o desenvolvimento de competências de resolução de problemas, de raciocínio matemático e de trabalho com situações da vida real, nomeadamente privilegiando o tratamento e interpretação de dados, bem como o pensamento crítico; e dar oportunidades diversificadas a todos os alunos para que se sintam confortáveis na abordagem a problemas cuja resolução requeira Matemática."
A terminar, são apresentadas vinte e quatro recomendações, agrupadas em quatro áreas nas quais se destacam diversas necessidades de que, a seguir, se dá uma brevíssima ideia:
currículo da matemática (destaca-se a necessidade premente de elaboração de um novo currículo de Matemática para toda a escolaridade obrigatória),
dinâmicas de desenvolvimento curricular (destaca-se a necessidade de os processos de mudança curricular serem acompanhados por dispositivos de regulação),
avaliação das aprendizagens dos alunos (destaca-se a necessidade de reforçar a avaliação formativa, não havendo retenção a não ser no final dos ciclos), formação de educadores e professores (destaca-se a necessidade de investimento na formação inicial e a prática de ensino supervisionada, e a necessidade se centrar a formação contínua nas escolas e focados nas práticas.

domingo, 21 de julho de 2019

A Síndrome da Doença do Modelo de Desporto Português

Texto que nos foi enviado pelo leitor Fernando Tenreiro, publicado na passada semana no jornal Público (aqui).

Os principais indícios da enfermidade do Modelo de Desporto Português (MDP) são a sua incapacidade de criar valor desportivo ao nível do conseguido pela maior parte dos outros países europeus, a falência de federações, clubes e atletas e a inaptidão para conceber e liderar processos de transformação das instituições do desporto português.

Três exemplos materializam os males do MDP. Primeiro exemplo – Em 2017, um conjunto de 12 federações terá iniciado um processo visando a modernização da Confederação do Desporto de Portugal (CDP). O projecto passaria por ganharem as eleições de 2019 a Carlos Paula Cardoso cuja liderança terão desconsiderado. Passados 3 anos as eleições foram ganhas pelo líder em funções, Carlos Paula Cardoso, apesar das diligências críticas dos contestatários a outros votantes. O episódio é sintomático da doença do MDP.

Falta às suas instituições instrumentos de análise qualificada sobre o seu passado, a sua situação actual e o que será no futuro. Sem esse rumo as federações dispersam-se em organizações que desconsideram e são derrotadas. Pergunta-se como é que 12 organizações (de modalidades olímpicas?) visam um objectivo que definem como institucionalmente prioritário, que trabalham durante todo o ciclo desportivo e fracassam? Como é que estas entidades poderão ganhar grandes resultados internacionais e, em particular, que condições têm para conquistar primeiros lugares? Ou de outra forma como podem estas federações desportivas e as outras, que preferiram a continuidade do mandato de Carlos Paula Cardoso, promoverem a transformação do Modelo de Desporto Português que se sabe estar falido? Como podem eleger ou legitimar líderes alternativos e de futuro? Porquê manter a CDP que se tornou desinteressante? Porque não conceber uma inovadora arquitectura organizacional de um novo Modelo de Desporto Português? Segundo exemplo – A inconsistência de iniciativas das federações desportivas verificada no ponto anterior esconde a sua fragilidade sistémica: social, financeira e desportiva. As estatísticas do desporto mostram que nos últimos 20 anos por vários motivos o número de federações desportivas decresceu num valor superior a 10%.

De 2004 em diante faliram 8 federações, o quádruplo das 2 criadas no período. A falência das organizações aliada à falta de criação de novas federações demonstra que as populações não se interessam por um sector que não apresenta resultados desportivos e não criam novas organizações. A maleita é mais profunda quando existe a percepção da falência financeira em 32% das federações que actuam no mercado desportivo. As estatísticas mostram a falência desportiva da maior parte das federações existentes, com a excepção do futebol.

Em síntese, a saúde da maior parte das federações desportivas é frágil! Demasiado frágil! Terceiro exemplo – Se o campeão Fernando Pimenta não ganhar a medalha de ouro na canoagem olímpica, esse terá sido um modo de destruir valor desportivo do Modelo de Desporto Português a que os portugueses foram habituados. Portugal tem o campeão Fernando Pimenta que aspira a ganhar a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Tóquio no próximo ano. Porém, nem os governantes, nem os líderes federados, nem os líderes partidários assumirão politicamente a conquista da medalha de ouro por Fernando Pimenta como ponto de honra de Portugal nos Jogos Olímpicos de Tóquio.

Ninguém pode garantir uma vitória desportiva, porém, quando Nelson Mandela dialogou com o capitão da selecção sul-africana estava a garantir-lhe o conforto e a transcendência da Honra da ambição nacional que os atletas materializariam no confronto desportivo. Sabe-se que em Tóquio estarão os símbolos da Nação, séculos de história trágico-marítima, a Sagres, o Hino, a Bandeira e muito-mais-de-muito-menos e pergunta-se: Até que ponto durante os últimos anos houve políticas públicas condicentes com a magnitude da responsabilidade focada na viabilização da medalha de ouro de Fernando Pimenta? Caso tenha faltado a elevação da política pública nacional resta adivinhar o circo que se prepara. É tempo de Portugal elevar o nível da sua política pública desportiva para além dos calculismos políticos habituais do “participar é ganhar”, do “não me comprometa com o que fazem os atletas” e do “salve-se quem puder” que surgem por altura das missões olímpicas portuguesas.

Face ao historial de fracassos olímpicos de Portugal não será de excluir a hipótese de mais uma vez Fernando Pimenta poder ser traído pela ineficácia da política pública desportiva que o atingirão pessoalmente, que se repercutirão negativamente na juventude nacional e que afectarão, de novo, os mais altos interesses nacionais. A medalha de ouro na canoagem a ganhar por Fernando Pimenta é um magnífico projecto desportivo nacional e deveria ter sido colocado num patamar diferenciado da política desportiva nacional, assim tivesse havido o engenho e a arte para o finalizar com sucesso por parte dos principais decisores políticos nacionais. O último ano da preparação de Fernando Pimenta atingirá níveis de filigrana operacional e de excelência de governança do mais alto rendimento que as nações olímpicas protagonizam.

Conclusão – A síndrome da doença do Modelo de Desporto Português é grave quando sugere não haver no MDP a produtividade desportiva da maior parte dos países europeus, ter um contributo directo para a falência das federações e dos clubes desportivos, desnortear e desresponsabilizar os líderes das federações e não proteger e não promover os seus campeões para lhes assegurar as medalhas de ouro de que são merecedores.

"Se não paga pelo serviço, então o serviço é você!"

Reprodução do quadro Cabeça de mulher velha,
de Vicent van Gogh
Foi notícia recente a disponibilização de uma aplicação no facebook (app) que, a partir de uma fotografia de alguém, "fabrica" a imagem desse alguém com mais alguns anos, aqueles que o utilizador quiser. Isto significa que, no imediato, cada um de nós pode ver-se mais velho dez, vinte, trinta... cinquenta anos...

Sobre o assunto, vale a pensa ler no jornal Expresso o texto "As pessoas instalam todo o tipo de porcaria": há uma app que faz envelhecer e isso não é divertido, assinado por Hugo Tavares da Silva, que se encontra online. Para o escrever, entrevistou dois investigadores - Pedro Veiga e Luís Grangeia -, que sabem bem do que falam. 

Trata-se de um texto que, na sua clareza, assinala o que a educação não conseguiu e não está a conseguir fazer: criar uma consciência profunda do valor da privacidade.

"Mas fica desde já o aviso: se não quer que os seus dados pessoais acabem não se sabe onde, o melhor é não utilizar esta aplicação. E lembre-se: se não paga pelo serviço, então o serviço é você. «Além da asneira de instalar, as pessoas cometem a asneira de não a remover» (...). 
Trata-se da FaceApp, da empresa russa Wireless Lab, que nem é nova mas que conta com filtros novos para manipular a nossa aparência (penteados diferentes, outros traços ou toques no rosto, diferentes fases da vida, por exemplo) (...). Foi um fartote nas redes sociais, uma espécie de viagem no tempo. 
Até os jornais alinharam em publicar fotografias de atletas com uma idade mais avantajada, fazendo fácil imaginar um campeonato de veteranos de alto gabarito. 
Mas, como quase sempre, há um outro lado da história. E real. É caso para recorrer à já batida frase: se não paga pelo serviço, então o serviço é você. 
Em troca daqueles segundos de pura satisfação e partilha pelo que cada pessoa ainda não é mas será quando envelhecer, a empresa fica com uma enormidade de dados dos utilizadores, autorizada, lá está, pelos próprios utilizadores. 
Está tudo nos nove pontos da política de privacidade daquela app. Entre a autorização a acesso a contactos, fotografias e até histórico, criando uma espécie de perfil do internauta, a FaceApp admite ainda que a informação recolhida pode ser partilhada com terceiros. 
Quais terceiros? Ninguém sabe. «Isto é uma história interminável», [explica] Pedro Veiga, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e ex-coordaenador do Centro Nacional de Cibersegurança. «É o mesmo que baterem à sua porta e dizerem: ‘Olhe, posso entrar e ir ali ao frigorífico comer uns iogurtes?’. E você diz que sim. É um problema de educação. As pessoas não devem instalar aplicações nos seus equipamentos quando não precisam delas. Mas acham-no divertido…» 
E continua: «As pessoas dizem que é gratuito. Bom, você não paga diretamente, paga indiretamente, dando a sua privacidade. Não há almoços grátis. Até ao histórico têm acesso… para quê!? (...) O que me interrogo neste caso é, até havendo agora o regulamento geral de proteção de dados, se a nossa entidade reguladora da proteção de dados não deveria intervir…» (...)
Luís Grangeia, especialista em segurança informática, complementa: «Eles não estão a fazer mais do que 99% das outras aplicações fazem. As pessoas nem precisavam de ler as políticas de privacidade, hoje em dia, para estarem completamente convencidas que eles vão tirar tudo e pegar naqueles dados e usá-los, vendê-los da forma que lhes der mais lucro. Isso é garantido. A não ser que paguemos por uma aplicação, não podemos ter expectativa de privacidade.» 
Grangeia revela que, para aplicarem um filtro desta natureza, recorrem a machine learning, a inteligência artificial. «Eles têm de copiar o conteúdo da foto para os servidores deles. Não é só metadados, as horas a que usamos a app ou o filtro que metemos.»
Pedro Veiga explica que o novo regulamento de proteção de dados traz uma novidade: antes, quando uma empresa queria recolher dados, deveria notificar a Comissão Nacional de Dados; agora as empresas não precisam de notificação prévia, mas, se estiverem a violar a lei, podem ser alvo de investigação. 
«Outra dimensão importante do regulamento geral de dados tem a ver com a transterritorialidade. Enquanto, antigamente, nos víamos aflitos quando a empresa que recolhia dados era no estrangeiro, agora pode fazer-se uma queixa junto da autoridade nacional, que terá a responsabilidade de interagir com os seus parceiros noutros países para resolver o problema» (...).
O professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa teme pelo futuro. «Estamos a entrar num universo extremamente complexo. As pessoas também são culpadas porque não têm cuidados, porque instalam todo o tipo de porcaria. E, depois de usarem a aplicação, esquecem-se de a remover. Além da asneira de instalar, a asneira de não remover. Estamos expostos. A privacidade acabou. O conceito que tínhamos de privacidade está a acabar. Os mais jovens já olham de uma maneira diferente da que eu olho para este tema. Para eles, é normal publicar tudo e expor a vida toda». 
Mais: «Se não houver controlo, é extremamente preocupante. O impacto nas eleições dos Estados Unidos parece mais ou menos evidente. Também o Brexit, no Reino Unido. Estou extremamente pessimista. A capacidade de intrusão nas nossas vidas é enorme». 
Para dar força a este argumento, Pedro Veiga deu o exemplo de uma família norte-americana que começou a receber panfletos sobre gravidez no correio de casa. Informações de berços, produtos para bebés, etc. «Passados dois meses, a filha de 14 anos veio anunciar que estava grávida. Não disse aos pais, então quis saber mais e andou no computador de casa a fazer pesquisas associadas à gravidez. Aquilo foi detectado e cruzaram isso com a residência deles e passaram a enviar folhetos pelo correio». 
Os lamentos sobre o tamanho e complexidade das políticas de privacidade que essas aplicações apresentam aos utilizadores antes de serem instaladas (e que os utilizadores aceitam quase sempre sem as ler) é algo que não é raro escutar. Será um dos caminhos mudar esse texto e tornar a informação mais curta e explícita? 
«Sim, é algo que grandes empresas já estão a fazer. A Google simplificou imenso, há poucos anos, os termos de privacidade… e mesmo assim são gigantes», conta Luís Grangeia. «Acho que é por aí, mas acho sobretudo que as pessoas não perceberam que a sua percepção de privacidade dos seus dados está completamente desalinhada com a das grandes empresas que trabalham na cloud e com os nossos dados. As pessoas têm de realinhar as expectativas. Tudo o que envio para a cloud, em princípio, pertence àquela empresa. Em países em que as democracias são mais frágeis, os dados podem ser usados contra nós. Funciona porque vivemos em democracias maduras, mas quando as coisas começarem a piorar (...) as pessoas têm de ter cuidado porque são ativamente perseguidas». (...) Os dados já navegam por aí, nessa atmosfera invisível (...). No fundo, estamos mais expostos do que nunca e há empresas que fazem negócio com as informações que recolhem de utilizadores que, voluntariamente, as ofereceram em troca de um qualquer serviço lúdico.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

LETRAS E CIÊNCIAS, COM A LUA NO MEIO

Como amanhã se comemoram os 50 anos da chegada à Lua recupero um texto do meu livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva, julgo que esgotado), onde a Lua entra:


É muito antiga a divisão entre as várias disciplinas. A barreira mais alta é a que se ergue entre letras e ciências, as designações tradicionais mas infelizes para conjuntos de disciplinas (em vez de letras será melhor dizer-se ciências humanas e em vez de ciências será melhor dizer-se ciências exactas e naturais). Mas há outras barreiras um pouco menores: dentro das letras, por exemplo entre a literatura e a história e, dentro das ciências, por exemplo entre a física e a biologia. Têm-se não só objectos e metodologias diferentes mas também linguagens diferentes. Quem escolhe a linguagem literária, salvo algumas excepções, é quem recusa a linguagem matemática – a linguagem das ciências exactas e naturais.

Mas serão as linguagens das letras e das ciências mesmo antagónicas? Poder-se-ia a este respeito citar vários cientistas que se pronunciaram sobre o assunto. Mas cite-se antes um escritor, o italiano (embora nascido em Cuba)  Italo Calvino, que, em vários dos seus livros, mostra claramente uma influência científica (ver, por exemplo, as colectâneas de contos  Cosmicósmicas” e “Novas Cósmicómicas”, publicadas entre nós pela Teorema). No seu livro de ensaios  Ponto Final. Escritos sobre Literatura e Sociedade” (Teorema,  2003, tradução do original italiano “Una pietra sopra”), publicam-se duas breves entrevistas de Calvino sobre ciência e literatura. O entrevistador fala da hipotética  necessidade do escritor de vanguarda se tornar cientista” e interroga o autor de “Cósmicómicas” sobre “o que justificará a literatura em relação à ciência”? Eis a resposta:

“Não pode haver nenhuma coincidência entre a linguagem matemática e a linguagem literária, mas pode haver (precisamente pela sua extrema diversidade) um desafio, uma aposta entre elas. (...) A literatura pode servir de mola propulsora para o cientista: como exemplo de coragem na imaginação, no levar uma hipótese às extremas consequências. E pode acontecer o contrário: o modelo da linguagem matemática, da lógica formal, pode salvar o escritor do desgaste em que caíram as palavras e as imagens devido ao seu falso uso”.

Noutro passo da entrevista é abordada a afirmação feita noutra ocasião por Calvino de que Galileu seria o maior escritor italiano de sempre, o que será certamente uma grande heresia para muitos professores de literatura (bem, para dizer a verdade, Calvino queria dizer prosador, uma vez que reserva o primeiro lugar na poesia a Dante).

Recorde-se que Galileu é o autor de duas grandes revoluções que têm a ver com a linguagem. Por um lado, escreveu alguns os seus livros científicos mais importantes em italiano e não em latim: queria evidentemente ser lido, no seu país, por toda a gente e não apenas pelos eruditos. Por exemplo, o “Discurso sobre Duas Ciências Novas”, o livro fundador da mecânica e da ciência de materiais, intitulava-se no original de 1634 “Discorsi e demontrazioni mathematiche intorno a due nuove scienze attenenti alla meccanica.” Por outro lado, defendeu, com enorme vigor e clareza, que a Natureza estava escrita em linguagem matemática, isto é, que ela só se deixava compreender recorrendo a essa linguagem. Ora leia-se a este propósito este naco da saborosa prosa de Galileu, extraído de “Il Saggiatore” (1623): 

«A filosofia do Universo, esse grandíssimo livro que continuamente está aberto em frente de nossos olhos, não se pode entender sem primeiro se conhecer a linguagem e os caracteres em que está escrita. A sua linguagem é uma linguagem matemática em que os caracteres são os triângulos, os círculos e demais figuras geométricas, sem o conhecimento dos quais é impossível entender uma só das suas palavras».

Pois o que diz o escritor Calvino sobre o cientista (e obviamente também escritor) Galileu, na referida entrevista?

Galileu usa a linguagem não como elemento neutro, mas com uma consciência literária, com uma contínua participação expressiva, imaginativa, até mesmo lírica. Ao ler galileu gosto de procurar as passagens em que fala da Lua: é a primeira vez que a Lua para os homens se transforma num objecto real [lembre-se que Galileu tinha construído o primeiro telescópio, que logo usou para ver a Lua e outros astros], que é descrita minuciosamente como coisa tangível, e no entanto assim que a Lua aparece, na linguagem de Galileu sente-se uma espécie de rarefacção, de levitação: eleva-se-nos numa encantada suspensão (...) O ideal de olhar sobre o mundo que guia também o cientista Galileu alimenta-se de cultura literária”.

Não admira que Calvino, tocado pela magia da Lua, tenha escrito sobre ela em várias ocasiões. No livro “O Senhor Palomar” lamenta-se de “ninguém olhar para a Lua de tarde, quando esse é o momento em que a Lua requer mais atenção, uma vez que a sua existência ainda está em dúvida”. Curiosamente uma das grandes questões na polémica entre Einstein e Bohr a propósito da teoria quântica foi a de saber se a Lua está lá quando ninguém olha para ela... Um dos contos de “Cosmicómicas” intitula-se  A distância da Lua”. O autor descreve-nos nele um tempo em que a Lua estava tão perto de nós que ficava à distância de uma escada. De facto, diz a Física que a Lua nasceu da colisão de um astro errante com a Terra, pelo que houve um dia em que a distância entre Lua e Terra foi mesmo nula...

Um outro escritor que, no seu estilo muito próprio, cultivou a relação entre as letras e as ciências foi o argentino Jorge Luís Borges. Apetece trancrever aqui o que esse grande mestre da língua castelhana disse sobre a Lua numa entrevista:

A Lua é diferente conforme os idiomas: Lua, Lune e Moon (que é uma palavra escura e lenta) são as que melhor a nomeiam. Pelo contrário, em inglês antigo é mona e masculino: “o” lua. Em alemão, Mond, também não é lindo  [também é masculino, Der Mond]. E Selene é bastante feio, em grego.  (Pilar Bravo e Mario Paoletti, “Borges Verbal”, Assírio e Alvim”, 2002).

A nossa Lua é só uma (Júpiter, em contraste, tem muitas), mas mostra-nos diversas fases: não será a fase de lua nova mais “moon” do que propriamente “lua”?

A divisão tradicional entre letras e ciências não  hoje muito actual uma vez que linguagens aparentemente opostas têm bastante a dizer uma à outra. De facto, a conjugação dos vários saberes e das várias linguagens  em que eles se exprimem é o único meio para descrever as riquezas do mundo e também de resolver alguns dos problemas desse mesmo mundo. Por exemplo, o físico de hoje sabe que muitas questões da Física têm implicações humanas e que algumas questões da literatura ganham com o foco da Física. Todas as ciências são afinal humanas porque são feitas pelo e para o homem...

Se, no passado, o conhecimento foi excessivamente arrumado em compartimentos estanques, incomunicáveis, no futuro, ele nascerá cada vez mais do encontro de visões diversas, que ganham em interpenetrar-se. Italo Calvino diz-nos que a visão literária e a visão científica se podem e devem  articular. É óbvio que não há interdisciplinaridade sem disciplinaridade e que as visões e linguagens disciplinares não desaparecem quando se cruzam. Mas a ligação entre as disciplinas  – tão nítida no pensamento de Calvino - aparecerá cada vez mais nítida.  Querê-la não será pedir a Lua!

NEUROMITOLOGIA

Texto enviado por João Nunes, Neurologista

Cérebro, Neurologia, Mitos e pseudociência

O Cérebro, as Neurociências e a Neurologia estão na berra.



Não passa uma semana sem que sejamos confrontados com notícias espetaculares e reveladoras sobre o Cérebro e o seu funcionamento.
O interesse da opinião pública é tal que um comentador na área da ciência chegou a referir que se Andy Warhol estivesse vivo o motivo das suas próximas serigrafias seria o cérebro, deixando para trás a pobre Marilyn Monroe.

“Este é o aspecto do cérebro quando estás apaixonado”, “Descoberto o centro cerebral da religião”, “Estudo comprova que os mais distraídos são os mais inteligentes”, são exemplos de cabeçalhos encontrados na comunicação social ou nas redes sociais, frequentemente acompanhados de imagens vibrantes e coloridas do cérebro humano.
Ou então “investigadores da Universidade X (a preencher consoante a semana) descobrem teste para o diagnóstico precoce de Alzheimer”, ou “novo estudo representa promessa na cura do Parkinson”.

De onde vem todo este interesse pelo Cérebro e pelas Neurociências?
Para além do apelo natural da descoberta dos segredos por detrás do centro que comanda todas as nossas acções e emoções, e que tem motivado cientistas ao longo de séculos, a popularidade recente junto das massas tem a ver, entre outros motivos, com o aparecimento de métodos de imagem que analisam o funcionamento do cerebral, estudando as áreas que estão a consumir mais oxigénio quando o cérebro está a realizar uma determinada função.
E´o caso da chamada Ressonância Magnética Funcional (RMf), que permite a obtenção de imagens de diferentes cores do cérebro, consoante determinada zona está mais ou menos ativa.
Por exemplo se o indivíduo mexer a mão direita é possível através deste método ver uma área cerebral  a “iluminar-se”, a ficar vermelha por estar mais ativa, neste caso uma zona do lado esquerdo do cérebro.
Estes métodos de estudo com imagens, coloridos, apelativos, são obviamente mais interessantes para o público generalista.
Mas há cuidados a ter com esta nova “janela da mente”, obrigando a tratamento estatístico rigoroso dos dados obtidos, e se tal não acontecer podem ser obtidos os resultados que os investigadores antecipadamente querem, o chamado viés de confirmação, ao atropelo do método científico, o que pode ser inconsciente ou nem tanto.
E´ possível, com “Photoshop” estatístico, arranjar atividade cerebral onde ela não existe, como aconteceu num estudo famoso, provocatório, em que os autores, com a utilização da RMf, “demonstraram” atividade, obviamente falsa, no cérebro dum salmão morto, só pelo recurso a tratamento estatístico levado ao extremo.
As notícias que localizam as emoções em diversos pontos do cérebro, devem ser encaradas de forma saudavelmente cética. Nestes casos o que está em jogo são geralmente múltiplas áreas associadas e não uma única área “mágica”.

O grande número de notícias relacionadas com o Cérebro e as Neurociências, tem também a ver com a necessidade de promoção dos Centros de Investigação, de forma a conseguirem visibilidade e financiamento para os seus projectos. Isto faz com que estudos preliminares, “in vitro”, ou em animais, sejam promovidos de forma prematura, em situações de doenças neurológicas com grande visibilidade junto da opinião pública, como a Demência de Alzheimer ou a doença de Parkinson, por exemplo. Por isso há quem defenda que no título da publicação ou artigo científico deve ser referido que o estudo é feito em animais ou que ainda está na fase do tubo de ensaio.

Outros mitos associados a esta área são relativamente inócuos, embora desprovidos de senso comum.
Um dos mais populares, com a ajuda de séries televisivas e filmes, é a de que usamos apenas 10% da nossa capacidade cerebral.
Colocado de forma simples: é falsa a ideia de que só utilizamos um décimo do nosso potencial cerebral, não faria sentido que um órgão que gasta mais de um quinto do total da energia do organismo, tivesse apenas uma pequena parte a trabalhar. Há hoje evidência de que o cérebro está sempre a funcionar na sua totalidade, mesmo durante o sono, embora as áreas mais ativas mudem consoante a tarefa.

Uma outra ideia errada na área das neurociências é a de que a nossa personalidade e forma de pensar dependeria mais de um lado do cérebro. Assim os indivíduos com o lado direito dominante seriam mais criativos, imaginativos, intuitivos e artísticos. Os que tivessem como lado dominante o esquerdo seriam mais organizados, lógicos, analíticos e proficientes a matemática. Este é um conceito errado segundo os atuais conhecimentos neurológicos, embora já tenha permitido a venda de milhões de livros de pseudopsicologia. Todas as tarefas complexas que o nosso cérebro realiza exigem participação dos dois lados do cérebro, existindo extensas ligações entre ambos os lados. Podemos falar do exemplo da linguagem, embora o lado esquerdo seja fundamental para a compreensão e expressão da linguagem, o lado direito é determinante para compreender o contexto e tom das palavras. E na matemática, enquanto o lado esquerdo é importante para a resolução de equações, o lado direito dedica-se a comparações e estimativas.

O interesse que a Neurologia e Neurociências motivam tem também a ver com a nossa procura do Santo Graal cerebral, a  pílula ou suplemento mágico que nos aumente a memória e a concentração, que nos torne mais inteligentes, que nos livre do declínio cerebral associado à idade, ou nos torne as máquinas intelectuais que a atual sociedade ultracompetitiva exige.
Há uma indústria de milhões à volta deste problema, com produtos com designações sugestivas , muitas vezes com nomes associados ao elefante e à sua proverbial memória, comercializados em farmácias, em lojas de produtos naturais e online.
Substâncias como o Omega 3, o Gingko biloba, o Ginseng, o Chá Verde, as bagas Goji e uma miríade de Vitaminas, entre muitos outros, são usados na produção de suplementos milagrosos.
Qual o sumo que se extrai desta multidão de embalagens, suplementos, anúncios? Zero ou muito perto disso. O efeito destes suplementos a nível das nossas capacidades cognitivas ou da memória é praticamente inexistente, e não digo completamente inexistente porque produtos como as Vitaminas ou o Omega 3 poderão ter interesse em grávidas e em pessoas com déficites nutricionais, por exemplo a suplementação com vitaminas do complexo B pode ser necessária em indivíduos com regime alimentar Vegan.

Outra face da mesma moeda é a moda atual, sem qualquer evidência científica, de que é importante, para a nossa saúde, incluindo o funcionamento cerebral, evitar determinados alimentos como o glúten ou o leite animal. Esta corrente só pode ser entendida como uma forma de marketing para produtos que não contenham aqueles “venenos”, e que hoje em dia se encontram por todo o lado. O glúten e o leite foram utilizados tranquilamente pela raça humana durante milénios, mas são agora denunciados como a fonte de todos os males do Homo sapiens ou quase.
A realidade é que, tirando situações muito raras, como é o caso da Doença celíaca no caso do Glúten, ou das pessoas com uma deficiência grave de Lactase (enzima responsável pela digestão da Lactose constituinte do leite) no caso do leite, é perfeitamente seguro e útil o consumo de glúten e de leite na nossa alimentação.
Uma alimentação variada e equilibrada é necessária e suficiente para a nutrição do nosso corpo, incluindo o cérebro.

Outra indústria de milhões associada a uma pretensa acção sobre o funcionamento cerebral é a da venda de produtos de software de treino cerebral, geralmente online e sob a forma de aplicações.
Uma pesquisa feita junto de lojas online de aplicações para telemóveis, revela dezenas de aplicações promovidas com o intuito de manter ou melhorar a memória e a capacidade intelectual. Infelizmente não há estudos fiáveis que mostrem a utilidade de qualquer destes programas, pelos menos isoladamente.
Melhoram a tarefa que é treinada durante o jogo de computador, mas não são úteis no dia a dia, não melhoram a capacidade de ir às compras num idoso com dificuldades cognitivas, ou os resultados dos exames num estudante universitário por exemplo. A promoção dos pretensos efeitos miraculosos destes produtos sobre a capacidade cerebral levou a uma tomada de posição conjunta de cientistas da área a desmitificar o seu efeito.
A sua utilização nos indivíduos com declínio cerebral poderá, no entanto, ser complementar de outros aspetos tão ou mais importantes, como a atividade física, a interacção social, a leitura, tocar um instrumento musical, etc.

A patologia neurológica, dada a riqueza de sintomas que determina, é também fonte de muitos mitos populares e ideias erradas. Um apanhado exaustivo exige o espaço de um livro de texto. Vou referir alguns dos mais frequentes:
O mito de que Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC) são doenças exclusivamente dos idosos. Embora sejam mais frequentes na população mais idosa, os AVC podem ocorrer em jovens, pelo que mesmo em grupos etários mais baixos seja importante a prevenção dos fatores de risco conhecidos, como a Hipertensão, a Diabetes, o Tabagismo, a Obesidade e os valores altos do Colesterol.
Fulcral é a ida emergente à Urgência hospitalar em caso de suspeita de AVC, com recurso ao INEM e à via verde hospitalar, o que permite às vezes desobstruir o vaso entupido que está a causar o problema. Para mais esclarecimentos deve ser consultado o site da DGS a este respeito.
Algumas pessoas ainda têm a ideia errada de que a Epilepsia é uma doença associada a menores capacidades intelectuais. A realidade é que, tirando algumas formas graves e raras , os doentes epiléticos podem fazer uma vida normal, com um controle quase total das crises , o que pode ser atribuído, em parte, à eficácia e variedade da medicação atualmente existente.
Ainda no campo das crises epiléticas existe a noção errónea de que deve ser colocado um objeto na boca da pessoa em crise para evitar que morda a língua, mas tal só vai dificultar a respiração da pessoa, que deve ser colocada de lado, num sítio em que não se magoe, e sem nada a dificultar a circulação de ar.
Outro conceito errado tem a ver com as Demências. Embora a grande maioria seja progressiva e irreversível, existem casos de Demências tratáveis, pelo que é importante a consulta por um médico Neurologista. Exemplos são o déficite de vitamina B12, as Hidrocefalias com acumulação excessiva de líquido no interior do cérebro ou os Hematomas cerebrais crónicos provocados por traumatismos cranianos, entre outras causas tratáveis.

No que diz respeito às doenças neurológicas, um aspeto que prejudica também o tratamento dos pacientes, é o recurso às terapias alternativas.
O seu uso e abuso leva ao atraso no início de tratamentos eficazes, pode levar à interferência das mezinhas com os medicamentos úteis, e troca falsas esperanças por gastos elevados em inutilidades.
Como exemplos apontaria a promoção da acunpuntura, da homeopatia, da osteopatia, da naturopatia e outras no tratamento de diversas doenças neurológicas.
Não há qualquer evidência científica séria que as suporte, mas são promovidas nos meios de comunicação social, inclusive do Estado, como é típico dos programas televisivos matinais.
Relativamente à Acunpuntura, que tem sido publicitada para o tratamento de doenças Neurológicas como a Enxaqueca, existem estudos que mostram que não é mais que um placebo, com resultados iguais quer seja praticada por principiantes ou por mestres, existindo inclusive um estudo em os resultados foram iguais usando agulhas de Acunpuntura ou palitos!
A Osteopatia e a as terapias Quiropráticas utilizam manipulações cervicais, apregoadas como tratamento para quase tudo, mas uma das complicações possíveis já descrita e publicada em revistas científicas, é o facto destas manipulações cervicais poderem danificar artérias do pescoço que levam sangue para o cérebro e poderem causar acidentes vasculares cerebrais.
  
Mais grave é o canto de sereia com que são atraídos doentes desesperados, pelas clínicas internacionais com tratamentos de pretensa base científica, mas ainda em fase de investigação, como é o caso das células estaminais e das vacinas dendríticas.
Os doentes pagam fortunas em troca de tratamentos experimentais, ainda ineficazes ou pouco seguros, acabando por regressar ao nosso SNS piores do que quando foram para essas clínicas, como é triste exemplo famosa clinica alemã, que conta com inescrupulosos angariadores nacionais, principalmente junto de doentes oncológicos.

Falando do Cérebro e de Tumores, outra dúvida com que muitos se confrontam diz respeito à associação dos telemóveis e dos tumores cerebrais.
Não há estudos sólidos que mostrem aumento do número de novos casos de tumores cerebrais após o início da utilização maciça de telemóveis. Tambem não há relação demonstrada entre este e outros tipos de tumores com as redes Wifi, 4G ou 5G, ou micro-ondas, que é, hoje em dia, uma das teorias da conspiração prediletas na internet.

Em conclusão, neste tempo de “fake news” devemos manter um saudável ceticismo, e daí a importância da literacia científica na área das neurociências.
Desconfiemos das fabulosas descobertas e curas espantosas promovidas nos media e redes sociais, mas que não têm grande repercussão junto da comunidade científica.
Se parece demasiado bom para ser verdade é porque provavelmente não é.
Desconfiemos dos suplementos miraculosos, dos programas de software que nos vão pôr a pensar melhor, e das curas e tratamentos alternativos, cuja utilidade é principalmente financeira para quem as pratica.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...